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Crioulo Oficial
Colunista

Crioulo Oficial

 

A linguagem dum idioma é um jogo que, o seu domínio, beneficia os praticantes. Esse jogo, baseado em códigos sonoros e de escrita, é temporal e confinado à geração em questão, pois, a linguagem é mutável; ganha novas palavras, adaptações, pronúncias ou verbalizações gestuais.

As pequenas nuances são sinais de mortalidade, iniciação ou mobilidade geracional. Os nossos esforços para a congelação das línguas são, na sua prática, em vão. Mas, numa visão de grande escala, beneficiamos com a preservação porque os registos, gramáticos e sonoros, serão as soluções para que, adiante, se decifre as expressões e as suas simbologias em contexto único. Os diversos valores, temporais e geográficos, que se traduzem na respetiva oralidade, pensamento e comportamento, desenvolvem-se a partir da inevitável influência do ambiente que envolve os falantes. O idioma é o espelho dos valores e a história dos seus falantes.

Neste contexto, uma sociedade que reconhece os seus valores tradicionais é automaticamente experiente. O estudo aprofundado e reconhecimento sobre as palavras e frases crioulas farão um Cabo-verde mais maturo. O crioulo é a sabedoria cabo-verdiana.

Porquê a oficialização do crioulo? Primeiro, porque se deixou de ser colónia e a independência política significa ter a oportunidade de desbravar o mundo com novos olhares. É dever de cada sociedade criar melhores soluções e nunca se acomodar ao insuficiente. E, para se ser inovador, tem que se usar novas expressões ou novos pensamentos; para tal, recomenda-se recorrer ao melhor da perspetiva pessoal. A perspetiva do português em Portugal não será igual à perspetiva do cabo-verdiano em Cabo-Verde, e a língua crioula, queiramos ou não, é parte significativa da perspetiva cabo-verdiana.

Segundo, porque, por esta altura e em Cabo-Verde, ainda existem mais cidadãos a utilizar o crioulo do que os que dão uso diário à língua portuguesa. Não devemos descartar o português, mas é sabido que, para a aprendizagem e leitura nos ambientes formais, os cabo-verdianos são obrigados a fazer uma constante tradução nas suas mentes, do crioulo para o português e vice-versa, tornando demorado e pouco natural a absorção das informações. Com isto, reforço, não faço um apelo à remoção do português nas instituições nacionais, mas, sim, acredito que o crioulo incentivado fará de opção ao próprio falante que poderá, após a noção gramatical e oral, optar pela não dificuldade de significados linguísticos, dando transparência à comunicação perante a sua sociedade, fortalecendo-a e unificando-a pela linguagem mais comum e prática — o crioulo.

Qual dos crioulos deve-se oficializar? O da ilha de Santiago ou São Vicente? A minha resposta a esta questão é: oficializar todas as variantes, como um único idioma. Cada palavra crioula, que nomeia e diz respeito ao mesmo substantivo ou adjetivo, será mais uma valia na riqueza do paladar da língua. Os cabo-verdianos do Sul não serão obrigados a usar as expressões do Norte, nem o contrário. As palavras que existem, deverão existir na gramática e oralidade oficial, e, deverão ser escolhidas para uso preferencial de acordo com os costumes regionais.

Há quem defenda que, para a oficialização do crioulo, o melhor seria unificar todas as variantes e eliminar palavras vistas como desnecessárias ou repetitivas. Eu não vejo benefícios em eliminar-se pronúncias ou palavras distintas; pode-se é adaptar a ortografia de palavras muito semelhantes, e sinónimas, sem que isso interfira com as diferentes pronunciações. Desenvolverei esta ideia mais a frente neste texto.

Dar exclusividade de significado a uma única variante, duma das regiões, implicaria insistir contra a natural diversidade cabo-verdiana.

É extremamente insensível considerar, por exemplo, as expressões crioulas de Santiago como as mais válidas e aptas para serem, exclusivamente, as expressões oficiais, baseando-se no número de falantes “badiu” e a sua posição na capital, Praia. Esta justificação é insuficiente. Cada ilha tem a sua influência, em aspetos culturais e históricos, na amplitude nacional.

É preciso saber que, se se optasse pela escolha dum crioulo específico, recorrendo à força e obrigando as outras regiões a terem que aprender o “novo”, estaríamos a ser autoritários e imprudentes. As revoltas sociais não se fariam tardar. Devemos aprender com a Era colonial — a imposição cultural que não abranja hábitos nativos é um atentado contra a identidade da comunidade submissa e, por consequente, um passo em direção à criação de pessoas que não se sentem representadas. E para um não representado, a vida será sempre entre tudo ou nada; esta pessoa, ou impõe a sua presença, ou impõe a distanciamento cruel para com os que não o reconhecem.

O mesmo sucede com a imposição do português e a não representatividade política do crioulo em Cabo-Verde. Depois de décadas de autonomia governamental, culturalmente, a liberdade continua incompleta. A língua dominante e materna continua vista como um fantasma — existente e inexistente; ou seja, é a língua menos digna e, oficialmente, rejeitada. Esta atual relação explica a resistência do próprio crioulo. As pessoas, mesmo conhecendo o português, dificilmente abandonarão o crioulo, tendo-o como elo familiar e social. O crioulo hoje representa emoções que são, de facto, identidades pessoais que não podem ser descartadas sem haver resistência assumida pelos falantes. O crioulo, por si só, é a afirmação política do camponês ou o citadino cabo-verdiano.

Cabo-Verde precisa de gente orgulhosa e disposta a dar tudo pela sua sociedade; gente que investe na sua nação acreditando estar a investir em si, individualmente. Por tal, por ser influência pessoal e inquestionável, o crioulo deve ser encarado como investimento social.

Voltando às letras, defendo a análise profunda sobre as palavras com o mesmo significado e pronúncias diferentes. Usemos como exemplo, palavras que simbolizam a vaca; em crioulo, vaca refere-se, oralmente, como “vaka”, “baka” ou “vok”. Nestes casos muito frequentes entre as ilhas e, até, entre zonas dentro da mesma ilha, acredito que a perceção entre as diferenças nas palavras deve contribuir para redefini-las na escrita. Usando os exemplos mencionados, na ótica que proponho, as palavras referentes a vaca se definiriam, ortograficamente, apenas como “vaka” e “vok”, por serem percetivelmente distintos. Suprimiria, por exemplo, o termo escrito “baka” por ser nitidamente semelhante ao “vaka”, sem que isso implique a eliminação da sua oralidade. A palavra escrita “vaka” seria tolerada e pronunciada como “baka”, dependendo do hábito de quem fala, fazendo a consoante “v” tolerada como “b”. Assim, supostamente, nem as pequenas aldeias ficariam com pronúncias abandonadas, nem a ortografia ficaria exposta a particularidades ínfimas e impráticas.

As palavras distintas, tanto a nível da ortografia como a oral, e que tem o mesmo significado, como “vaka” e “vok”, devem ser mantidas e caracterizadas como sinónimas perfeitas. Cada grupo de palavras sinónimas será mais riqueza que honre cada pedaço de Cabo-Verde.

Este assunto gramatical poderá ser mais complexo, mas pode-se partir do exemplo neste esforço para que haja mais motivação, união e progresso. Quantos mais participantes, maior é a união, mais serão as ideias sensíveis e válidas.

A grande parte do negativismo, em relação à oficialização da língua cabo-verdiana, provém de dois grupos: os bairristas que reprovam a possível usagem de variantes das outras ilhas, e os politicamente alarmados que temem a isolação internacional de Cabo-Verde.

À cerca dos primeiros, os bairristas, penso que uma abordagem matura fará acabar com o indício de discriminação assumida em ante-mão pela própria pessoa que defende só a si e a sua região. Se a ideia de oficialização não se restringir em defender os valores de todos, então será uma iniciativa em vão. Nestes termos, e como já referi, quem só promove a sua particularidade, promove a fragilização da sua sociedade.

Em relação ao segundo grupo, os politicamente alarmados, vejo nestes uma descrença pela potencialidade do cabo-verdiano. A isolação nacional, provocada pela precariedade económica, só poderá ser contrariada, nos termos modernos, com a própria melhoria económica. Para que Cabo-Verde veja as suas finanças subirem, o país precisa de aprender outra linguagem que não é o português nem o francês, mas é uma linguagem suprema e, totalmente, globalizada — a linguagem do capitalismo. O dinheiro cresce quando se vende recursos ou ideias, e, não existe maior amizade diplomática do que a dos diferentes comerciantes internacionais. Se Cabo-Verde não tem muitos recursos naturais, só o resta insistir nos recursos físico-humanos ou intelecto-humanos.

Sobre os recursos físico-humanos, Cabo-Verde e todos os países subdesenvolvidos, que não têm uso económico para as respetivas potencialidades humanas, oferecem os seus cidadãos, de pouca ou nenhuma formação, à procura universal impulsionada pelo valor barato do corpo humano para trabalhos de habilidade muscular. Não me refiro ao desporto, mas sim, essencialmente, às tantas companhias de serviços espalhadas pelo mundo fora — principalmente nos países desenvolvidos, com as quais o capitalismo ditou a história económica e as principais migrações do mundo atual.

Na segunda opção, os recursos intelecto-humanos, o modelo económico é, normalmente, atribuído a pessoas da elite do Primeiro Mundo. Cada trabalhador é visto como uma mente de reação inteligente, e, a educação e o desafio pessoal são urgentes; para tal, para ser-se criativo e ter-se pensamentos válidos no mercado de trabalho, é preciso não se apoiar nas superstições estagnadas e locais, mas investir em estratégias, especialidades, arte, ciência ou tecnologia, de forma que sejam as potencialidades da natureza terrena e a atualidade global a inspirarem os trabalhadores. Ao invés de se ver o cidadão como parte duma massa de trabalho, programado para obedecer com o próprio corpo, as pessoas criativas são incentivadas a serem, numericamente, incontáveis alternativas de soluções benéficas para o país.

Resumindo, as necessidades internacionais não procuram verbos usados por Pessoa ou Camões, procuram compradores, serviçais ou parceiros com ideias para mais produção e venda — estes devem ser as verdadeiras considerações do novo cabo-verdiano.

Tem alguém que acredita que o crioulo oficializado só iria piorar o desempenho dos jovens e adultos que empreendem no português. Acredito que a atual falta de domínio do português existe porque, ao contrário de outros países de língua portuguesa, Cabo-Verde tem uma língua nativa que é, ainda, mais forte que o português. Cabo-Verde chegou à liberdade política com a língua nativa a dominar as terras descolonizadas, e isso teve forte impacto na atual posição do crioulo no país e além-fronteiras (consideremos o crioulo como língua nativa, apesar de ser uma linguagem que nasceu depois da interação entre colonizadores e colonizados).

A compreensão do crioulo será a compreensão do próprio português. O crioulo contém cerca de 90% de palavras de origem no português antigo e moderno; portanto, quem analisa o crioulo, está a provocar o conhecimento sobre a base da própria língua de Portugal. Sabendo que o crioulo é a língua materna nas casas, deverá ser, também ele, a que faz de ponte para o português e línguas latinas; não faz sentido ser o contrário. E, para complementar a aquisição de conhecimento linguístico, também deverá existir o reconhecimento de termos de origem não portuguesa, que também merecem devidos estudos e consciencialização.

Existem imensos países pelo globo, incluindo no Ocidente, que têm duas ou mais línguas oficializadas, quer por oficialização nacional que abrange todo o território, quer pela oficialização regional. Não quero acreditar que as crianças cabo-verdianas, diferentemente das demais, não têm a capacidade cognitiva para poderem ser bilingues capazes; este pensamento não me é lógico, nem desculpa os problemas da educação. O problema do ensino do português em Cabo-Verde, de certeza, passa por assuntos mais profundos como, por exemplo, a elitização da língua portuguesa ou o distanciamento entre o mesmo e a realidade quotidiana nas cidades e aldeias cabo-verdianas; o distanciamento absurdo entre a língua portuguesa e a representatividade cultural de África nos cabo-verdianos.

A nível regional, países como a Itália ou Canada têm várias línguas oficializadas. Falamos de países que praticam línguas internacionais e partilhadas com várias nações. Para o crioulo, a solução de se oficializar “vários crioulos”, por regiões, só funcionaria se os “diferentes crioulos” fossem oficiais e soberanos em países alheios. O que não é o caso. O crioulo tem uma dimensão muito pequena, e não podemos fugir dessa realidade. Portanto, a unificação de todas as variantes, num só pacote gramatical, é no meu ver a melhor estratégia. E, como afirmei anteriormente, cada região cabo-verdiana deverá, caso assim pretenda, dar-se ao luxo de usar apenas as palavras e expressões que lhe sejam íntimas.

A valorização da gramática e pronúncias crioulas incentivarão os cabo-verdianos a observar, minuciosamente, as palavras que são, intimamente, parte de si. As palavras ganharão significados maiores do que meros discursos; serão eternizadas em escrita e som, o que significa que o próprio falante, também, se sentirá eternizado.

Não vejo maior maturidade social sem se oficializar a língua materna, crioula e cabo-verdiana, para que as pessoas, cabo-verdianas e descendentes, tenham a honra merecida de relatar, na sua linguagem natural, a sua versão da história do Homem, e serem, também, parte da influência para um futuro promissor.

O cabo-verdiano é mais que uma história colonial; o crioulo é uma realidade atual e futura, e por tal, deve ser encarado como a assinatura dum Cabo-Verde que construiu-se olhando para si.

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