Vão estes textos prosseguindo, cada número com uma “personalidade” inesperada, ditada pela interatividade da comunicação, diferente do que fora previsto quando escrevi um conjunto fechado de 18 artigos (a que me referia no Leak Zero). Ela deriva da necessidade de esclarecer algumas questões “au fur et à mesure” que comentários pertinentes o tornem conveniente.
E é o caso dum comentário ambíguo a que me vou referir e que tanto poderá ter partido duma real dúvida do comentarista como, muito mais provavelmente, constituirá um primeiro e tímido romper de silêncio, lançando, como sói dizer-se, um verde, para colher de mim o maduro e ficar a saber até onde sei de certas coisas. Mais especificamente, saber ao certo se me dei conta duma falsificação feita num livro da conservatória da Praia até hoje não conhecida do público.
O comentarista critica aquilo a que qualifica de minha parcialidade porque, diz ele, só falo “de ilegalidades cometidas a partir de 1954”, ignorando eventuais outras anteriores, essas dos Tavares Homem (TH). E esclarece, com ar de modéstia: “Não posso confirmar nem desmentir as fraudes denunciadas pelo Dr. Rui Araújo. Não sou topógrafo nem Dr. em coisa alguma, nem tenho elementos suficientes para isso ou para acusar quem quer que seja. Apenas gostaria de ver esclarecidas as questões que coloquei, podendo haver respostas perfeitamente razoáveis para as mesmas”.
É, contudo, óbvio que ele se faz de menos entendido do que é. Na verdade, reporta-se a uma descrição errada do prédio 3.561 que, realmente, poderia derivar, como ele mesmo diz, de simples erro ou de fraude, fosse dos TH ou do conservador, em 1907. Ora, só se apercebe desse facto quem consultou os livros da conservatória e tem ideia topográfica dos prédios.
Acredita ele talvez que tomando-se por verdadeira a informação do erro, estaria encontrada uma vereda pela qual poderia tentar-se fazer singrar uma explicação para a fraude de 1954 que lançasse alguma dúvida sobre o que o Dr. Vieira Lopes, eu mesmo e a acusação do Ministério Público dissemos.
Só que – e é aqui que bate o ponto! - há uma anotação, na mesma folha da descrição errada de 1907, que a dá por “sem effeito” (dois “tt”, na escrita da altura), com assinatura do próprio conservador autor do erro. Esse “sem effeito” está em dois lugares diferentes da mesma folha: num refere-se à descrição errada do 3.561, noutro a uma (errada) inscrição de direito em nome de pessoa que comprou o prédio de descrição errada.
O comentarista desconhece (como faz crer) essas anulações, ou conhece-as e quer tranquilizar-se sabendo se eu também as conheço? Explico-me:
As referidas anulações não são visíveis senão por quem, suspeitando haver marosca no caso, investigar. É que elas (isto é, os dois “sem effeito”) estão cobertas e encobertas por rabiscos, incluindo um número, constituindo estes uma falsificação do livro.
Cheguei a essa falsificação ao analisar uma certidão de 2020 contendo uma descrição de 1907 do 3.561 que logo notei ser claramente errada, sendo muito estranho que nunca a tivesse visto em certidões. Fazendo um zoom no computador, vi rúbricas em dois lugares com garatujas, notei que eram iguais à que vinha na mesma folha no fim da descrição errada e finalmente descobri, por baixo da garatujas, os “sem effeito”, muito nítidos.
Ignoro, obviamente, a data dessa proeza de garatujas (a falsificação). Poderá ter sido praticada em 1954 ou nos anos noventa. Mas, pelo acima dito, deduzo que será coisa de dias mais atuais.
Vejamos agora aonde quis chegar o falsário ao esconder com garatujas a anulação dos erros de 1907. Para isso, nada como consultar o mapa anexo para ver que, não sendo tal erro anulado, poderia talvez dizer-se, a favor da causa da ENAVI, que esta adquiriu e vendeu à EFE, Sarl, sociedade de que é sócio Arnaldo Silva, terreno dentro do 5.779, este arrematado por Fernando Sousa (FS) em 1954, e não dentro do 3.561, dos TH.
Expliquemos isso com a calma que é mãe da simplicidade:
Veja o mapa. A soma da área do prédio 3.561 com a área do 5.779 correspondia a um prédio descrito e inscrito em fevereiro de 1887 em nome de Dona Lourença Tavares Landim, esposa de Manuel Tavares Homem, de quem eram netos António Gil e João de Deus TH.
Imagino o leitor a comentar: mas tudo isso só para um casalinho feliz?!
Esclareço que se tratava dum morgadio e que o total pertencente ao mesmo morgado envolvia ainda a área dos prédios 3.562, 5.210, 5.780 e muitíssimas outras áreas. Mas teremos oportunidade de conversar sobre os morgadios em Cabo Verde e o seu fim em 1864, através de lei que os baniu de vez depois duma “longa agonia”, como escreveu o antropólogo João Lopes Filho, numa monografia memorável, com prefácio de António Correia e Silva, a que faremos alusão.
Dez anos depois, falecidos Lourença e Manuel, viria a elaborar-se um auto de “vistoria, divisão e demarcação”, no âmbito dum processo judicial, em que o 3.561 seria dividido em duas partes, registadas em 1902: uma, que manteve o n.º 3.561 e outra, n.º 5.779. Exatamente como no mapa se figura.
Acontece que em agosto de 1907 o 3.561 reduzido (só ele, não também o 5.779) foi registado, indiviso, em nome de António Gil e João de Deus. Mas, ainda em agosto do mesmo ano, aparece, sem qualquer explicação, uma descrição do 3.561 no seguinte percurso falso: subindo na linha divisória entre os dois prédios, chega-se lá em cima, a norte, e vira-se para esquerda (em vez de para a direita), de modo a cobrir todo o 5.779, ignorando o verdadeiro 3.561.
Feito isso, em 19 de outubro do mesmo ano os proprietários do 3.561, assim descrito erradamente (isto é, cobrindo apenas o 5.779 e ignorando o 3.561), vendem-no ao Coronel Augusto Fructuoso Figueiredo de Barros, que era Secretário-Geral do Governo.
Como já disse, de minha parte, desconhecia essa descrição errada e absurda, pois nunca a vira nas certidões, mas descobri que tanto ela como a inscrição com base nela efectuada estavam dadas por “sem effeito”, pelo próprio conservador, por baixo dos gatafunchos falsificadores posteriores.
Tal como o comentarista anónimo, também não sei se o ocorrido em 1907 foi fruto de simples erro sem má fé, ou de fraude. Pode ter acontecido que ao comprador tenha sido devolvido o preço recebido, mas isso é-me também indiferente, por ser irrelevante para os meus propósitos. Era o que faltava eu tirar-me dos meus cuidados para investigar fraudes do passado, como quem quixotescamente entendesse dever o machado da História cair sobre a cabeça dos autores dessas fraudes ou seus decendentes.
Faço notar que as minhas referências à fraude ocorrida em 1954 talvez nem tivessem acontecido se ela, apesar de tudo, tivesse sido juridicamente suficiente ou justificativa dos atos praticados nos anos noventa. Mas não era, porque ela não conferiu direito de propriedade ao seu autor, como já explicado e FS/NANÁ muito bem sabe.
Ou seja, só a fraude dos anos noventa me preocupa realmente, pelas suas cumplicidades e consequências e por tudo o que ela significa de corrupção no meu país atual.
Se hoje alguém registasse em seu nome em Cabo Verde áreas tão extensas como as de Manuel e Lourença em 1887, seria caso para revolta, mesmo sendo, como era, um registo legal. Mas alguém preocupar-se hoje com a legalidade do registo de 1887 seria, salvo numa circunstância como a criada por FS/NANÁ, ridículo.
Voltando ao ponto, o que sei e importa é que todos os citados erros de 1907 foram dados por sem efeito, isto é, anulados, mas essa anulação foi escondida por garatujas que falsamente mantinham o erro. E o comentarista não sabia dessa falsificação? - desculpe a pergunta indiscreta.
Mas... mesmo que os erros de 1907 não tivessem sido dados por sem efeito ou, tendo-o sido, não tivesse sido detectada a falsificação para apagar a anulação, que vantagem retiraria a ENAVI?
Faço esta pergunta porque o comentarista anónimo (que também parece gerir interesses da ENAVI) vai logo concluindo que tendo havido mudança recíproca (de boa ou má fé não importa) de posição entre o 3.561 e o 5.779 em 1907, resulta que o terreno “adquirido” pela ENAVI “pode ficar” dentro do 5.779 arrematado por FS e não dentro do 3.561, dos TH. Ora,
Primeiro e como se viu, não houve mudança de posição dos terrenos, que aliás seria fisicamente impossível. O 3.561 ficou onde estava e foi referenciado erradamente no local do 5.779, que também não saíu do seu lugar. Erro esse que, de todo o modo, foi dado por sem efeito em todas as suas consequências.
Segundo, nem o 3.561, nem o 5.779 podiam passar para a ENAVI, fosse por usucapião ou por outra via, sem uma intervenção da vontade do titular inscrito: FS, no caso do 5.779, efetivamente arrematado, ou os TH ou FS quanto ao 3.561, inscrito em nome de ambos em duplicação derivada do ilegal alargamento do 5.780 também arrematado.
Terceiro, o caso da ENAVI, inicialmente uma empresa pública, que produziu (oiça-se: PRODUZIU!) em pavilhões para aves e depois vendeu 5 hectares de terrenos que nunca adquiriu, é vulgar ilegalidade na ilha de Santiago que não me interessa aqui senão para evidenciar a mentira de FS/NANÁ: comprador de terreno dentro do prédio de que falsamente alegava ser dono (de mais de 300 hectares).
Mais: Lembre-se que apesar de FS os ter registado ilegalmente como uma propriedade perfeita abrangente, o que ele arrematou foi a mera posse do 5.779 e do 5.780, que desde 1938 estavam em nome de João de Deus por justificação judicial. Ora, se em 2014 a EFE Sarl do Naná de FS/NANÁ tivesse comprado na ENAVI terreno dentro do 5.779, isso só evidenciaria que, apesar da arrematação, NEM A POSSE DESSE PRÉDIO FS JÁ TINHA EM 2014.
Seja como for, com a falsificação anulando o “sem effeito” FS/NANÁ esperaria ganhar contra os TH que reivindicam o terreno do 3.561, dizendo que ele passou a ser o 5.779 arrematado. Mas na verdade, se o 3.561 tivesse passado a ser 5.779, o inverso teria também acontecido, quando é certo que o registo “mundial” de FS cobriu tudo: esquerda, direita, centro, riba e baxu.
Lembra-me o sujeito maneta que, ostentando a mão direita, se gabava de sua rapidez e inteligência instantâneas pois, sendo dextro e vendo-a já a entrar por entre os cilindros dum trapiche, ainda a substitíu rapidamente pela mão esquerda.
Termino na ansiedade de saber quem foi o autor da nova proeza. Toda a gente sabe que matriz nas Câmaras não passa de cachorro amarrado com linguiça de IUP e mais-valia. Mas falsificação agora em livro da conservatória, meu Deus?!!!
Como pista, sugiro se procure saber se algum cidadão importante frequentava a conservatória como se fosse seu escritório e era visto de balcões para dentro a consultar livros. Não para suspeitar dele, mas porque talvez ele pudesse ajudar nisso.
E com isso me despeço até ao próximo número, meditando no dia em que entre nós o poder público alcance ao menos o poder privado pressuposto no parágrafo antecedente.
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