- Historia, História…
- Fortuna nossa, ámen!
Era uma vez um velho muito sábio que vivia numa ilha grande e tecia redes de pesca. Tinha filhos e filhas, netos e bisnetos. Nhu Araújo - era como o povo o chamava, na língua da terra. Ele falava com os peixes, conhecia as estrelas do céu e sabia os segredos de todas as marés. Como as crianças da ilha nunca tinham visto um velho mais velho do que Nhu Araújo, resolveram chamá-lo de Papai Velho.
Era uma grande sorte ter um velho na aldeia. Matilde e Rosa, suas netinhas mais novas, sabiam que Papai Velho era uma bênção e que, logo deveras, era preciso abrir bem os ouvidos, quando ele falava, e aprender com os seus cabelos brancos.
- Nhu Araújo, olhe, de esmola, pelo meu filho, enquanto estou na lida.
Isso diziam as mamãs, com os balaios à cabeça, as latas vazias debaixo do braço, e, muitas vezes, o bebé às costas. As crianças de outras terras não sabem que aqui na Ilha é preciso andar grandes distâncias para buscar água. E que, ao fim do serviço, as mamãs, por mais cansadas que estejam, aproveitam para trazer ao menos uma lata de água para toda a família. Não ter água é pior do que não ter milho para a cachupa. Mas conseguir água também é mais difícil do que ter comida para a boca dos filhos. Logo deveras.
E Nhu Araújo respondia sempre:
- Vá trabalhar em paz, minha filha. Vá buscar o seu pão de cada dia. Eu olho por todas elas.
E as crianças ficavam muito felizes, pois Nhu Araújo contava-lhes histórias incríveis e ainda comiam filhoses de banana e farinha de milho que a Mamãe Velha fazia para os meninos das redondezas.
Esta é a nossa terra. Então sim.
…
Mamãe Velha, esposa de Nhu Araújo, era mulher muito paciente, que estava sempre perto de seu marido, e o ajudava com as crianças.
Já viste, meu amigo, uma mulher como ela? Era uma mulher que nunca descansava. Vivia às voltas: com a higiene da casa, a comida dos cabritos e das mamãs dos cabritos; fazia o almoço de todos e cuidava bem da roupa de seu marido. Se o Gato Traquina olhasse para o ovo da Dona Galinha, ela estava ciente. Se a Franga Raivosa quisesse assustar o Pinto Amarelinho, filho da Pata Mansa, ela via logo. Se o Menino Matxi quisesse atirar pedradas aos coleguinhas, ela dizia:
- Matxi, Matxi, meninos devem ser bem-educados. Vocês que estão na escola é que são a salvação desta terra. Não te comportes como se a tua mãe te criasse para seres trocado com o sal do Maio. E isso as crianças já sabiam que, na língua da terra, era o mesmo que dizer que os meninos da escola têm muito valor e que são obrigados a se comportarem melhor, já que são a nossa esperança. E era assim que a Dona Vergonha, invisível como sempre, se levantava e segurava as mãos do Matxi, que acabava assim por desistir de atirar pedrinhas à cabeça dos outros. E então Nhu Araújo pedia:
- Matxi, apanha essas redes que já estão prontas e ajuda o André a colocá-las no saco. Isso mesmo, menino educado.
E Matxi ficava todo contente por ter agradado Nhu Araújo.
Com um olho nos seus afazeres, outro olho nos cuidados, assim Mamãe Velha levava a vida e ajudava o seu marido.
Ao meio-dia, o Sacristão Jota Jota tocava doze badaladas no sino da igreja. E, enquanto os outros paravam para almoçar, ela nem se sentava. Fazia o sinal da cruz, rezava umas ave-marias e continuava o seu dever. Só tinha tempo para um gole de café preto, pela manhãzinha, e, após amarrar seu pano à cintura, fazia o seu trabalho. Dizia que o pano conseguia suster a sua boca de estômago até ao anoitecer. Enquanto os outros almoçavam, ela cochia o milho, preparava o peixe e descascava os legumes, para cozinhar a cachupa na lenha. Não sentia fome. Vivia a adiantar seus afazeres e ainda tomava conta, junto com seu marido, de todas as outras coisitas. Quando estava adiantado o serviço, enquanto atiçava o lume, fazia tranças às meninas. Mesmo assim, dava atenção às constantes visitas que chegavam, de manhã à noite.
A primeira vez que Rosa aprendeu as medidas de comprimento e chegou à casa a repetir “metro, decâmetro, hectómetro, quilómetro…”, ela disse, carinhosamente:
- Mamãe, a senhora, nas suas lidas da casa, deve andar cerca de 10 quilómetros por dia!
- Que quer dizer quilómetros, Rosa?
- Mamãe, quilómetros quer dizer mil metros.
- Sim, senhora. Marido diz muito bem: “se tens o teu filho, se gostas da tua filha, manda-lhes para a escola.” A Rosa Rosita, que nasceu ontem, já me anda a ensinar coisas. Obrigada, meu Deus.
À noitinha, estava a cachupa pronta. As mães regressavam da lida e levavam seus filhos. Alguns jantavam com o Velho Araújo; outros, mais crescidos, eram muito educados e diziam não ter fome e que ainda estavam satisfeitos por causa dos filhoses. Mas o certo é que todos eram muito felizes, apesar da pobreza.
Então sim.
CAPÍTULO 2
Pedro Burro
Foi num dia cheio de sol, em pleno mês de Julho, que Nhu Araújo decidiu que se chamaria Pedro Burro. E para que todos soubessem da decisão, firmou-se e pôs-se de pé, apoiou-se nas duas muletas, suas companheiras desde 1975, e deslocou-se à Passadeira. Sua dor era maior do que o Pico de Antónia (na Ilha de Santiago) e as lágrimas que ele não mostrava enchiam a Baía do Porto Grande (NA Ilha de São Vicente).
As mangueiras já tinham parido e as rabidantes se sentavam bem ao lado das peixeiras, para a lida da venda. Passadeira era o lugar mais importante da sua aldeia e se chamava assim – passadeira porque era por onde todos passavam e onde todos se encontravam. Lá os boatos viravam verdades e as suspeitas viravam fatos. Por isso é que o Sr. Araújo fazia questão de separar seu local de trabalho da Passadeira e, embora perto daquele centro de ramboia, ele fazia questão de colocar as redes do outro lado da rua: um, para não perder a concentração; outro, para que ouvindo não escutasse, olhando não visse, falando, ninguém ouvisse. Ficava de frente para o pátio da sua casa e assim seguia melhor as crianças com seus olhos.
Papai Araújo ficou assustado quando descobriu que, com a língua de sua mãe, de seu pai e de seus donos não conseguia se entender com seus próprios netos. Estava crente que sabia bem falar português. Sempre suportou o fato de não ter ido à escola, já que tinha boa memória. Tanto assim que sabia escrever uma carta de cor, apesar de não colocar as letras no papel. Sempre contou todas as histórias da Bíblia e narrou de trás para a frente a genealogia de seus ancestrais, da sua família e de todos os que nasceram depois e antes dele. Muitas mães esqueciam o dia de nascimento dos seus filhos, mas não se preocupavam, pois ele, Nhu Araújo, tinha de cor todas as datas importantes da aldeia. Mas, não. Nestas férias de Verão em que as crianças vieram visitá-lo de tão longe, sentia que os filhos dos seus filhos não o entendiam e nem ele a eles. Muitas palavras eram falsas amigas: pareciam uma coisa na sua língua, mas queriam dizer outra coisa na outra língua. Isso doía-lhe o coração. Seguiu os conselhos de seu filho “que procurassem as palavras num livro de nome dicionário, pois lá dentro estão todas as palavras do mundo”; mas não! As palavras dos seus donos e bisdonos não estão no dicionário. Como falar sem as palavras mais importantes da sua vida? Como amar alguém e como ser avô, se os próprios netos não conheciam a morabeza, não mandavam mantenhas, não refletiam lepetê lepetê? Tinha que falar muito para entenderem o sentido de kretxeu, mesmo sabendo que as saudades deles eram tão grandes quanto a sodadi do avô?
- Que homem sou eu que não deixo nada para os meus netos? Que triste a minha vida, se a história da minha família morrer comigo!
E assim se lamentou por três dias. Ao terceiro dia, decidiu avisar à comunidade a sua condição e alertar às mães e pais que não se sentia mais preparado para cuidar de seus filhos. Falou também aos pescadores, aos camponeses, aos funcionários de toda a região e aos trabalhadores de todos os ofícios: que da orelha até aos olhos são quatro dedos, mas que se conselhos ainda houvesse, que os fossem procurar nos livros, pois todo o homem tem seu tempo e o tempo de Pedro Burro já tinha chegado. Disse isso, segurou as muletas e despediu-se.
Então sim.
A notícia de Nhu Araújo foi uma surpresa muito grande para as pessoas daquela ilha. A surpresa passou minutos depois, mas o medo e a incerteza calaram todas as palavras de suas bocas. Quiseram muito pedir ao Velho que mudasse de ideia, que pensasse mais uma vez, que eles, mais seus filhos e mais seus netos ficariam já de antemão órfãos sem a sua sabedoria e memória. Mas não conseguiram.
Na voz do Povo o tempo de Nhu Araújo não se tinha passado. Por isso decidiram em conjunto que valeria a pena dormir sobre o desassossego e que, no dia seguinte, à mesma hora e no mesmo local, fosse tomada a decisão mais acertada.
…
CAPÍTULO 3
O LIVRO DO AMOR
O Vulcão do Fogo é o monte mais alto desta terra. Ninguém nunca ousou enfrentá-lo, nem de perto nem de longe. Pois não seria sábio o homem que subisse Chã das Caldeiras mas não apreciasse o vinho puro da uva; ou a criança que não provasse o delicioso Romeu e Julieta (que é como o povo chama ao queijo fresco da terra, servido com doce de papaia); não seria sensata a mulher que, entre os goles do café puro de Mosteiros, não tirasse tempo para ouvir as histórias do velho duque francês que, numa aventura lendária, deixou, em país africano, tantos loiros de olhos azuis. Pouco sábios seriam uns e outros que fossem ao mais alto lugar da minha terra para, em vez de viver estas experiências memoráveis, fossem ali para acordar o Gigante. O Senhor Vulcão pode passar anos e anos a dormir, pois uma noite para ele pode dar muitas voltas à terra e muitas luas à vida. Mas, quando ele acorda e sempre que ele acorda, há estragos, há destruição. Vilas inteiras desaparecem, famílias e sonhos são desfeitos.
Pois assim estava a minha aldeia, no dia seguinte à decisão de Papai Velho. No dia seguinte, ele não se deslocou à Passadeira. Respondia aos cumprimentos de forma automática, e só tinha olhos para as suas redes. Então, por isso, sem o mais velho da aldeia, as pessoas estavam ansiosas por uma decisão e ferviam em sugestões. Passadeira era, naquele dia, como Chã das Caldeiras, num dia de erupção. Como lavas, as ideias corriam por todos os lados e, como fogo, o coração das pessoas não encontrava as palavras certas para a paz da ilha. Haja vista o desespero. Quanto mais fogo, mais calor; quanto mais discussão, menos entendimento.
Então sim.
E foi assim que decidi escrever o Livro do Amor. E antes de tudo, é preciso dizer que o livro nasce aqui, na Ilha da Utopia, mas pretende dar oito voltas e terá oito capítulos. Nos oito países da mesma língua, cada um escreverá o seu, pois que esta é a nossa pátria.
Começo eu, com a ajuda da minha irmã Rosa, e vamos juntas colocar todas as palavras da língua da terra, para serem conhecidas, na língua dos livros, e para que todos os nossos irmãos, dos oito, saibam que o amor é a gramática do somar.
Eu sou a Matilde. A minha Dona se chama Mamãe Velha. O meu Dono se chama Papai Velho. Eu sou africana e tenho outra língua de berço e outros laços com meus ancestrais. Mas, se todos quisermos, pois que todos somos irmãos, nos entendemos, nos quatro continentes, na mesma língua. As duas línguas da minha terra são como eu e a Rosa: somos duas irmãs. Nunca devemos brigar, nem ficar de costas voltadas. Nunca desprezar uma nem sentir medo da outra. Essa história de que o português é a língua mais difícil do mundo foi criada só para assustar crianças pouco estudiosas. Precisamos é de andar de mãos dadas, como fazemos eu e a Rosa, até cada uma ser adulta e andar sozinha sem medo.
Começo, pois, com a primeira palavra mais bonita da minha língua que é a morabeza. E isto quer dizer que sempre que você vem à minha terra será bem recebido. Morabeza é a capacidade de bem receber que tem todo o natural de Cabo Verde. Assim que falares mantenha (uma forma gostosa de cumprimentar ou de mandar lembranças) vamos cantar uma música bonita para ti: seja funaná, batuque ou morna. Com morabeza serviremos um bom prato de marisco ou mesmo que seja uma simples cachupa. Estaremos sempre com um sorriso enorme, um abraço apertado e um coração grande, para te mimar. E, caso fiques triste, as nossas mães têm todas elas afagos de Santo Antão a Brava que acalentarão teu coração, pois são duas ilhas mais ao extremo de Cabo Verde e, por isso, incluem, nos abraços, todas as outras oito ilhas, todos os ilhéus e seus mares e oceanos. Porque a morabeza tem mil formas e todas elas devem ser degustadas lepetê lepetê (aos pouquinhos e sem pressa). Quando vieres, pediremos a Deus Nosso Senhor que nos mande chuva boa e mansa, sinal de boas-vindas, e te acolheremos como se faz a um kretxeu (pessoa bem-amada). Não importa se um dia voltares, já que, na tua terra, estão os teus. Pois saberemos deixar, no teu seio, txeu sodadi (muita saudade), que nem precisava de tradução, pois, tanto na minha língua de berço como na língua que é a nossa pátria, todos sabem, todos sentem, que a saudade é a felicidade de se sentir triste.
Segue o livro para colocares o teu capítulo de amor.
Ilha da Utopia, 25 de Maio de 2015:
Em comemoração do Dia de África e dos 40 anos da independência de Cabo Verde.
P.S: A nossa Pátria é a língua portuguesa!
P.P.S: Papai Araújo aceitou ser alfabetizado pelas suas netinhas que aqui te falam.
Com morabeza, enviamos mantenhas aos seus.
Matilde e Rosa, netas mais novas do Senhor Araújo.
Então sim.
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