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“BATIDERA” de Princezito. Para lavar as mágoas e celebrar vitórias
Cultura

“BATIDERA” de Princezito. Para lavar as mágoas e celebrar vitórias

O dia 27 de Março é dia da Mulher cabo-verdiana. A data coincide com a fundação da Organização das Mulheres de Cabo Verde, OMCV, há 39 anos. A efeméride é celebrada tendo em vista a promoção do bem-estar social, económico e cultural da mulher. A meta maior é a proteção das famílias e da sociedade cabo-verdiana em geral, através da defesa e promoção dos direitos da mulher.

Princezito junta-se a Santiago Magazine na celebração de 27 de Março, com o poema “Batidera”, de seu livro MANUAL DI MUDJER recém-lançado. A nossa oferta, em respeito, afeto e homenagem a todas as mulheres cabo-verdianas.

 BATIDERA

Mi N ta bati na mar N seka na sol

N morsi na skuma N lora na tina

N xinta odja ropa na bentu

N ten sabon na ratxa’l dedu

N ten omu na greta d’unha

Na mo skerda N ten lorador

Na mo ndreta N ten koradura

N ta feti feti ku agu nha boka

N tra goma ku agu tanboru

Mi N ta bati ti N xinti propi

Ropa branku ta bira albu

Ropa pretu ta bira finu

Ropa sotadu ta bira lebi

Ropa nobu ta bira fresku

Mi N ta bati sima kabalu

Dja N bati ropa Prizidenti

Ke bisti e ba kontra ku Rai

Dja N bati batina padri Juan

Ke bisti e pa kontra ku Papa

Dja N bati ropa mininu femia

Ki e bisti e ba kontra ku argen

Dja N bati bistidu noiba noba

Dja N bati batina finalista

Dja N bati gravata di pastor

N bati bandera nasional

Dja N bati kamizola seleson

N bati rapasis feru gaitaN bati bata Beti Bita

Desdi ke stá na jardin

Gosi e dotora di mudjeris

Si Bata branku mi ki ta bati

A mi N ta bati…

Este poema integra o canto (que abre o livro Manual di Mudjer) e é composto por sete poemas, sendo eles: Batidera, Kantadera, Fikenta, Purmera Dama, Rezadera, Durmidera e Matadera di Porku. O primeiro canto é chamado de DERAS e a primeira mensagem que nos traz é a de ação, surpresa e originalidade:

Mi N ta bati na mar N seka na sol/N morsi na skuma N lora na tina/

N xinta odja ropa na bentu

O elemento surpresa faz parte da originalidade que inicia a obra e inscreve como uma palavra autónoma, algo fora do padrão. Dera, como sabemos, é um sufixo que, na língua cabo-verdiana, indica características de um ser, neste caso feminino, habituado a determinada situação, ou protagonista de determinada ação, ou detentor de determinada condição. Não se trata de um simples neologismo.

Deras é o mote da obra. Não é à toa que, sendo anteriormente apenas parte de um nome, substantivo ou adjetivo (chamada tecnicamente de desinência número-pessoal), sendo certo que ela não é o núcleo e sim a parte menos importante da palavra, já neste livro deras ganha independência e autonomia: transforma-se em nome, como palavra autónoma, sendo um substantivo adjetivado.

Esta estratégia morfossintática tem um impacto significativo no campo semântico. Significa que se trata de um ser feminino, que em si reúne todos os requisitos de autonomia e dignidade, e vai sendo desvendado, e se desvendando, usando o seu lugar de fala e construindo a escrita de si mesmo. Cada uma das personagens tem suas especificidades. Mas o canto aponta, sobretudo, para o profissionalismo, a disponibilidade, a polivalência desse ser. A mulher como consenso e a sua auto-estima de profissional, apesar da sua condição.

“ Mi N ta bati na mar N seka na sol” em vez de “na munti” (como seria na tradicional advinha)

BATIDERA abre o livro, na primeira pessoa, com a dignidade de quem se auto-anuncia, uma vez incorporada a personagem das mais versáteis que se encontrará no livro. Vive do seu trabalho, que tão bem faz e tanto respeito lhe traz. Mas faz as coisas do seu jeito, porque no muito fazer e em nome de outros, ganhou da tarimba a auto-estima e a confiança de todos.

O primeiro verso desconstrói a advinha (“Bati na mar seka na munti”), porque quer resultados concretos, a tempo e horas, de modo a apreciar o cumprimento do seu dever “N xinta odja ropa na bentu” (inovação libertária)

Há também o resgate de termos esquecidos, simplesmente pelo resgate e registo, ou a favor da memória: N ten sabon na ratxa’l dedu/N ten omu na greta d’unha (p.7).

Esta enunciação parece servir de propósito para registar termos da Língua Cabo-verdiana, pouco usados atualmente, fazendo o que se chama de inscrição, mais do que informar ou descrever simplesmente onde estão os produtos ou como estão os dedos e as unhas. A nuance permite que ratxa e greta ganhem visibilidade como termos do vernáculo e a Batidera possa provar que ela realmente contribui para que a roupa seja lavada (com prova provada) já que isso deixa marcas no seu corpo. Certamente que nem a ação de lavar nem o corpo onde ficam escritas as palavras e a ação devem ser tomados de ânimo leve. Vezes há em que o sujeito poético expõe as palavras numa vitrine, mas mudando-as de lugar para ganharem mais brilho, a partir da mudança dos seus sintagmas.

Ropa branku ta bira albu/Ropa pretu ta bira finu

No uso padrão da língua cabo-verdiana o “albu” (alvo) é usado para intensificar o branku (branco), isto é, “branku albu”. O fino é usado para intensificar o preto “pretu finu”. Quando o sujeito poético destrincha os sintagmas e recria um sintagma novo, com os mesmos vocábulos, passando o intensificador de sintagma nominal para o grupo do sintagma verbal, ele valoriza a potencialidade de ambos os vocábulos (o branco e o alvo, o preto e o fino) e ainda traz para a enunciação o sujeito da ação que muitas vezes não é o mesmo que o sujeito do discurso. Mas quando a Batidera se anuncia na primeira pessoa, no início da estrofe, sabemos claramente que a roupa branca vira alva porque teve a ação da Batidera. E a interpretação da ação, para além do discurso, é reconfirmada entre as duas estrofes com o verso

Mi N ta bati ti N xinti propi

Na sua perspicaz simplicidade, o aluno da escola primária, a quem o professor tradicional ensina que “sujeito é aquele que pratica a ação”, não aceita tal definição em frases como “O pneu do carro furou”. Quando se pede uma análise sintática da frase, há sempre o aluno sabido que diz que o sujeito é o prego. E deveria estar certo.

A língua cabo-verdiana tem conceitos que fogem a estas situações; e a nossa dificuldade em entender este conceito não é aliviada por frases como “ Choveu ontem por todo o arquipélago” (porque, para nós, não haveria dúvidas de que o sujeito é a chuva. A chuva, aliás, é dos sujeitos mais potentes para um crioulo das ilhas. Da mesma forma que a criança reclama do professor que na frase “O avião não decolou” a oração não tem sujeito, já que a ação não foi praticada (não houve decolagem); dessa mesma lógica ele conclui que “foi a chuva quem choveu”; esse raciocínio das crianças tem sua razão de ser. E mais uma vez, aqui, Princezito mostra claramente que é a ação da Batidera que faz com que o branco vire alvo e que o preto vire fino; já que, nem sempre o sujeito da ação é reportado para os holofotes, nem do poder, nem do sintagma, a ponto de se transformar em sujeito do discurso, dono da verdade.

Nas regras das línguas ocidentais, todos se esqueceram do prego, da mesma forma que dizem que um avião em terra é o sujeito da frase. E que na frase d’azágua, o sujeito é indeterminado, outros dizem inexistente.

Nada disso! Em Deras, para que não reste dúvidas, a ação é praticada pelo sujeito. E essa ação é sempre reconfirmada através de versos como:

Mi N ta bati ti N xinti propi

Mi N ta bati sima kabalu

A mi N ta bati…

São sentenças que ultrapassam regras sintáticas e juntam todos os conceitos de sujeito: aquele que pratica a ação, aquele que combina com o predicado para formar uma oração, aquele de quem se fala e é o núcleo do sintagma.

Outras vezes, em vez disso, o autor muda as estruturas para conseguir maior segmentação dos dizeres, nas particularidades e diversidades.

Djan bati ropa Prizidenti

Ke bisti e ba kontra ku Rai

Dja N bati batina padri Juan

Ke bisti e pa kontra ku Papa

Dja N bati ropa mininu femia

Ki bisti ba kontra ku argen

 

Dja N bati bistidu noiba noba

Dja N bati batina finalista

Dja N bati gravata di pastor

N bati bandera nasional

Dja N bati kamizola seleson

N bati rapasis feru gaita

O autor utiliza o sujeito poético para fazer homenagem a pessoas que, provavelmente, admira (Dja N bati batina padri Juan/Ke bisti e pa kontra ku Papa). A segmentação e diversidade são feitas também pela referência a personagens-tipo, aqui representadas pelas figuras públicas de grande aceitação e orgulho nacional (do mundo religioso, da esfera política, do desporto e da cultura). BATIDERA é merecedora de confiança, está nas suas mãos a honra de uma família: Dja N bati bistidu noiba noba. O sucesso construído com base na educação: Dja N bati batina finalista; a garantia de um projeto bem-sucedido e de diversidade religiosa: Dja N bati gravata di pastor; a garantia do patriotismo e do amor à terra: N bati bandera nasional/Dja N bati kamizola seleson. 

FORMA

Quanto à FORMA, são várias as estratégias utilizadas para complementar e enriquecer a mensagem. A sutilidade que deve ser evidenciada é que, nas próprias estratégias do seu discurso, o autor utiliza classes gramaticais que mostram as opções de um vocábulo e estrutura gramatical na nossa língua materna, que reforçam mais ainda a riqueza da LCV:

N bati batina Padre Joao/(Eu já lavei a batina do Padre João) -(sintaxe padrão simples eu – sujeito/sintagma nominal; lavei a batina – sintagma verbal, sendo certo que batina desempenha a função de complemento direto. N bati rapasis feru gaita: Numa tradução literal seria “Eu já lavei os rapazes de ferro gaita” que, com certeza, não é o que se pretende dizer, já que a Língua cabo-verdiana (LCV) tem os verbos laba (lavar e lavar-se para pessoas ou não) e bati (lavar roupas). Então dizer N bati rapazis ferru gaita, na nossa língua, não é Eu lavei os rapazes de ferro gaita, mas sim “Eu já lavei/eu tenho o hábito de lavar a roupa dos rapazes de ferro gaita”, mostrando que o complemento direto em português não dá vazão a um conceito saído do mundo crioulo, traduzido bem na língua de berço. É uma forma de mostrar a riqueza adicional da LCV, que utiliza as regras sintáticas da LP, que interioriza e toma posse dela, mas ainda utiliza estruturas sintáticas criadas na própria prescrição da LCV. Quando o sujeito poético usa estas estruturas sintáticas, manda o recado de que, na minha língua, tenho todas as possibilidades das línguas ocidentais, mais as possibilidades criadas na nossa língua de berço.

Uma palavra final no campo da FONOLOGIA

“N bati bata Beti Bita” (P.9) (purtantu, akompanha a Beti desdi o beabá até a sua consolidação profissional (“Gosi e dotora di mudjeris/Si Bata branku mi ki ta bati”)

O USO DAS PESSOAS GRAMATICAIS não acontece por acaso: se Batidera se anuncia na primeira pessoa, já Kantadera usa seu discurso na terceira pessoa gramatical. É o sujeito de quem se fala; e faz-se isso, de forma apologética. Nesse poema, o contraste inicial e a surpresa na construção do texto também acontecem, mas em forma de antítese. Espera-se o canto e vem o choro que, na variedade de Santiago, é um recado dado em referência ao Finason, que por vezes é um choro cantado, muito parecido com os choros das mortes, que mais são cânticos chorados:

KANTADERA                                  

E ta txora sabi na mundu

Ki ta da-u gana di dal palmu

E ta kanta ton maguadu

Ki salbaxu ta bira moli

Os naturais ou habitantes de Cabo Verde identificam-se com esta cantadeira, porque, na nossa terra, cantar é chorar e chorar é cantar. Por causa disso, todos se deleitam com o canto-choro, desde o doente ao médico, o presidente, e até os peixes.

É assim o Manual di Mudjer um livro para homens e mulheres, tão doce como a poesia, tão real como o amor e tão belo como o feminino da vida.

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Redação