É fulcral perceber/compreender que uma criança que sofre e/ou sofreu abuso sexual deve ser sempre considerada uma criança em situação de risco e com probabilidades muito elevadas de desenvolver diversas psicopatologias, a ausência de sintomas não pode servir como condição para “normalizar” ou “desvalorizar” a situação do abuso; as consequências podem estar ainda ocultas e talvez se exteriorizem posteriormente frente à resolução de uma crise evolutiva ou situacional, ou em outras situações de stress.
Abuso sexual é um problema social vivenciado por milhares de crianças e adolescentes no mundo inteiro, e Cabo Verde não é exceção. Ultimamente tem sido frequente depararmos com notícias sobre casos de abuso sexual, tanto na mídia falada como escrita… engana-se quem pensa que isso é porque os casos têm aumentado drásticamente, o que tem acontecido é uma maior consciencialização/sensibilização para a necessidade/importância e urgência da denúncia (ainda falta muito trabalho a fazer tanto no que diz respeito à prevenção primária, secundária como terciária); são experiências que pelas suas implicações tão profundas na intimidade da vítima acaba por promover dúvidas intensas quando tentamos fazer generalizações sobre qualquer aspeto, por isso é que é muito delicado e sensível o processo da generalização das consequências desses atos, ainda mais, quando falamos em abusos sexuais intrafamiliares.
A pouco tempo atrás, no seio da nossa comunidade lançou-se uma acesa discussão sobre o abuso sexual e o que poderia ser considerado ou não como sendo abuso sexual, por isso, achei pertinente trazer uma “definição” de abuso sexual que ao meu ver aniquila qualquer dúvida que possa houver sobre o que pode ou não ser considerado abuso sexual - “abusos sexuais devem ser definidos a partir de dois conceitos importantes, o da coerção (= forçar) e o da assimetria (= diferença) de idade”. A assimetria corrompe qualquer possibilidade de uma relação equitativa, tornando assim impossível o consentimento de ambas as partes para a concretização do ato sexual, ou seja, devido a diferença de idades existentes entre o agressor e a vítima faz com que as expectativas dos mesmos sejam totalmente distintas; por sua vez, a coerção por si só deve ser considerada critério suficiente para que um comportamento seja considerado como abuso sexual, independentemente da idade da vitima e/ou do agressor.
Como se sabe existe um certo tabu relacionado com os abusos que acontecem dentro do ambiente familiar (denominado na literatura por abuso sexual intrafamiliar), e como o próprio nome indica este abuso ocorre dentro do próprio seio familiar da criança, envolvendo parentes, vizinhos, amigos da família, etc. Este tipo de abuso possui uma dinâmica de funcionamento específico: inicia-se levemente com táticas disfarçadas e conforme o agressor ganha a confiança da vítima, a proximidade sexual torna-se gradualmente mais íntima. Esses casos são considerados ainda mais graves porque envolve uma quebra de confiança com as figuras parentais e/ou cuidadores que "à partida" deveriam proporcionar segurança, conforto e bem-estar psicológico à vítima. Esta quebra de confiança pode não envolver apenas a relação com o agressor, mas também a relação com outros membros da família e isto pode manter-se a longo prazo, é de realçar que este abuso (que por norma é sempre prolongado) prejudica seriamente o desenvolvimento emocional, cognitivo e comportamental da criança ou adolescente.
A falta de uma regulamentação legislativa mais efectiva levam muitas vítimas e seus cuidadores a ficarem em silêncio perante esta realidade. Estes casos são determinantes para traçar as marcas e as consequências futuras que irão influenciar o comportamento das vítimas na sociedade
Muitas vezes a criança que foi ou tem sido vítima de abuso sexual entrega-se constantemente a um enorme silêncio sobre o problema em causa por medo, vergonha, falta de informação e devido a própria relação com o agressor, devido a esses aspetos, a falta de uma regulamentação legislativa mais efetiva e a propria dificuldade inerente ao próprio processo de denúncia o diagnóstico torna-se longínquo, arrastando-se no tempo a situação, sem que a criança tenha quem descubra o problema e consequentemente pôr fim ao abuso.
É fulcral perceber/compreender que uma criança que sofre e/ou sofreu abuso sexual deve ser sempre considerada uma criança em situação de risco e com probabilidades muito elevadas de desenvolver diversas psicopatologias, a ausência de sintomas não pode servir como condição para “normalizar” ou “desvalorizar” a situação do abuso; as consequências podem estar ainda ocultas e talvez se exteriorizem posteriormente frente à resolução de uma crise evolutiva ou situacional, ou em outras situações de stress.
Tendo em conta o prejuízo e o impacto que o abuso sexual produz na vítima, torna-se indispensável que os familiares e a própria sociedade em geral acreditem no relato da vítima e seguir os trâmites legais para o processo de denúncia e para a responsabilização criminal do agressor. Por outro lado, é importante também procurar apoio dos profissionais de forma a “minimizar” o impacto do abuso, a restabelecer a integridade física e psíquica da vítima e dos envolvidos no processo.
É importante ter em atenção que as crianças tornam-se mais vulneráveis quando não possuem uma rede de apoio que seja eficaz para proteger e oferecer suporte emocional, por isso, e de forma a proteger as crianças e consequentemente diminuir a elevada taxa de incidência dos abusos sexuais é importante ter em atenção aos fatores de risco, entre elas destaca-se sem dúvida a pouca vigilância, défice na comunicação e o mau funcionamento familiar, por isso é importante aumentar o nível de interação, comunicação e vigilância de forma a diminuir a vulnerabilidade das mesmas, é preciso ensinar a criança a reconhecer e evitar potenciais situações de abuso; é igualmente importante a questão da responsabilidade parental e/ou dos cuidadores e o suporte emocional no seio familiar.
As crianças vítimas do abuso sexual precisam antes de mais que os adultos ouçam os seus relatos, acreditem nelas e reconheçam as suas responsabilidades.
Janilsa da Conceição Gonçalves
Psicóloga Clínica e da Justiça
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