A ENEP: entre a mercadorização do Estado Social e uma nova miragem nacional
Ponto de Vista

A ENEP: entre a mercadorização do Estado Social e uma nova miragem nacional

O Estado de Bem-Estar deve orientar-se pelos “melhores padrões de qualidade, e não uma igualdade das necessidades mínimas”. Os programas sociais implementados devem permitir que aqueles que têm sido sistematicamente penalizados por ciclos de políticas exclusivistas, e relegados para a condição de pobreza abjeta ao longo dos anos, tenham finalmente a oportunidade de se libertarem dessa condição, e de se afirmarem livres de qualquer tipo de opressão e exploração. A universalização e o aumento significativo do valor das prestações dos diversos programas sociais, que enquanto um direito que gozam os seus recipientes, deve ser garantido com recurso a impostos e taxas, associando-se a uma melhor eficiência administrativa do Estado. Um rendimento tão baixo como aquele que o RSI atribui (5,500 ECV/agregado familiar) não permite que o seu recipiente invista em qualquer tipo de atividade económica e/ou no seu capital humano (e dos seus dependentes), que futuramente lhe possa garantir a autonomia e independência económica, sabendo que a sua prioridade é a sua subsistência diária.

“Um povo não deve ter vergonha de sua pobreza, e sim de não combatê-la”,

Péricles
 

Por que razão existem ricos e pobres? Colocando a pergunta de uma outra forma, o que explica a diferença de rendimentos num país, onde uns vivem em abundância enquanto outros dificilmente conseguem ter o mínimo necessário para suprir as suas necessidades básicas do dia a dia? A pergunta é antiga, e ao longo do tempo tem gerado um número incontável de teorias em vários domínios do saber, desde as Ciências Humanas às Ciências Naturais. No campo das Políticas Públicas, entendidas como um “curso de uma ação ou inação” por parte do governo, com o propósito de resolver um problema público – a pobreza por exemplo, a resposta encontra-se na inclusividade e/ou exclusividade das instituições políticas e económicas que governam o Estado, e que por meio delas dá-se a produção e a distribuição de riqueza.

As instituições inclusivas, como o próprio nome sugere, assentam-se e cristalizam-se em normas, práticas e narrativas institucionais que fomentam a integração e a participação de todos no processo de governação, produção e usufruto de bens públicos coletivos. Por serem inclusivas, elas “reforçam os direitos de propriedade, criam condições de concorrência equitativas, e incentivam investimentos que são propícios à inovação e ao crescimento económico”. Por sua vez, as instituições exclusivas ou extrativas, cristalizam-se num sistema de normas e práticas políticas, económicas e sociais contínuas de extração de recursos públicos, e distribuídos de forma desigual e injusta, beneficiando uns “poucos” (a elite), enquanto obstaculizam a plena participação e acesso de oportunidades por parte de todos os cidadãos. Essas instituições dissipam o valor da economia, ao promoverem a naturalização das desigualdades socioeconómicas, e, por conseguinte, a marginalização e a estigmatização dos “excluídos”, os pobres. São as instituições inclusivas que, difininas com base em princípios de igualdade equitativa de oportunidades e de diferença, constituem os fundamentos e os pilares da justiça social (Rawls,1971).   

Assim, uma estratégia para a erradicação da pobreza (extrema), como se pretende com a ENEPE, deve estribar-se num quadro institucional inclusivo em todas as suas dimensões, que primam e valorizm a justiça e a inclusividade de todos os cidadãos na cadeia produtiva de bens económicos e de distribuição da riqueza nacional, e não se resumir simplesmente a um conjunto de “medidas de discriminação positiva a prazo”, cujos benefícios são distribuídos numa lógica assistencialista e paternalista.

É mister dizer que a erradicação da pobreza tem sido sempre um princípio norteador da governação em Cabo Verde desde a sua independência em 1975. Vários programas foram desenhados e implementados ao longo dos anos para debelar a pobreza no país, sobretudo no meio rural, de entre os quais se destacam: “Apoio/Strada” (FAIMO e AIMO) até os anos 90s, o PNLP, o POSER, e vários outros programas de transferência social, como é o caso das pensões sociais não contributivas. Esses programas foram, contudo, sempre enquadrados nas estratégias macro de governação e de desenvolvimento do país, colocando sempre ênfase no crescimento económico como via para a redução da pobreza: os Programas de Ajustamento Estrutural nos anos 90, os Documentos Estratégicos de Crescimento e de Redução da Pobreza (DECRPs), e finalmente os Planos Estratégicos de Desenvolvimento Sustentável (PEDS). Sem querendo discorrer sobre o mérito ou desmérito dessas estratégias, e/ou dos seus impactos sobre o crescimento económico e a redução da pobreza em Cabo Verde, a verdade é que passados quase 50 anos da nossa independência, e 33 anos da era democrática, o país continua ainda com níveis elevados de pobreza (35%, INE, 2015), sendo que 13.1% da população vive atualmente em situação de pobreza extrema, enfrentando enormes situações de carência no seu dia a dia. Deste modo, a pergunta que nos inquieta neste momento é a seguinte: até que ponto a ENEPE contribuirá para a redução e/ou eliminação da pobreza extrema em Cabo Verde?

A ENEPE 2022-2026 centra-se essencialmente num conjunto de programas com ações de carácter emergencial e a prazo, como são os casos do Rendimento Social de Inclusão (RSI), Inclusão Produtiva (PI), Pensão Social (PS), Prestação de cuidados, e alguns outros programas mais universalistas, destacando-se a educação e a formação profissional, a formalização da economia, e o anúncio de um conjunto de outros planos estratégicos – a serem elaborados/aprovados posteriormente. Na verdade, a ENEPE não trouxe nenhuma novidade a não ser a pretensão de uma melhor coordenação dos programas já em curso, e o aumento do número dos seus beneficiários. 

Os programas mais focalizados, sobretudo o RSI, o PI e a PS – consistem na transferência de uma renda mensal fixa cujo montante considera-se suficiente para que os recipientes pulem da condição de pobre extremo para a condição de pobre absoluto. A verdade é que esses programas, cujo valor monetário por recipiente é muito baixo, funcionam como meras medidas compensatórias que visam tão somente corrigir a falha do Estado e do mercado em integrar de forma equitativa todos os Cabo-verdianos na cadeia produtiva da economia e da distribuição da riqueza nacional. É de salientar que com a abertura do país à economia de mercado nos anos 90, deu-se início a um processo de “mercadorização” do Estado de Bem-Estar Social em Cabo Verde, passando a proteção social das pessoas a depender do nível da sua integração no mercado de trabalho, face a uma “minimização progressiva do estado social”. Ora, perante essa retração do estado social, apenas os indivíduos teoricamente “fracassados” na economia de mercado passaram a gozar da proteção mínima do Estado-protetor.

Já num período mais recente, concretamente a partir de 2016, a maioria dos Cabo-verdianos confiou e aprovou nas urnas um conjunto de promessas e “compromissos” apresentados pelo partido político que hoje sustenta o governo (MPD), assentes na criação de pleno emprego (criando por volta de 45 mil postos de trabalho), eliminação de emprego e salário precários; redução da pobreza relativa para um dígito, e eliminação da pobreza extrema em Cabo Verde. Esse partido/governo propôs materializar os seus “compromissos” apostando no crescimento acelerado da economia (7% ano) num período de 5 anos. Com esse nível de crescimento da economia, advogava o governo, aumentar-se-ia a oferta de empregos e de rendimentos para as pessoas. Esse seria o caminho para reduzir a pobreza e eliminar a pobreza extrema, dispensando assim a necessidade de uma intervenção excessiva do governo no Estado de Bem-Estar Social. Que esses “compromissos” não foram alcançados, todos nós sabemos. Não por “culpa” das crises, mas sim pelo falhanço das estratégias adotadas.  

É fácil constatar que as taxas de crescimento económico, em termos do PIB, não têm gerado de forma proporcional o número de emprego expectável. A título de exemplo, em 2021 o crescimento do PIB foi de 7%, mas produzindo uma taxa de desemprego de 14,5%. Perante uma notória pauperização crescente de uma camada significativa da população, o governo primeiro instituiu o RSI (Decreto-lei nº 41/2020 de 2 de abril), que consiste na transferência de um montante mensal fixo de 5.500 ECV por agregado familiar, complementando-o depois com o “RSI emergencial” para mitigar o impacto da pandemia da Covid-19. A Produção Inclusiva é um outro programa instituído com o propósito de ajudar as famílias pobres a desenvolverem atividades geradora de rendimento, juntando-se à medida da penção social mínima não contributiva que vinha vigorando há muitos anos.  

O alargamento da abrangência dessas medidas, sem desmerecer o elogio pela ajuda que prestam aos seus recipientes, demonstram por um lado, o falhanço do Estado de Bem-Estar Social via mercadorização das pessoas, ou seja, via dependência do mercado laboral, uma vez que esse mercado tem sido incapaz de absorvê-las e protege-las. Por outro lado, os programas que dão corpo a esse Estado de Bem-Estar continuam a evolver-se numa lógica assistencialista e paternalista, e não com base em princípios de direito e de justiça social. O montante baixo das transferências sociais cria um círculo vicioso de dependência dos recipientes ao Estado-protetor, que os estigmatiza como pessoas “vulneráveis” e/ou “fracassadas” por não terem conseguido singrar-se e providenciar-se por si só no mercado de trabalho. Desde modo, esses programas funcionam mais como mecanismo de “gestão da pobreza”, e muito menos como uma estratégia sustentável para a sua erradicação. Os seus recipientes não conseguem desmercadorizar-se, ou desmercantilizar-se das relações laborais que os subjugam, porque face a um Estado de Bem-Estar retraído, eles ficam cada vez mais sujeitos à exploração política e económica por parte de atores políticos e económicos respetivamente. O que dizer quando um militante e dirigente partidário, afirmar publicamente que o seu partido utilizou os programas sociais como instrumento de mobilização de votos, e eventualmente ganhar as eleições? E a sua afirmação é fácilmente verificável no terreno. Em algumas localidades do país, o montante pecuniário dos benefícios sociais é entregue diretamente aos beneficiários por um grupo destacado de funcionários camarários, que enquanto em serviço passam a mensagem “É uma ajuda dada pelo “Sr... Estado””. São esses mesmos funcionários que muitas vezes estão na linha de frente a fazerem campanhas e boca de urna pedindo votos, dizendo “nhos vota na …. pa nhos podi kontinua ta dadu...”

Que perpectivas?

Da discussão acima exposta, a estratégia de redução da pobreza absoluta e a eliminação da pobreza extrema em Cabo Verde, nos moldes como são definidos, deve necessariamente orientar-se por dois caminhos: em primeiro lugar, ela deve abrir janelas de oportunidades, para que em sede de políticas públicas se promova a inclusão dos pobres na cadeia produtiva da economia nacional. Isso passa pelo reforço e valorização de investimentos em infraestruturas económicas que aumentam a capacidade produtiva dos espaços onde domina a pobreza, e ao mesmo tempo desenvolver mecanismos que facilitam o escoamento dos seus produtos para os mercados nacionais e/ou internacionais, melhorar as condições de armazenamento e tecnologias relacionadas; fomentar o desenvolvimento de pesquisas e tecnologias agrícolas sustentáveis, e incentivar o desenvolvimento de cooperativas agrícolas e outras.  

Em segundo lugar, do lado da distribuição da riqueza produzida coletivamente no país, o Estado de Bem-estar Social tem que ser necessariamente mais audaz, mais inclusivo e mais justo, estribando-se em princípios que promovam a dignidade humana, a igualdade e equidade entre os cidadãos, e a justiça social. O Estado de Bem-Estar deve orientar-se pelos “melhores padrões de qualidade, e não uma igualdade das necessidades mínimas”. Os programas sociais implementados devem permitir que aqueles que têm sido sistematicamente penalizados por ciclos de políticas exclusivistas, e relegados para a condição de pobreza abjeta ao longo dos anos, tenham finalmente a oportunidade de se libertarem dessa condição, e de se afirmarem livres de qualquer tipo de opressão e exploração. A universalização e o aumento significativo do valor das prestações dos diversos programas sociais, que enquanto um direito que gozam os seus recipientes, deve ser garantido com recurso a impostos e taxas, associando-se a uma melhor eficiência administrativa do Estado. Um rendimento tão baixo como aquele que o RSI atribui (5,500 ECV/agregado familiar) não permite que o seu recipiente invista em qualquer tipo de atividade económica e/ou no seu capital humano (e dos seus dependentes), que futuramente lhe possa garantir a autonomia e independência económica, sabendo que a sua prioridade é a sua subsistência diária.

À inclusividade institucional e económica, à eficiência administrativa, e à ousadia do Estado de Bem-Estar Social, acrescenta-se a necessidade de uma maior e melhor aposta na meritocratização do mercado laboral nacional, promovendo assim a ascensão social e económica dos cabo-verdianos, e consequentemente alcançar um Cabo Verde menos desigual, menos pobre e socialmente mais justo. Eis os caminhos pelo qual se deve orientar a ENEPE.

* PhD em Políticas Públicas

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