Governo em electrocussão
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Governo em electrocussão

Sabemos, mas vou reforçar: a Cidade da Praia, centro político, económico e cultural do país, vive hoje sob um cenário que mina silenciosamente o seu desenvolvimento – os constantes cortes de energia elétrica. O problema, longe de ser apenas técnico, revela um défice estrutural de planeamento, gestão e visão estratégica que coloca em causa a qualidade de vida dos cidadãos e a atratividade do país para investimentos.

Os apagões, convenhamos, não são um fenómeno novo. Desde há décadas, os cabo-verdianos, sobretudo na Praia e nos municípios do interior de Santiago, convivem com interrupções no fornecimento de energia, inicialmente justificadas por limitações de produção, equipamentos obsoletos e dificuldades de importação de combustível. Com a criação da Electra, esperava-se um novo ciclo de modernização, privatizações, parcerias e investimentos que deveriam colocar Cabo Verde no trilho da estabilidade energética. Contudo, a realidade demonstra o contrário: persistem as falhas, os atrasos e a incapacidade de garantir um serviço público básico de forma regular.

Em meados dos anos 90, a Electra foi privatizada, com o consórcio português EdP/AdP, a assumir a empresa, sem nunca ter investido um centavo, num negócio quase tirado a papel-químico com o contrato lesivo para o estado com a Cabo Verde Inter-ilhas. Dizia, o grupo lusitano levou o país para a escuridão, pelo que, quando o PAICV ganhou as eleições em 2000, o governo de José Maria Neves rompeu o contrato com a EdP/AdP nacionalizando de novo a Electra.

Parecia tudo bem, até começarem novas avarias e os apagões constantes com longos e intermináveis períodos de black out, arrasando comércios, investimentos e o dia a dia dos cabo-verdianos. Incompetente para resolver o problema, o Governo do PAICV desculpou-se com sabotagens. Não satisfeito, ou não convencendo ninguém, chegou a afastar um então engenheiro da casa por ser responsável pelas supostas adulterações nas máquinas, mas os blackout não pararam. O engenheiro, esse, levou o estado a tribunal e ano passado venceu a causa recebendo mais de 5 mil contos de indemnização.

Agora, ante a incompetência do Governo, a inabilidade total da administração da EDEC ou Electra, sei lá, aparecem chicos-espertos a tentarem  desviar as atenções para as velhas-novas  sabotagens, o bode expiatória da incapacidade dos gestores e políticos. Sim, ninguém quer assumir as suas responsabilidades. E as há, tanto a nível técnico quanto a nível político. Mas o Governo enterra a cabeça na areia e espera que o país acredite no papão sabotador lançado propositalmente nas redes sociais. Aliás, inclusive o 1º vice-presidente da Assembleia Nacional, Emanuel Barbosa, com responsabilidades acrescidas diga-se, falou em sabotagem num seu post na sua conta pessoal no facebook para justificar os regulares cortes de energia. Ora, qualquer lojinha de esquina tem uma câmara de vigilância e a Electra, com avultados milhares em maquinaria não possui nenhum sistema de fiscalização interna e controlo operacional? Enganem outro, por favor. 

Enfim, o que se vive hoje na Praia é paradigmático. Pequenos negócios perdem mercadorias e clientes, restaurantes veem a sua atividade interrompida, hospitais e centros de saúde (onde não há geradores particulares) enfrentam riscos sérios para equipamentos vitais, e as famílias, no dia a dia, veem a sua paciência esgotada.

A instabilidade energética vem comprometendo ainda o setor das tecnologias, escritórios e até a administração pública, que, paradoxalmente, tanto aposta na digitalização mas funciona sobre uma base elétrica instável.

Este cenário traz duas consequências graves. A primeira é a perda de competitividade: nenhum investidor sério arrisca instalar-se num mercado onde não há garantia mínima de energia elétrica contínua. A segunda é a erosão da confiança dos cidadãos no Estado e nas suas instituições. O fornecimento de energia não é um luxo; é uma condição fundamental de cidadania e desenvolvimento.

O mais preocupante é que não se trata de um fenómeno imprevisível. Cabo Verde conhece há muito os seus desafios energéticos. Entre privatizações falhadas, reestatizações forçadas, planos de transição energética e promessas de aposta em renováveis, a verdade é que os problemas de fundo nunca foram resolvidos. A incapacidade de alinhar o discurso político com ações concretas levaram-nos ao ponto em que estamos.

Hoje, a Praia, capital de um país que se pretende moderno e competitivo, continua a viver como se estivesse nos anos 80: com velas, veladores e geradores particulares como soluções improvisadas para um problema estrutural. O Governo que quando mendigava voto “tinha as contas todas feitas”, portanto, era chegar e virar, não mostra capacidade para “ter solução”. 

Não se trata apenas de exigir soluções imediatas — embora estas sejam urgentes —, mas de reconhecer que a questão energética em Cabo Verde é também política e estratégica. A capital e o país não podem continuar a perder credibilidade, tempo e oportunidades de desenvolvimento.

É hora de romper o ciclo vicioso de promessas adiadas e enfrentar de frente a crise da energia, sob pena de condenar gerações inteiras à estagnação.

O desconto de 10% na factura de Setembro é, conforme li num post de um amigo, chupeta para criança, porque para um adulto que trabalha e tem responsabilidades, esse desconto não significa absolutamente nada quando comparado com o tempo que perde, dinheiro que não entra na sua conta e paciência para esperar o ‘lus dja bem’ até retomar o trabalho e ai, ai, ‘lus dja bai’. Uma situação frustrante que tem causado insatisfação quase generelizada (o quase aqui é a claque de apoio ao Governo, que mesmo angustiado e cônscio da realidade, bate palmas à chegada de uma peça ou põe culpa num sabotador-fantasma para continuar a ser aceite pela tribo).

Se o Governo não quiser aprender com isso, sairá electrocutado. Ou, dito de outro, saberá como se perdem eleições... por falta de lu(z)cidez.

 

 

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SOBRE O AUTOR

Hermínio Silves

Jornalista, repórter, diretor de Santiago Magazine

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