Gerente, contribuinte e penalizado: quando a legalidade fere a razoabilidade
Ponto de Vista

Gerente, contribuinte e penalizado: quando a legalidade fere a razoabilidade

Apesar das campanhas estatais a favor da formalização das empresas e dos seus gestores, a legislação cabo-verdiana continua a impor barreiras legais e contribuições redundantes que, em vez de facilitar a regularização, a tornam quase impossível. A exigência de inscrição obrigatória do gerente em cada empresa onde exerça funções, mesmo já estando inscrito no INPS, é apenas uma das contradições gritantes de um sistema que se diz amigo do investimento, mas que na prática penaliza quem tenta cumprir a lei.

Era uma vez um pequeno empresário cabo-verdiano que, como tantos outros, tentou fazer frente à adversidade. Abriu uma empresa modesta, operando no setor dos serviços, e colocou um familiar próximo como gerente, alguém de confiança, com provas dadas na gestão e, acima de tudo, já inscrito e contribuinte ativo do sistema nacional de segurança social, por conta de uma outra empresa. O negócio avançou com dificuldades, como é costume, e, quando a empresa não teve outra alternativa senão fechar as portas, deparou-se com um novo e surpreendente obstáculo: o Instituto Nacional de Previdência Social (INPS) recusava-se a aceitar a regularização do passivo contributivo e a negociar o plano de pagamento... porque o gerente não estava inscrito no INPS por esta empresa.

Perante esta exigência, que poderia parecer apenas mais uma formalidade administrativa, surge uma pergunta inevitável: deve o direito, em nome da legalidade, atropelar a razoabilidade e os princípios constitucionais que lhe dão vida?

O Decreto-Lei n.º 46/2006, de 9 de outubro, que regula o enquadramento dos membros dos órgãos estatutários no regime obrigatório de proteção social, é claro ao impor a inscrição dos gerentes enquanto contribuintes do INPS, mesmo quando estes já se encontram inscritos por outras entidades. O artigo 1.º estabelece a obrigatoriedade do enquadramento, e o artigo 3.º, que trata das exceções, restringe-as a situações em que o gerente já seja trabalhador da mesma entidade – o que exclui, por completo, os casos em que o gerente já está inscrito por conta de outra empresa.

Esta formulação legal e a prática por parte do INPS têm consequências que vão muito para além da letra da lei. Estamos perante um entendimento legal rigorista, formalista e desproporcional, que penaliza as empresas, impede negociações essenciais à sua regularização e, por via disso, coloca em causa os direitos dos trabalhadores e a própria sustentabilidade do sistema contributivo.

Mais grave ainda é o facto de que esta prática colide com a própria narrativa institucional do Governo e do INPS, que, nos últimos anos, têm promovido diversas campanhas públicas de sensibilização à formalização das empresas, dos empresários e dos trabalhadores independentes. É comum ver anúncios, spots de rádio e reportagens incentivando a inscrição no INPS, a abertura de empresas e a adesão à economia formal como fatores de crescimento, estabilidade e inclusão social.

Contudo, ao mesmo tempo que apela à formalização, o Governo mantém um regime legal que impõe obrigações excessivas e desproporcionais, especialmente a micro e pequenas empresas. A exigência de inscrição redundante do gerente – mesmo já estando ele plenamente coberto pelo sistema – é apenas um exemplo de como a legislação vigente dá com uma mão e tira com a outra, criando obstáculos injustificados a quem já enfrenta enormes desafios para cumprir as suas obrigações fiscais e contributivas.

Em comparação, o ordenamento jurídico português apresenta uma solução mais ajustada à realidade. Em Portugal, os gerentes das sociedades são geralmente enquadrados como trabalhadores independentes, e a sua inscrição na segurança social não tem de ser replicada por cada empresa onde exerçam funções, desde que já estejam cobertos por outra entidade ou atividade. É uma lógica de racionalidade e eficiência, que respeita a capacidade contributiva efetiva do sujeito e evita a duplicação de obrigações sem sentido prático.

Ao contrário, o regime cabo-verdiano não distingue entre real capacidade contributiva e obrigação formal, exigindo que cada empresa, ainda que sem pagar qualquer remuneração ao gerente, o inscreva e contribua por ele. Isto viola o princípio da proporcionalidade, consagrado na Constituição da República, que determina que as intervenções do Estado na esfera jurídica dos cidadãos devem ser adequadas, necessárias e proporcionais. E colide, também, com o princípio da igualdade, ao tratar desigualmente situações substancialmente idênticas — por exemplo, dois gerentes com igual proteção social, mas penalizados de forma distinta consoante o número de empresas onde exercem funções.

Este quadro legal, além de carecer de bom senso, revela-se economicamente contraproducente e juridicamente indefensável. Penaliza-se o empreendedorismo, inibe-se a liberdade de organização societária e compromete-se a recuperação de empresas em dificuldades, que se vêm impedidas de negociar com o INPS por uma exigência legal inflexível e materialmente injustificável.

Mais do que um detalhe técnico, estamos perante um problema de política legislativa e justiça social, que urge ser corrigido. A legislação deve servir as pessoas e as empresas, não transformá-las em vítimas de interpretações burocráticas cegas. Cabe ao Governo, nas vestes de legislador, rever o regime, introduzindo critérios de razoabilidade, isenção e adequação, que respeitem os direitos fundamentais, promovam a formalização empresarial e não transformem os gerentes em fardos tributários desnecessários.

Se é verdade que o Direito é feito de normas, não é menos verdade que ele só cumpre o seu papel quando interpretado e aplicado à luz dos princípios que o legitimam e satisfaça a necessidade de justiça. E um sistema de segurança social não pode exigir o impossível, nem negar a colaboração de quem quer regularizar-se, apenas por não ter preenchido uma formalidade que, em substância, nada altera.

Porque, no fim, não se trata de saber se o gerente assinou mais um papel. Trata-se de saber se o Governo cumpre ou não com a sua obrigação de respeitar a justiça — e de ser coerente com aquilo que apregoa.

 

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