Deputados, sim. Funcionários coloniais, não.
Ponto de Vista

Deputados, sim. Funcionários coloniais, não.

A classificação da língua portuguesa como património cultural imaterial, numa altura em que a língua que é a maior expressão da nossa identidade cultural, do nosso modus vivendi e da nossa forma de ser e estar no mundo, vive no exílio na sua própria terra natal, revela-se um grande insulto, desdém e provocação aos falantes da língua cabo-verdiana.

Soube, através da rede social, que o parlamento cabo-verdiano agendou para a próxima sessão, que arranca na próxima quarta-feira, a discussão do projeto de lei que classifica a língua portuguesa como património cultural imaterial de Cabo Verde, apesar do parecer negativo do IPC. Será esta mais uma manobra de diversão para desviar a nossa atenção dos problemas reais e atuais do país?

A insistência em levar a cabo este projeto de lei revela uma das deficiências do exercício do poder em Cabo Verde, que parece conferir aos detentores do poder político a sabedoria suprema, inacessível aos demais membros da sociedade, ao ponto de desprezarem o savoir- faire dos técnicos que laboram nas mais diversas áreas.

O grupo parlamentar do MPD deve demarcar-se da atitude da deputada que elegeu a polémica como arma de ascensão na carreira política. Quem merece todo o suporte político é o Ministro que tutela o IPC e que foi desautorizado com esta iniciativa.

Seria bom que a deputada Mircéa seguisse o exemplo dos políticos de Santo Antão. Grandes investimentos estão a levar para a Ilha das montanhas e, a nossa ilustre deputada que devia estar preocupada com a retoma económica e a recuperação da dinámica industrial na ilha que a a legeu, prefere através da procura de protagonismo e charme político trazer à  ribalta um assunto que nada agrega a língua portuguesa e nem contribuí para o seu desenvolvimento.

O que a ilustre representante da nação não percebeu é que o problema da língua portuguesa em Cabo Verde não é um problema de estatuto, pois é a única língua oficial em Cabo Verde e, por extensão, a língua de status social, privilégios e poder. Como dizia um exímio linguista, “ language is a dialect with an army and a navy”  que traduzido é:  língua é um dialeto com exército e marinha. A língua que, por inerência da sua condição juridico- constutucional, cumpre cabalmente esta funçaõ em Cabo Verde é somente a língua portuguesa. Por isso, o problema tem sido de ordem social e didático e não formal, legal ou institucional, como nos tenta persuadir a pensar.

A hostilização e diabolização da língua e cultura cabo-verdianas no periodo colonial geraram anticorpos em relação a língua portuguesa, o que inibiu a sua penetração na sociedade e a restringiu a ambientes formais e institucionais.

A metodologia usada para o seu ensino, com foco na estrutura da língua e ensino explícito

da gramática e  desconsideração pela abordagem comunicativa da língua, foi um fator inibidor da fluência oral e conspurcou o desenvolvimento do nível de proficiência linguística de milhares de cabo-verdianos no país e na diáspora.

A resolução deste problema passa por adoção de curricula funcionais, abordagem comunicativa da língua, foco nas competências comunicativas, na compreensão e produção orais e escritas, nos programas de mobilidade e imersão linguística nos países onde a língua portuguesa é língua materna, nos laboratórios de língua e no uso da língua para o desenvolvimento do pensamento de ordem superior teorizado por Bloom na sua taxionomia e desenvolvimento de pensamento lateral teorizado por De Bono, sem desprimor pelas hipóteses de Krashen.

Por outro lado, é mister refutar teses superstratistas e  pensar a política linguística na lógica da de bilinguismo funcional, levando a língua portuguesa a sociedade e tirar a língua cabo-verdiana de marginalização e subalternidade para que, numa perspetiva de parceria win-win, complementaridade, subsidariedade, comparação e contraste nas questões de ordem morfológica, sintática, fonetico- fonológica e semântica, possamos mitigar o efeito de interferência da língua cabo-verdiana na língua portuguesa.

O que a deputada Mircéa propõe revela uma tentativa atávica de reproduzir, sub-repticiamente, a lógica colonial da marginalização da língua cabo-verdiana, através de medidas de políticas  paternalistas e glotofagistas da língua portuguesa em relação a língua cabo-verdiana.

A classificação da língua portuguesa como património cultural imaterial, numa altura em que a língua que é a maior expressão da nossa identidade cultural, do nosso modus vivendi e da nossa forma de ser e estar no mundo, vive no exílio na sua própria terra natal, revela-se um grande insulto,  desdém e provocação aos falantes da língua cabo-verdiana.

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