Guiné-Bissau continua sem o que há 50 anos os combatentes foram buscar ao mato
Outros Mundos

Guiné-Bissau continua sem o que há 50 anos os combatentes foram buscar ao mato

Cinquenta anos depois de terem vivido o momento da proclamação da independência da Guiné-Bissau, os que sonharam o país lamentam que continue a faltar aquilo que foram buscar ao mato.

Ana Maria Cabral e Ulé Nabiutcha da Silva foram duas dos 120 deputados da primeira sessão da Assembleia Constituinte que, em setembro de 1973, proclamou a independência da Guiné-Bissau, nas matas de Madina do Boé.

Regressam ao local simbólico, este fim de semana, para celebrar os 50 anos do momento histórico, com a deceção de o povo guineense ainda não ter o país ambicionado por Amílcar Cabral e pelos que com ele combateram.

Ulé Nabiutcha da Silva tinha 23 anos e andou dois dias a pé para participar na constituinte, como deputada escolhida em Balana, na zona de Tombali, no sul da Guiné-Bissau.

A antiga enfermeira diz que “valeu a pena” e recorda a alegria que sentiu porque “pensava que a Guiné ia ser desenvolvida de uma tal maneira que o povo iria descansar”.

Mas “a Guiné não descansou ainda”, o que a deixa “triste mesmo” com as dificuldades que observa, desde logo na cidade capital, que “não tem desenvolvimento, não há nada, o povo está cansado”.

“Porque nós não esperávamos que este país estivesse na situação em que se encontra, não é isto que Cabral sonhou, Cabral sonhou com a independência para descansar o seu povo, o que não acontece neste momento”, lamenta, em entrevista à Lusa.

Cinquenta anos depois, Ulé mantém-se no ativo no PAIGC, o partido africano “único” da independência da Guiné e Cabo Verde, que Governa em Bissau atualmente, com outras forças políticas, na coligação Plataforma Aliança Inclusiva PAI - Terra Ranka.

“O PAIGC quando ganha as eleições, não consegue terminar o mandato”, observou, considerando que com multipartidarismo, “há muitas dificuldades, o partido perdeu o controlo, os combatentes ficaram isolados, sem meios, sem nada, alguns doentes à espera de reconhecimento”.

O anterior Governo, afirmou, “cortou tudo aos combatentes” e espera que na celebração do momento histórico da independência seja reconhecido que “merecem aquele respeito, aquela dignidade como pessoas que foram à luta, que tomaram a independência da Guiné-Bissau”.

Ulé lembra o dia em que saiu do sul do país a pé até à fronteira da Guiné Conacri e depois seguiu de carro até às matas de Lugadjol, onde se encontrou com os restantes protagonistas da primeira Constituinte.

Não dormiram porque estavam “cientes de que podiam surgir bombardeamentos de aviões” portugueses, em plena guerra colonial, pelo que também eles foram armados e conseguiram iludir a potência colonial, que esperava movimento no sul e não no leste do país.

Reuniram-se, prepararam a mesa, escolheram os conselheiros regionais, aprontaram “todo aquele momento” que foi o 24 de setembro de 1973, com a declaração unilateral da independência.

A antiga deputada continua a batalhar na política, como membro do partido, desapontada porque ainda não se cumpriu o desígnio de aliviar a canseira do povo.

“Não podemos descansar, porque ainda não temos aquilo que fomos buscar no mato. Quando o país estiver sossegado e tiver desenvolvimento, é que todos nós podemos descansar”, vincou.

Ana Maria Cabral ganhou um lugar de deputada na constituinte em homenagem ao líder histórico Amílcar Cabral, assassinado meses antes da declaração da independência.

A viúva foi escolhida por Bafatá, a terra de Cabral, e foi com “contentamento” e “orgulho” que se sentou na primeira fila da Assembleia, como recordou à Lusa.

Embora “não tivesse participado na luta com armas nas mãos”, ajudou na saúde, na educação, foi professora numa escola-piloto que preparava os alunos para continuarem os estudos na Europa de Leste.

Boé foi para Ana Maria Cabral, que já entrou “na casa dos 80 anos”, “o cúmulo de todos os sacrifícios, da luta dos combatentes, dos que lutaram com as armas nas mãos”.

“Saímos de lá satisfeitíssimos, contentes, orgulhosos pelo cúmulo desse nosso desejo de proclamar o nosso Estado, e tínhamos tudo, escolas, hospitais, eram de campanha, mas tinham todo o serviço, e recebíamos ajuda da União Soviética, Cuba, países afro-asiáticos, da China”, partilhou.

O primeiro país a reconhecer a independência foi a Guiné Conacri, apoiante da luta da vizinha Bissau, e seguiram-se outros reconhecimentos de África, da antiga União Soviética, países afro-asiáticos, da Europa, e passado um ano de Portugal, em setembro de 1975, depois do 25 de Abril.

Ana Maria Cabral foi embaixadora da ex-RDA (República Democrática da Alemanha), primeiro só da Guiné-Bissau, depois Guiné e Cabo Verde e, a partir do 14 de novembro, quando houve a separação de unidade entre os dois países, passou a ser só de Cabo Verde, de onde é natural e onde vive.

Partilhe esta notícia

Comentários

  • Este artigo ainda não tem comentário. Seja o primeiro a comentar!

Comentar

Caracteres restantes: 500

O privilégio de realizar comentários neste espaço está limitado a leitores registados e a assinantes do Santiago Magazine.
Santiago Magazine reserva-se ao direito de apagar os comentários que não cumpram as regras de moderação.