PGR e Segredo de Justiça. O som e a fúria – a imprensa sob ataque
Editorial

PGR e Segredo de Justiça. O som e a fúria – a imprensa sob ataque

Daqui a poucos dias vou ter de responder, perante o Ministério Público, por fuga de informação no processo que investiga a morte do cidadão Zezito Denti d’Oru, em que estão indiciados elementos da PJ, liderados, à época (2014), por Paulo Rocha, ex-espião, actual ministro da Administração Interna e ex-líder da operação da Judiciária que ceifou a tiros de metralhadora a vida de um ser humano. Ora, é este mesmo neurótico Ministério Público, que hoje me acusa num feroz ataque à imprensa, quem desencadeou a investigação a esse suposto extermínio de há sete anos sem dizer um piu. Agora, caída a máscara, vem com som e fúria. E de espada em riste.

No momento em que pensei escrever este texto me lembrei logo do livro de William Faulkner (O Som e a Fúria, de 1929), que relata a vida de uma bem-sucedida família aristocrata do Sul dos EUA que entrou em derrocada e começou a perder a sua reputação. Spoiler: caíram todos, trágica e melancolicamente.

E com risível angústia assisto o meu país a regredir no domínio da liberdade de imprensa, porque “homens dignos” e “ilustres” resolveram erguer a lâmina da guilhotina para decepar quem, por missão e brio profissional, trabalha para informar os cabo-verdianos acerca de assuntos de interesse público, mas que incomoda certa casta que se acha nobiliárquica.

Ora bem, a notificação da Procuradoria da República da Praia a constituir este diário digital e o seu director, eu mesmo, como arguidos num processo criminal por violação do segredo de justiça, num caso de suposto homicídio em que o nome do ministro da Administração Interna está referido, é de uma gravidade tal que devia fazer envergonhar as autoridades, sempre ávidas em mostrar o quão avançados estamos na campo da liberdade de expressão e de imprensa.

Antes a analogia da água: o líquido precioso é do Estado porque está no subsolo, que pertence ao Estado, mas a água da chuva que cai no quintal de alguém é dessa pessoa que pode dar, vender ou deitar fora como bem entender.

Isto para dizer que o segredo de justiça, de que terei violado, segundo interpretação do Ministério Público, na verdade vincula apenas as autoridades judiciárias, os órgãos de investigação criminal, os sujeitos processuais, e as pessoas que forem chamadas, a qualquer título, a intervir no processo, crime, de facto, punivel com pena de seis meses a 4 anos de prisão.

Pois bem, se é certo e cristalino que o jornalista não está vinculado ao segredo de justiça e tão pouco desviou peças processuais – quando muito as recebeu, eventualmente, caídas do céu – então por que motivo o Ministério Público constitui o jornal e o redactor do texto como réus? O que pretende a Procuradoria?

Mais do que incriminar Santiago Magazine e a minha pessoa, o MP, com cólera desmedida, desproporcional e desnecessária, ataca toda a imprensa livre em Cabo Verde. Sim, porque abre um grave precedente de silenciar, doravante, qualquer jornalista que tenha acesso a peças processuais em investigação, devido ao receio de vir a ser processado por divulgação de processos em segredo de justiça. Ainda que o país inteiro esteja sedento dessa informação, quer pelos anos que o processo está a mofar nas secretarias dos tribunais, quer, sobretudo, pela sua importância por envolver altas figuras da república, logo, assunto de Estado

Quer dizer, não é só Santiago Magazine que se quer atingir, é toda a imprensa livre e independente que fica, pois, manietada, amordaçada, apenas para não se falar do assunto Paulo Rocha. Exactamente. Porque nota-se, sem qualquer disfarce, uma preocupação tremenda para proteger o ministro da Administração Interna (ex-director adjunto da PJ e ex-director do Serviço de Informação da República), que, sendo ou não culpado, estando ou não na cena do crime, tem o seu nome implicado, nesse processo. Tanto a PGR quanto o Governo, na pessoa do primeiro-ministro, quiseram logo desvalorizar a notícia - Ulisses Correia e Silva com o apoio político, mantendo a sua confiança no seu governante e Luis Landim a admitir a investigação, mas afirmando que não se constituiu nenhum arguido e não foi ouvido ninguém, para a seguir vir tentar abafar o fogo no elo, a seu ver, mais fraco, Santiago Magazine e eu, Herminio Silves.

Tão descabida e desacertada esta tentativa porque, além de atropelar direitos e garantias consagrados na Constituição e na Lei de Imprensa, revela dois pesos e duas medidas. Só para citar um exemplo, quando escrevi neste mesmo jornal sobre o caso da Máfia de terrenos da Praia, dando informações sobre o processo de investigação, o nome dos implicados que foram posteriormente constituídos arguidos, não fui notificado de nada, apesar de o caso estar nessa altura sob segredo de justiça.

Vê-se claramente que o objectivo aqui não é incriminar o jornalista por supostamente violar o segredo de justiça, mas sim tentar demover o articulista e o jornal SM (na verdade toda a imprensa fica beliscada) de continuarem a escrever sobre a misteriosa morte de Zezito denti d’Oru, ocorrido em 2013, no bairro da Cidadela, na Praia, numa alegada troca de tiros com elementos da PJ, conforme versão oficial na altura e que o próprio MP não deu como certo, mas sete anos depois, após trocas e trocas de procuradores que detinham o dossier, continua por desvendar e fechar.

Eu não tenho nada pessoal contra o ministro Paulo Rocha – nem nos conhecemos, nos vimos uma única vez apresentados pelo ex-DN da PJ, Carlos Reis -, não sei do seu passado, nem da sua vida particular. Mas isso não me inibe de, havendo informações relevantes acerca de um assunto de Estado (um grupo operacional da PJ indiciado de assassinar um cidadão, com processo de investigação a decorrer), relatar, com rigor e responsabilidade, os factos apurados e qual caminho de investigação que se está a seguir. É o papel do jornalista. É o meu papel. E jornalismo não é crime. 

Idem, em relação ao Ministério Público, cuja acção de mudar a minha condição de testemunha para arguido, mesmo sem me ouvir, deixa perceber que haverá uma não dissimulada manipulação política da justiça e tentativa de silenciamento da imprensa, com grosseira ameaça ao direito do sigilo profissional. 

Este caso, de consequências mais profundas do que aquilo que aparenta, deixará marcas indeléveis na democracia, estado de direto e exercício livre do jornalismo em Cabo Verde. 

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SOBRE O AUTOR

Hermínio Silves

Jornalista, repórter, diretor de Santiago Magazine

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