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A VISÃO PAN-AFRICANISTA E NÃO-ALINHADA DE AMÍLCAR CABRAL E A ACTUAL SITUAÇÃO DA ÁFRICA  E DO MUNDO, Á LUZ DE ALGUNS RELEVANTES FACTOS DA ACTUALIDADE *
Colunista

A VISÃO PAN-AFRICANISTA E NÃO-ALINHADA DE AMÍLCAR CABRAL E A ACTUAL SITUAÇÃO DA ÁFRICA  E DO MUNDO, Á LUZ DE ALGUNS RELEVANTES FACTOS DA ACTUALIDADE *

"Uma primeira expressão do fervor afro-crioulista, pan-africanista, pan-negrista, ecumênico e internacionalista de Amílcar Cabral encontra-se nalguns dos seus poemas mais icónicos e assume laivos de esfusiante entusiasmo quando, em 1949, toma conhecimento, através do seu amigo e camarada angolano Mário Pinto de Andrade, dos poemas negritunidistas de poetas francófonos reunidos e organizados por Leópold Sédar Senghor na Anthologie de la Nouvellhe Poésie Négre et Malgache, a qual contou com um marcante prefácio do filósofo existencialista francês Jean-Paul Sartre intitulado Orphée Noir”. "

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1 A VISÃO PAN-AFRICANISTA DE AMÍLCAR CABRAL

1. Característico do pensamento político-ideológico de Amílcar Cabral é o seu assumido pan-africanismo, que também se expressa com a sua identificação com as causas emancipatórias dos negros e afro-descendentes de todo o mundo, devidamente inseridas na causa maior da libertação dos povos africanos da opressão colonial e da exploração neo-colonial e dos povos do chamado Terceiro Mundo de todas as formas de dominação imperialista, bem como na causa superior da emancipação de toda a Humanidade  da exploração do homem pelo homem e da sujeição da pessoa humana a interesses egoístas e degradantes de indivíduos, grupos ou categorias e classes sociais.  

Uma primeira expressão do fervor afro-crioulista, pan-africanista, pan-negrista, ecumênico e internacionalista de Amílcar Cabral encontra-se nalguns dos seus poemas mais icónicos e assume laivos de esfusiante entusiasmo quando, em 1949, toma conhecimento, através do seu amigo e camarada angolano Mário Pinto de Andrade, dos poemas negritunidistas de poetas francófonos reunidos e organizados por Leópold Sédar Senghor na Anthologie de la Nouvellhe Poésie Négre et Malgache, a qual contou com um marcante prefácio do filósofo existencialista francês Jean-Paul Sartre intitulado Orphée Noir”.  

Essa mesma opção  pan-africanista concretiza-se depois em feitos práticos baseados numa elevada consciência nacionalista de matriz afro-crioulista e pan-africanista de Amílcar Cabral, ainda nos tempos das suas vivências e andanças lisboetas, i. primeiramente com a sua participação activa nas actividades da célebre CEI (Casa dos Estudantes do Império), de cuja Direcção foi Vice-Presidente e de cuja Secção para Cabo Verde, Guiné Portuguesa e São Tomé e Príncipe foi responsável (sendo curioso que foi essa mesma Secção originária na Casa dos Estudantes de Cabo Verde, co-fundadora, com a Casa dos Estudantes de Angola e a Casa de Goa, da CEI, que concedeu a bolsa de estudos superiores a Amílcar Cabral) e, ii. posteriormente, com a criação, com Agostinho Neto, Alda do Espírito Santo, Francisco José Tenreiro,  Marcelino dos Santos, Mário Pinto de Andrade e Noémia de Sousa do Centro de Estudos Africanos, propugnador da chamada reafricanização dos espíritos, isto é, do regresso intelectual e espiritual por parte dos estudantes e quadros africanos assimilados pela cultura escolar europeia às fontes e às raízes da identidade africana mediante o seu aprofundado e alicerçado conhecimento. 

A mesma opção pan-africanista assume novos contornos, consolidando-se, em 1957,  com a fundação, em Paris,  do Movimento Anti-Colonial (MAC), por Amílcar Cabral, Marcelino dos Santos, Mário Pinto de Andrade, Viriato da Cruz e Guilherme do Espírito Santo, o qual absorve e funde no seu seio duas organizações unitárias africanas anteriormente criadas, designadamente: 

a) O Movimento Democrático das Colónias Portuguesas (MDCP),

criado anteriormente em Lisboa, em 1954/1955, por vários  intelectuais africanos antifascistas e anti-colonialistas, com destaque para Agostinho Neto, Lúcio Lara e Vasco Cabral, todos estreitamente  ligados ao MUD (Movimento de Unidade Democrática)-Juvenil e ao PCP (Partido Comunista Português), mas sem a participação de Amílcar Cabral e Alda do Espírito Santo, entrementes regressados às respectivas terras natais, de Mário Pinto de Andrade, entretanto exilado em Paris, e de Francisco José Tenreiro, nessa altura cooptado como deputado da União Nacional colonial-fascista  pelo regime salazarista. 

Os na altura assumidos militantes comunistas Agostinho Neto, Lúcio Lara e Vasco Cabral terão presumivelmente  contribuído para influenciar o PCP (Partido Comunista Português) no sentido de este adoptar no seu VIII Congresso de 1957 um posicionamento político mais consentâneo com os posicionamentos de Lenine sobre a questão nacional e a questão colonial e, por isso, mais irrepreensivelmente anti-colonialista e inequivocamente a favor do exercício pelos povos das colónias portuguesas do seu inalienável e imprescritível direito à autodeterminação e independência política e não mais condicionado à ocorrência prévia na Metrópole colonial portuguesa de mudanças democráticas e progressistas, como anteriormente defendido de forma reiterada e  persistente  pelo mesmo partido patriótico e antifascista português. 

b)O  Movimento de Libertação das Colónias Portuguesa, fundado por Amílcar Cabral, Marcelino dos Santos, Mário Pinto de Andrade, Viriato da Cruz e Guilherme do Espírito Santo. 

Nessa sequência, o MAC fez-se  representar, em 1960, em Tunis, na Conferência dos Povos Africanos por Amílcar Cabral, Lúcio Lara, Mário Pinto de Andrade e Viriato da Cruz. Ao MAC sucede, já em Tunis,  a FRAIN (Frente Revolucionária Ampla para a Independência Nacional), a qual congrega pelo menos duas organizações políticas nacionais africanas, designadamente o PAIGC e o MPLA, prosseguindo essa  mesma organização nacionalista unitária, afro-lusófona e pan-africanista, na sequência da sua participação na Conferência de Tunis,  uma intensa campanha internacional de denúncia do colonial-fascismo português e do muro do silêncio que este logrou erguer à volta das suas colónias. Esse muro de silêncio consistia na veiculação  pelas autoridades portuguesas e pelos seus representantes por todo o lado, incluindo entre alguns  líderes africanos, da imagem colonial de uma pax lusitana na África dita Portuguesa marcada pela harmonia e pela fraternidade raciais, absorvedora e sustentada em tempos mais recentes pelas teorias luso-tropicalistas de Gilberto Freyre.

No seu temerário intento de denúncia do colonialismo português, Amílcar Cabral assumiu o pseudónimo de Abel Djassi para subscrever o texto conhecido por A Verdade sobre o Colonialismo Português (ou também Factos sobre o Colonialismo Português, na tradução mais literal do título do texto originalmente publicado em inglês), pseudónimo esse de teor mais genuinamente africano e que veio substituir o pseudónimo Abel Silva, com o qual assinara a correspondência trocada e mantida com os colegas e camaradas do MAC, repartidos entre Lisboa, Paris e Frankfurt, nos seus périplos pelas colónias portuguesas da Guiné dita Portuguesa e de Angola e por alguns países africanos, com destaque para o Gana, de Kwame Nkrumah. Essa fase seguira-se à conclusão com distinção por Amílcar Cabral dos seus estudos superiores de Agronomia em Lisboa e do respectivo estágio, no Alentejo, e do seu regresso, em 1952, ao seu país natal, onde a solicitação das autoridades coloniais portuguesas realizou o Recenseamento Agrícola da Guiné Portuguesa, o qual lhe propiciou um extenso e sólido conhecimento da Guiné profunda e das realidades económicas, sociais, culturais e políticas do país onde tinha vindo ao mundo,  havia já quase trinta anos, a 12 de Setembro de 1924, na vila de Bafatá. Amílcar Cabral regressaria à terra natal somente em 1952 depois de a ter deixado por tempo duradouro, levado para Cabo Verde, em 1932, pelo pai Juvenal Cabral, seguindo o mesmo caminho de retorno caboverdiano a mãe Iva, com quem passou  a viver durante toda a sua restante estadia em Cabo Verde nas cidades da Praia e do Mindelo, salvo durante o período de algumas férias grandes escolares que passava com o pai em Achada Falcão, no concelho de Santa Catarina, na ilha de Santiago, até que, perdidas as terras herdadas da madrinha Dona Simoa dos Reis Borges, o mesmo Juvenal Cabral mudou a sua residência para a cidade da Praia. 

É também nessa sua segunda passagem pela Guiné Portuguesa e correlativa estadia na cidade de Bissau que Amílcar Cabral intenta criar o Clube Desportivo e Recreativo, todavia não legalizado/não autorizado pelas autoridades coloniais portuguesas, por alegadamente integrar no seu seio somente pessoas naturais dessa colónia/província ultramarina portuguesa e ademais sujeitas ao minorizante e discriminatório estatuto do indigenato, e, ademais, pretendeu fundar e activar na mais profunda clandestinidade o MING (Movimento para a Independência Nacional da Guiné), em 1955, sendo por isso expulso do país natal nesse mesmo ano, para onde foi todavia autorizado a regressar uma vez por ano para visitar a mãe e os irmãos maternos. Segundo o seu próprio testemunho, constante do texto “A Evolução e as Perspectivas da nossa Luta”, foi durante a sua primeira visita aos familiares próximos quedados em Bissau que Amílcar Cabral viria a fundar, no ano de 1956, em Bissau, com um pequeno grupo de amigos e camaradas, o Partido Africano para a Independência (PAI)-União dos Povos da Guiné e de Cabo Verde. Ademais, Amílcar Cabral participou nesse mesmo ano de 1956 na fundação do PLUAA (Partido da Luta Unida dos Africanos de Angola), cujo documento fundador, o Manifesto para um amplo Movimento Popular de Libertação de Angola, viria a dar origem ao partido-movimento de libertação nacional homónimo que o adopta como manifesto fundacional e viria a agregar no seu seio os nacionalistas angolanos radicados no estrangeiro, com destaque para Conacri, capital da República da Guiné, de Sékou Touré, e outros nacionalistas angolanos activistas de vários movimentos políticos independentistas no interior do país.

1..2. A África encontrava-se nesse período numa época decisiva da sua longa e dolorosa História, qual seja a da sua libertação do jugo colonial e da dominação imperialista directa convencionalmente denominada de colonialismo clássico. Adaptando-se à mudança dos ventos da História ocorrida na sequência e como resultado  da Segunda Guerra Mundial  e visível  nos resultados do Congresso Pan-Africanista de Manchester, realizado em 1945 e liderado por Kwame Nkrumah, e da Conferência de Bandung  de 1955, somente tornada possível graças à independência política de vários países afro-asiáticos, tais, por exemplo,  a Índia, a Indonésia, a Birmânia, o Egipto, o Sudão, as potências coloniais britânica e francesa optaram pela concessão das independências às suas colónias africanas, culminando o processo no que se convencionou chamar o Ano da África, isto é, na declaração da independência nominal de várias antigas colónias francesas e britânicas, o processo independentista durante todo o ano de 1960, concluindo-se grosso modo o mesmo processo independentista nos anos setenta, oitenta e noventa do século XX. 

A  África que, nos anos sessenta do século XX,  resultou das independências políticas das colónias britânicas e francesas bem como de uma única colónia espanhola, a Guiné-Equatorial, era uma África traumatizada por séculos de tráfico negreiro e comércio triangular, por mais de um século de ocupação e administração coloniais directas e efectivas no quadro do chamado colonialismo clássico e que proporcionaram a emergência e a sedimentação do inferno do subdesenvolvimento caracterizados por economias duais e dependentes do centro imperialista e marcado pelo medo, pela ignorância, pelo obscurantismo, pela miséria, pela pobreza extrema e por quotidianas humilhações. 

Essa África era ademais uma África eufórica em razão das independências políticas recentemente adquiridas e conquistadas, mas manchada pelo traiçoeiro assassinato de Patrice Lumumba e dividida entre, por um lado, países somente nominalmente independentes e que continuavam gravitando sob a tutela política e as dependências económica, cultural, militar e político-diplomática das antigas  potências coloniais e se congregaram no chamado Grupo de Monróvia  e, por outro lado, países que se estribavam de forma resoluta, séria e firme, em alcançar a sua independência económica e consolidar a sua independência política e a sua emancipação cultural, libertando-se total e definitivamente da tutela colonial. São esses dois grupos de países que, depois de muitas controvérsias, dissensões e rivalidades, lograram reunir-se sob uma plataforma política mínima e compromissória a 25 de Maio de 1963, em Adis Abeba, capital da mítica Etiópia, para criar a Organização da Unidade Africana (OUA) e, encorajada pela Resolução  1514 (XV), de 14 de Dezembro de 1960, da Assembleia-Geral da  ONU, sobre a outorga da independência aos povos coloniais,  adoptar a sua Carta constitutiva, cuja agenda fundamental e prioritária era a libertação total da África da dominação colonial (em especial de Portugal e de Espanha, mas também da França, que nessa ocasião continuava a manter algumas colónias, no Corno de África e no Oceano Índico, mantendo até à actualidade colónias no Oceano Índico, nas Caraíbas e na Oceânia com o estatuto de DOM/TOM) e da dominação racista e segregacionista das minorias brancas na África Austral, por Amílcar Cabral denominada racismo colonialista. 

Estes últimos objectivos da OUA somente seriam totalmente conseguidos nos anos noventa do século XX, se nos abstrairmos dos casos do Sahara Ocidental, anexada pelo Marrocos e, temporariamente, pela Mauritânia depois da retirada espanhola, e declarada independente e soberana pela Frente Polisário que logrou fazê-la admitir na OUA e actualmente aguarda a realização de um referendo de auto-determinação sob o patrocínio da ONU,  da ilha da Reunião, desde há muito tornada um DOT (Département d’Outre-Mer-Departamento Ultramarino, da França), bem como da ilha do Mayote, anexada pela França como um seu Departamento, depois de a maioria da sua população se ter pronunciado em referendo contra a independência política, contrariamente ao sentido de voto independentista e soberanista  das restantes ilhas comorianas. 

1.3. É no contexto da luta de libertação binacional dos povos da Guiné dita Portuguesa e de Cabo Verde conduzida pelo PAIGC que Amílcar Cabral formula e aprofunda duas vertentes fundamentais da sua doutrina político-ideológica e do seu pensamento teórico, quais sejam a unidade africana e o não alinhamento. 

No que diz respeito à unidade africana, Amílcar Cabral diz-se a favor da unidade africana no todo do continente africano e/ou das suas diferentes regiões, defendendo que essa unidade deveria ser feita por etapas e gradualmente e com respeito estrito das identidades políticas dos diferentes Estados africanos emergentes das lutas anti-coloniais e no quadro das fronteiras legadas pelo colonialismo clássico que, aliás, foram assumidas enquanto principios da intangibilidade das fronteiras coloniais e da integridade territorial contra agressões externas pela OUA na sua Carta Constitutiva.

O princípio da unidade entre a Guiné e Cabo Verde é considerada por Amílcar Cabral como um valioso contributo do PAIGC para a prática realização da unidade africana. Relembre-se que, aquando da formulação desse princípio essencial e impreterível da identidade política do PAIGC, o princípio da unidade africana fazia furor entre os nacionalistas africanos das diferentes colónias, tendo-se constituído várias organizações políticas supra-nacionais, como por exemplo, a RDA (Rassemblement Démocratique Africain) e o PDA (Parti Démocratique Africain), actuantes nas colónias da chamada África Ocidental Francesa e África Equatorial Francesa) e várias uniões económicas aduaneiras entre as antigas colónias francesas e precursoras da futura Françafrique do famigerado e neo-colonial Franco CFA, e algumas uniões políticas de natureza confederativa, federativa ou assimiláveis a uma união real, como, por exemplo, a Federação do Mali entre o Senegal e o antigo Sudão francês, a União entre o Gana e a República da Guiné, a Senegâmbia entre o Senegal e a Gâmbia, todas de duração efémera, e a Tanzânia, entre a Tanganica e o Zanzibar, a qual  perdura até aos dias de hoje.

Casos particulares constituíram os países que, tendo sido colónias de potências europeias perdedoras da Primeira Guerra Mundial, como a Alemanha, ou da Segunda Guerra Mundial, como a Itália, viram algumas das suas antigas colónias africanas serem divididas e cedidas pela Sociedade das Nações e, depois, pela ONU a países vencedores das duas Guerras Mundiais acima referidas, como a Grã-Bretanha e a França, em regime de tutela. São os casos dos Camarões (re)unificando depois das respectivas independências e, por vezes, precedidas de referendos, a antiga colónia francesa dos Camarões e a antiga colónia britânica dos Camarões, e da Somália que (re)unificou a antiga Somália italiana e a antiga Somália britânica, tendo-se actualmente, e em tempos sequentes à queda do ditador nacionalista revolucionário Siad Barre, retrocedido às antigas fronteiras coloniais. 

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