Decorridos os quase 30 anos do poder local em Cabo Verde, as eleições autárquicas de 2020 serão desafiadoras, quer para os proponentes das plataformas e programas eleitorais quer para os eleitores. Aos candidatos ao poder local, o momento será de proporcionarem aos munícipes oportunidades de avaliar e experimentar visões novas, claras em termos de estratégia e inovadoras em termos de liberdade e autonomia na condução dos destinos dos municípios Cabo-verdianos. E, os eleitores estarão à prova na sua capacidade de analisar, avaliar e escolher ou não os candidatos/plataformas.
Alguns autarcas no poder já manifestaram a disponibilidade de continuar (outros até já iniciaram a campanha) e alguns cidadãos ligados aos partidos políticos declararam intentos de liderar as candidaturas para 2020. Mas, o momento será desafiador e muito exigente.
Volvidos quase 30 anos, é preciso afirmar e consolidar os poderes consagrados nos estatutos dos municípios dos anos 90, alguns até não explícitos, mas consagrados implicitamente. É momento dos autarcas se afirmarem como “poder” na definição e implementação de uma visão e agenda própria de desenvolvimento local e no reforço da autonomia administrativa e financeira. Para tal, esperam-se plataformas em que a visão e a estratégia assentem nas potencialidades e especificidades de cada município e que as políticas públicas e ações sejam coerentes com os recursos endógenos, necessidades e anseios da população. Esperam-se autarcas capazes de demarcarem-se, se necessário, do programa ou da visão do governo e, a partir das especificidades territoriais, potencializar o seu município; que construa a sua marca e proporcione efetivamente melhores condições de vida ao povo. Sobre este assunto questionamos: Que município cabo-verdiano consegue se diferenciar? Que município cabo-verdiano tem uma marca própria? Porém, é basta olharmos para as características territoriais e potencialidades nos mais diversos domínios: da agricultura, pesca, criação de gado, cultura, desporto, turismo, comércio, etc. para concluirmos que os municípios (pelo menos em grupo) deveriam diferenciar-se e construírem marcas próprias. E, se não as conseguimos até agora é porque falhamos.
Talvez o melhor exemplo de fragilidade, falta de autonomia e independência, na definição e implementação de uma visão e agenda local é o que vem acontecendo desde 2016, com o lema “Juntos somos mais fortes” durante a campanha autárquica e agora “Juntos para continuar no poder”, patenteando que o governo e as câmaras, salvo uma ou outra exceção, se confundem numa só visão e estratégia e num só programa. Ora, se assim é como é possível a diferenciação, construção e implementação de agenda própria? De 2016 até então, as câmaras aderiram ao único Programa de Requalificação, Reabilitação e Acessibilidades (PRRA) do governo central (umas mais, outras menos) e, acontece que o programa e as suas intervenções têm o mesmo formato e modelo para todos os municípios, quando na verdade as suas características e vocações são distintas a olho nú. São os mesmos PAVE´s que se colocam em Calheta de São Miguel que são semeados em Santa Catarina de Santiago, São Lourenço dos Órgãos, Picos e em outros municípios. São as mesmas características de estradas (calçadas) para o mundo rural da Calheta e de Santa Catarina. São os mesmos formatos de arruamentos, que se convencionou chamar de “requalificação urbana” das cidades da Praia e Assomada. São os mesmos metros ou Km de PAVE´s para orlas marítimas de Santa Catarina e da Calheta. São as mesmas intervenções nas casas (coberturas a “roseletes”, rebocos e pinturas de fachada) que se convencionou de reabilitação nos Picos e Órgãos. Mas também são os mesmos níveis de abandono das populações rurais e das potencialidades destas e das zonas piscatórias de Santa Catarina que se verificam em Calheta de São Miguel, isto porque os seus autarcas abraçaram e mergulharam no PRRA com a mesma profundeza que o da Praia.
Tudo isto porque o governo definiu e formatou o PRRA num modelo e formato em que, infelizmente, os autarcas não tiveram capacidade ou coragem de propor alterações ou refutar. E, cegamente, salvo um ou outro município, aderiram com profundeza ao programa que propõe ações que, em muitos casos, não são prioritárias e nem tem impacto na vida das famílias. Alias, se é verdade dizer que este é o pior governo de todos os tempos também não é menos verdade que é a pior vaga de autarcas (sem poder, sem agenda e de mãos dadas e estendidas ao governo de Ulisses Correia e Silva) – Autarcas do PRRA, se juntam ao cúmulo do governo para uma inauguração que menos de 10 mil contos custam ao tesouro do Estado.
Para nós, ao contrário do que se pensa, os municípios que mais aderiram ao PRRA, com obras de PAVE´s, rua pedonal sem levar em consideração as características ou funcionalidades, praças em sítios estratégicos (marketing), estradas rurais à calçada, casas a “roseletes” e que, por conseguinte, mais imagem construíram são os que mais hipotecaram o desenvolvimento local (caso de São Miguel e Santa Catrina de Santiago). E, os que por receio ou refutação menos aderiram ao PRRA (de Mosteiros no Fogo) são os que menos comprometeram o desenvolvimento local, estando ainda em reserva as potencialidades e prioridades locais. Portanto, as populações devem estar atentas e não darem ao luxo de aplaudir e, porventura, escolher o autarca que quer renovar mandatos porque mais endividou as suas contas, porque mais metros de PAVE´s se fez somar ou porque maior foi o “mergulho” no PRRA. Devem sim, analisar com cuidado redobrado as propostas e projetos, sob pena de continuarmos a erodir e hipotecar o desenvolvimento local.
A nosso ver os autarcas deveriam ter proposto, em 2016, que o PRRA não fosse um programa do governo, mas sim projetos das câmaras lá onde se considerem pertinentes e prioritários e, ainda que fosse do governo deveria ter algum nível de flexibilidade nos modelos e formatos de intervenções, abrindo possibilidades de ajustes às diferentes realidades locais. O governo central ao invés do PRRA no formato que apresentou deveria ter criado e proposto apenas uma de linha de financiamento aos projetos municipais de natureza e formatos diversificados, avaliados por uma comissão e submetidos pelas equipas camarárias. Projetos estes que deveriam ser, a partir de uma visão e estratégia, ancorados nas potencialidades e prioridades de cada município.
Portanto, em 2020 esperam-se autarcas ousados, com elevado nível de espírito crítico, que definem uma visão, uma narrativa própria e uma agenda clara de desenvolvimento local, que apresentem plataformas inovadoras, mas também capazes de marcarem a diferença no relacionamento com o governo central (não em espécies de Delegados) e que, acima de tudo, consigam traduzir potencialidades em visão e marca, com impacto direto no rendimento e na criação de riqueza local para as famílias e empresários. Esperam-se autarcas que pensem com as suas próprias cabeças na execução das políticas públicas realistas e conducentes ao bem comum.
Que as forças partidárias filtrem a bolsa de candidatos capazes de cumprir os desideratos e anseios supracitados e que o povo soberano tenha a sensatez na sua escolha.
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