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Funacracia
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Funacracia

“Rapazis nhos toma ton, rapazis nhos toma ton, sinon ton ta toma nhos”. Extrato de uma música cantada pelo ícone do funaná, Chando Graciosa, homem portador de uma voz com um timbre incomum no panorama musical cabo-verdiano.

Funaná é música cabo-verdiana profunda. E é música, tanto quanto, morna, coladeira, batuco, fado, talaia baxu, rock in roll, flamenco, jazz, porque tanto estas como o funaná incorporam em si os elementos essenciais que os permitem ostentar a patente de música, ou seja, todos têm, rítmo, melodia, harmonia e linguagem própria.

O poder do funaná - funacracia - está intrínsico às gentes destas rochas, tendo emanado e permanecido com povo desde os primórdios da nossa existência, da embriogeneses da caboverdianidade, nos recônditos da Ribeira Grande de Santiago, enquanto nação emergente de cruzamento entre povos e culturas de latitudes distintas. 

Nos remotos tempos da escravatura, o funaná conseguiu suportar as intempéries do tempo, duplamente fustigada, primeiro pelos colonos e posteriomente pelos seus próprios rebentos, por pequenos formadores de opinião, pela minoria auto proclamada elite, muito próxima estrategicamente do poder colonial que sempre censurou este gênero musical.

Funaná é sabi di mas, ti qui ta mata alguém”, assim dizia senhor António, um vizinho meu, para caraterizar este gênero musical. O meu vizinho é um de milhares de cabo-verdianos que, com as palavras simples como aquelas, expressam a força do funaná, enquanto género genuinamente oruindo desses vales e cutelos e marca cultural indelével de um povo colonizado durante 500 anos. 

Apesar de não existir no nosso país o ensino formal da música, muito menos do funaná, o certo é que este género vem passando de homem para homem através dos anos, utilizando os meios mais simplistas possíveis para transmitir algo tão complexo como o processo ensino aprendizagem da música.

Assistimos neste momento um nítido recrudescimento e rejuveniscemento do funaná, uma intensa apropriação e consumo deste género musical, hoje não raras vezes vestidas de novas caraterísticas e influências nunca antes vistas. 

Este fenómeno, que está intrinsecamente ligado às gerações mais novas do cenário musical cabo-verdiano, introduziu um ritmo mais acelerado ao funaná, hoje conhecido por Cotxi Pó - sem deixar de ser funaná, mas com uma roupagem que nos empurra a admitir estar-se perante uma certa fusão com o soukous, um ritmo muito apreciado desde sempre pelas pessoas da ilha de Santiago. 

O Cotxi Pó destoa e desafia o estilo de funaná tocado e cantado pelos músicos mais antigos como, Code de Dona e Zeca de Nha Reinalda, que se assenta numa matriz mais lenta, conservadora e tradicional.

A comunidade cabo-verdiana da diáspora, sobretudo de Portugal, assume um papel particular nesta transformação que vem operando na matriz melódica e executória do funaná, certo de que é neste país europeu que reside grande parte dos fazedores e consumidores desta nova modalidade do funaná. 

Numa ocasião em que se fala amiúde sobre a indústria criativa, o país é chamado a organizar-se para conferir um toque mais mercantilista a este género musical, de modo a que seja uma real fonte de rendimento para os seus criadores e fazedores, rompendo de vez com o modelo assistencialista onde tem estado a movimentar-se. 

Dizem os cubanos, “para los gustos existem los colores”. Também para cada momento um tipo de música, por isso não existe música suprema, senão partes que se complementam e completam as ncessidades da alma do consumidor em perspetivas e momentos distintos.

Funaná é alma do povo das ilhas pela sua resiliência, pela perseverança e por entranhar fortemente nas artérias deste povo. Funaná não é da ilha de Santiago, mas sim de Cabo Verde e do mundo. A força do funaná mede-se pelo seu poder interventivo, pela temática retratada muitas das vezes usando linguagem poética bem metaforizada, quantas vezes com aspecto satírico, porém cheia de amor, de solidariedade e verdade.

Por tudo isso, e pelas mensagem que ela transporta no bojo, é normal concluir sem sombras de dúvidas que o funaná incorpora uma forte componente social, pelos seus reparos, pelas suas críticas, mas também pelos seus conselhos. É, pois, em género e estilo, uma música universal, portadora de uma linguagem musical que se adapta em todas as latitudes, podendo ser tocada e cantada por qualquer banda, orquesta, seja ela, sinfónica e ou filarmónica.

De uma breve análise à evolução histórico-temporal do funaná, verifica-se que o funaná passou pelos seguintes cenários:

1º Cenário: Período de repressão, contenção e proibição pelos colonos - desde da colonização até aos anos 1950-1960;

2º Cenário: Período de alguma descontração posicionando-se genuinamente como música do campo, nos badjus de gaita, sendo a alma das festas populares como romarias, baptizados e casamentos; 

3º Cenário: Período de alguma emancipação nos finais dos anos 1970 e toda a década de 80, tendo como base os Bulimundo, Norberto Tavares, João Cirilo e outros; 

4º Cenário: Período de reaparecimento como música urbana - 1995 tendo os Ferro e Gaita como um dos percursores, juntamente com Chando Graciosa, Bitori Nha Bibinha, Finaçon, Gil Semedo, Beto Dias;

5º Cenário: Período de recrudescimento, dado em dois momento: sendo primeiro com aparição de grupos locais 1997 - Os Rabenta, entre outros, e segundo momento marcado pelo advento de Zé espanhol, Gilyto, Lejemea,Tony Fika, Willy Semedo.

Note-se no entanto, que a internacionalização do funaná começou com os Bulimundo, que nos anos 80 percorreu todos os palcos da vasta diáspora cabo-verdiana, espalhada pelos quatro cantos do mundo. Neste momento, os Ferro e Gaita tem assumido há já algum tempo o papel de embaixador da Cabo Verde, tendo o funaná como instrumento de trabalho e bandeira.

Tudo porque, Funaná é do povo e por isso mesmo consegue quebrar todos os grilhões, todas as amarras, visiveis e invisiveis.

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SOBRE O AUTOR

João Semedo