A minha reflexão de hoje vai sobre o Beco. Sim estranho, não é? Pois, vou falar sobre o Beco!
Como definição, o dicionário diz que o Beco é “Rua estreita e curta, às vezes sem saída, e pouco própria para o trânsito; viela. Pode ser ainda utilizado em sentido figurado, “beco sem saída”, se referindo a uma situação difícil de ser ultrapassada.
Ora bem, vou falar do Beco num outro sentido: o espaço entre duas casas.
O Beco neste sentido tem sido uma autêntica dor de cabeça para as autoridades: é ponto de discórdia entre os vizinhos, motivo de contenda entre as comadres e os compadres e inimizade entre os amigos. E até desavenças entre familiares muito próximos.
O Beco já provocou brigas e mortes: a facadas, a tiro e até à paulada. O Beco já levou pessoas para tribunais. Mas porquê?
O êxodo do meio rural para o urbano na ilha de Santiago se deu, nos últimos anos, de forma bastante atabalhoada, fazendo com que na maioria das vezes, as pessoas mudem para as cidades sem conseguirem desligar dos hábitos rurais. Uma das maiores dificuldades que os aldeões enfrentam nas cidades é o problema de espaço. Se nas aldeias as pessoas têm trás-de-casa, diante casa, baixo de poial, trás de quintal, riba la, baixo li, riba cutelo, etc., nas cidades as pessoas ficam confinadas ao espaço onde moram. Isto provoca “claustrofobia”, medo, insegurança, uma espécie de prisão, estimulando o desejo de ter cada vez mais espaço.
Por esta razão, muitos desafogam a sua mágoa e frustração no apego ao Beco. Nele depositam um afeto doentio que leva a desentendimentos com o dono da casa ao lado. Como é necessário duas casas para se ter um Beco, alguém fica lesado.
Para que é que serve o Beco? Para por um animal, arrumar uns sacos, por umas plantinhas, fazer uma cozinha de lenha ou ainda apenas para ser fechado e ter como posse. Pois, ter a posse do Beco é importante e fundamental. Para se ter a propriedade dela, há uma luta onde ganha quem pode!
O problema começa quando os donos das duas casas que originaram o Beco reivindicam o Beco! O Beco é um, tem dois pretendentes aí desencadeia a encrenca.
O proprietário de cima entende que é ele o dono do Beco, porque foi ele a construir primeiro. O de baixo reclama que só houve o Beco porque ao construir, deixou o espaço (entende-se, o Beco) para a sua serventia. A comadre da esquerda pensa que ela é a dona do Beco, porque foi a ela que a Câmara autorizou. A de baixo questiona a posse, por ter sido após à construção da sua casa que o Beco se formatou. E começam as guerras e as intrigas. A polícia é acionada. Pede-se a ajuda dos vizinhos. Até o Padre é chamado, pois são todas pessoas de bem, que frequentam a Igreja, e espera-se que tenham mais bom senso. A vizinhança envolve. Pela sã convivência. Todos se sentem lesados e nenhum dá o braço a torcer.
Os becos são tão importantes que passam a ser referências: “Opa, onde é que tu moras”? – “Eu moro no Meio-de-Achada, perto do Beco X, logo à frente do Beco K.” “Onde é que fica a loja tal?”-” Fica em frente do Beco Z, mesmo ao lado do Beco N”. – “Como é que chego a casa do fulano?” – Tens que entrar no primeiro Beco à esquerda, depois voltas no segundo à direita e sais logo em frente da casa dele. Fica rente ao terceiro Beco”. E assim, por falta de numeração das ruas, e porque também nós conseguimos entender bem e melhor assim, o Beco passa a ser referência. Os becos delimitam espaços. “Tal instituição vai até ao determinado Beco”, não raro ouve-se dizer, da localização de alguns lugares que, de outra forma é difícil encontrar! Beco, Becos e Beleco. Todos importantes, cada um desempenhando o seu papel.
Nas “cidades” mais pequenas do interior de Santiago o problema se agudiza.
As edilidades se vêm a braços com essa questão. Têm dificuldades em gerir as desavenças criadas pelo Beco. Houve até um arquiteto que levou uma proposta para a Câmara de se incluir o Beco nos futuros projetos de moradias!
Há dias dei conta de uma pessoa que conheço muito bem, que se apoderou de dois Becos. A vizinha da direita abriu mão do Beco dela (por temer represálias) e essa pessoa se apoderou dele. O vizinho de baixo não estava, quando voltou o Beco já tinha sido ocupado por uma espécie de “casa de banho” ao ar livre. Eu falei com ela a respeito e ela me disse que a casa dela fora construída primeiro, portanto tinha direito aos dois Becos (vejam só!). Aí começou o problema. O vizinho da esquerda se achou com direito ao Beco, já que no seu entender, uma pessoa só tem direito a um Beco. E se desentenderam. A polícia foi chamada e disse que neste caso os dois deviam chegar a um entendimento. Que dividissem então o Beco em duas partes. Metade para um, a outra metade para o outro. Mas não quiseram. Um Beco é um Beco. E pronto. Nada de meio Beco ou Beleco. E assim estão num puxa-puxa, que não sei até onde vai parar. As crianças das duas casas foram proibidas de brincarem juntas; já não se toma pitada de sal, pingo de óleo ou copo de arroz na casa uma da outra; há desconfiança que se deita urina no Beco; a vizinha de direita está até desconfiada que a outra quer lhe dar na “tamborona”, pois há dias percebeu que ela não estava, tinha viajado e quando voltou ficou com a sensação de que algo estranho e maligno se apoderou da casa dela. Tudo por causa do maldito Beco!
Vi mais um caso de um emigrante que construiu a sua casa, o seu 2º andar. Quando a Câmara autorizou uma nova construção contígua, ele ficou furioso. Questionado, qual a razão da sua fúria disse: “Onde está o meu Beco”? Mas eu disse, para quê um Beco nesta casa? Ao que ele respondeu: “Estão ‘jaloux’ de mim, vão fazer uma ‘maison’ toda colada na minha para me tirarem o brilho do meu prédio”! Ao que eu disse: como é que isso tira o brilho duma casa? Então ele me explicou: “O Beco é importante. Ele separa a tua casa da outra casa, deixando-a visível, independente, e proeminente. Quando as construções são justas, a tua casa desaparece no grupo e fica anónima. É necessário ter Beco”! Fiquei atónita. Não conseguia perceber tamanha ignorância, mas a explicação parecia plausível. Mas felizmente neste aspeto a fiscalização funcionou (chapeaux á Câmara!) e lá vão os dois prédios gémeos, sem o Beco (mas isso custou desamizade, os donos dos dois prédios não se falam).
Há muitos Becos que são reivindicados mas depois são verdadeiros atentados à saúde pública: escondem lixo de toda casta e variedade, desde fraldas descartáveis, pensos higiénicos (usados, é claro), latas de conservas vazia, pneus, sacos de plástico e outras coisas que acumulam água e são propícias ao desenvolvimento de mosquitos; servem ainda para os animais defecarem, as criancinhas fazerem as suas necessidades (mesmo algumas pessoas com casas de banho com todas as condições, fecham as portas e mandam as crianças ao Beco!), para se deitar água suja, dejetos e outras coisas mais. E mais, e mais! Por isso, penso que o Beco poderá ser um entrave ao desenvolvimento das cidades. Abaixo o Beco!
Calheta, Julho de 2017
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