JORNADAS DE HOMENAGEM A AMÍLCAR LOPES CABRAL (TAMBÉM FESTEJADO COMO ABEL DJASSI) E DE CELEBRAÇÃO DA AMIZADE ENTRE OS POVOS DE CABO VERDE E DA GUINÉ-BISSAU POR OCASIÃO DA COMEMORAÇÃO DO 97º ANIVERSÁRIO NATALÍCIO DO MORTO IMORTAL, HERÓI DO POVO, PAI DAS INDEPENDÊNCIAS E FUNDADOR DAS NACIONALIDADES - ENQUANTO COMUNIDADES POLÍTICAS NACIONAIS INDEPENDENTES E SOBERANAS- DA GUINÉ-BISSAU E DE CABO VERDE CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE A VIDA E A OBRA DO REVOLUCIONÁRIO CABOVERDIANO-GUINEENSE AMÍLCAR LOPES CABRAL OU UMA BREVÍSSIMA BIOGRAFIA POLÍTICO-IDEOLÓGICA DO MAIOR MORTO IMORTAL DA GUINÉ E DE CABO VERDE
QUARTA PARTE
Embora contando com grande afluência popular e uma maciça participação eleitoral e igualmente com uma esmagadora maioria de votos favoráveis às listas de candidaturas apresentadas, as eleições de 30 de Junho de 1975 não deixaram todavia de ser consideradas como atípicas, porque realizadas com base em candidaturas de listas concorrentes nos diferentes círculos eleitorais islenhos e integradas por grupos de cidadãos, todos efectivamente apoiados pelo PAIGC, o único partido político então admitido como força política actuante no terreno político do arquipélago caboverdiano, deste modo, tendo-se realizado as eleições para a instituição de uma Assembleia Legislativa dotada de poderes soberanos e constituintes sem, como habitual e expectável em outros contextos históricos e em outros espaços políticos, a devida e requerida competição entre partidos políticos distintos e diferenciados em função dos respectivos programas e plataformas eleitorais de governação.
Por isso mesmo, essas mesmas eleições foram e continuam passíveis de serem caracterizadas como substancial e sumamente de natureza referendária, na medida em que havia somente o sim e/ou o não como as únicas opções possíveis e disponíveis nos boletins de voto, designadamente, nas vertentes a seguir elencadas:
i. Da independência e da soberania nacionais do povo de Cabo Verde e do seu Estado a ser proclamado, poucos dias depois, a 5 de Julho, nosso ourgulho, de 1975.
ii. Do princípio cabraliano e do projecto paigcista da pós-colonial União Orgânica entre as Repúblicas irmãs de Cabo Verde e da Guiné-Bissau, conforme, aliás, constante tanto do Testamento Político de Amílcar Cabral, que antevia a instituição de uma Assembleia Suprema do(s) Povo(s) da Guiné e de Cabo Verde como órgão máximo do Poder do Estado nos dois países irmãos e que, por esta forma, ficariam indissoluvelmente unidos do ponto de vista político por decisão soberana das respectivas Assembleias Nacionais Populares, como também da Resolução do Comité Executivo da Luta do PAIGC, reunido a 25 de Maio de 1975, na cidade de Bissau, e que pugnava pela abordagem dos mecanismos de implementação do princípio e do projecto da unidade Guiné-Cabo Verde imediatamente depois da obtenção da independência política de Cabo Verde e, assim, do cumprimento do Programa Mínimo do PAIGC e que consistia na consumação da libertação total e completa dos povos da Guiné e de Cabo Verde do jugo colonial português.
Na prática, assiste-se a uma afirmação cada vez mais forte no plano interno dos dois países dos ramos nacionais e da natureza bi-nacional do PAIGC com a consolidação nos planos nacionais de Cabo Verde e da Guiné-Bissau das suas estruturas de base, intermédias e dirigentes, limitando-se os órgãos dirigentes supra-nacionais (Conselho Superior da Luta (CSL), Comité Executivo da Luta (CEL) e Comissão Permanente - desde o III Congresso do PAIGC, realizado ainda durante a luta armada, em Julho de 1973 e na sequência do assassinato de Amílcar Cabral, integrando Aristides Pereira, enquanto Secretário-Geral do PAIGC, Luís Cabral, como seu Secretário-Geral Adjunto, e ainda Francisco Mendes (Chico Té) e João Bernardo (Nino) Vieira, todos membros, com Pedro Pires e Carlos Correia do antigo Conselho Supremo de Guerra- à realização de reuniões periódicas, mesmo se agora reforçadas pelo labor de um Secretariado Executivo supra-nacional do PAIGC, sediado em Bissau e que editava a revista O Militante, tendo esse alto cargo sido ocupado ininterrupta e exclusivamente por José Araújo, membro do Comité Executivo da Luta (CEL) do PAIGC.
Por outro lado, assiste-se à cada vez maior afirmação tanto no plano interno, como também no plano africano e no mais vasto plano internacional, da República de Cabo Verde e da República da Guiné-Bissau, as quais tentam optimizar e capitalizar a favor dos respectivos povos e dos seus Estados independentes e soberanos o grande respeito e o imensurável prestígio internacional de que continuavam a gozar o considerado líder imortal Amílcar Cabral e a gloriosa luta político-armada, total e completamente coroada de sucesso, por ele magistralmente conduzida com especial enfoque no terreno da Guiné-Bissau a partir do seu quartel general sediado em Conacry. Tanto mais que quer a Guiné-Bissau quer Cabo Verde se confrontavam com ingentes problemas de atraso económico e de subdesenvolvimento estrutural e com a premente precisão de recursos para suprir as enormes carências existentes e satisfazer as inadiáveis necessidades básicas das suas populações. No caso de Cabo Verde, impunha-se ademais a necessidade existencial de comprovar e afirmar o arquipélago saheliano – contra e a despeito da postura pessimista de várias organizações especializadas da ONU- como um país política e economicamente viável, mesmo se duramente fustigado que se encontrava por um severo período de secas que se prolongava desde a catástrofe ecológica de 1968 que atingiu de forma particularmente calamitosa o conjunto e a totalidade dos países do Sahel.
De todo o modo, o princípio da unidade Guiné-Cabo Verde foi mantido como um axioma político-ideológico envolvido numa intocável auréola e revestido do valor de um tabu sumamente sacralizado e absolutamente inviolável do ponto de vista político e, até, criminal, sendo por isso severamente punidos os que, situados sob a jurisdição interna do poder político soberano monopartidário ou no campo dos adversários político-partidários e dos inimigos político-ideológicos do PAIGC, ousassem pôr em causa o mesmo princípio, que, assim, servia de pretexto e de justificação para a repressão política e a manutenção do PAIGC como partido único binacional, posto que nenhum dos partidos políticos caboverdianos (por exemplo, a UPICV e, mais tarde, a UCID) e guineenses (por exemplo, a FLING e, mais tarde, o Movimento Bafata, também denominado Resistência Nacional da Guiné-Bissau) actuando na clandestinidade política, no plano interno, e abertamente activo, sobretudo no estrangeiro democrático-ocidental, comungava do princípio paigcista da unidade Guiné-Cabo Verde.
Por outro lado, o princípio da unidade Guiné-Cabo Verde e, em especial, o projecto pós-colonial de União Orgânica entre as Repúblicas da Guiné-Bissau e de Cabo Verde, sofrem importantes adaptações e transmutações no período a seguir à proclamação das independências nacionais dos dois países.
É assim que, contrariamente à urgência constante do comunicado do CEL, de 25 de Maio de 1974, ou, no mínimo, à sua revelia, não são envidados quaisquer esforços visíveis e sérios no sentido da implementação de um dos pontos mais importantes do Programa Maior do PAIGC que era a União Orgânica entre as Repúblicas de Cabo Verde e da Guiné-Bissau, no período imediatamente posterior à proclamação da República de Cabo Verde como Estado independente e soberano, isto é, imediatamente após o cabal cumprimento do Programa Mínimo do Partido.
Ao invés, opta-se pela criação de estruturas fluídas, marcadas no desenho do seu perfil e nas expectativas postas no seu desempenho pela extremo cuidado e por muitíssima cautela.
É, assim, que são criados os seguintes organismos binacionais de implementação do princípio da unidade Guiné-Cabo Verde:
a) O Conselho da Unidade que integrava deputados das duas ANPs.
b) A Conferência Intergovernamental, cuja natureza de organismo de coordenação da cooperação bilateral entre os dois governos, e não de estrutura supra-nacional de integração política e em outros relevantes domínios socio-económicos, é denunciada pela sua própria denominação. A mesma Conferência Intergovernamental tinha Encontros periódicos de identificação de possíveis áreas de cooperação entre os dois países irmãos, sendo de se destacar nesse âmbito os Encontros sobre a Justiça realizados pelos Ministérios da Justiça dos dois países.
c) E, finalmente, a NAGUICAVE, empresa pública conjunta dos dois Estados e proprietária de alguns navios de longo curso (por exemplo, o navio Ilha de Komo) e que pretendia reforçar as ligações entre os dois países e o respectivo abastecimento em bens essenciais.
O Terceiro Congresso do PAIGC viria consagrar uma solução para a implementação pós-colonial do princípio da unidade Guiné-Cabo Verde, que, mantendo o seu valor sacrossanto de intocável axioma político-ideológico e um verdadeiro tabu político-ideológico com difusas repercussões criminais nos termos acima-referenciados, opta pela manutenção do status quo consubstanciado na continuação da plena existência das Repúblicas de Cabo Verde e da Guiné-Bissau como Estados independentes e soberanos e adia sine die a concretização prática da União Orgânica entre as duas Repúblicas irmãs governadas por um único partido agora definido como Movimento de Libertação Nacional no Poder em ambos os países.
Como alternativa, afirma-se que os Povos da Guiné--Bissau e de Cabo Verde são duas nações africanas distintas e diferenciadas do ponto de vista cultural e identitário, entendendo-se por nação uma comunidade política independente e soberana, devendo a União Orgânica entre as duas Repúblicas e os dois Estados-nação ser precedida da criação das condições político-ideológicas, aliás, já consubstanciadas na própria existência do PAIGC enquanto partido-movimento de libertação binacional no poder, psico-sociais, culturais, institucionais e técnico-materiais só possíveis de serem logradas e obtidas a médio e a longo prazos.
Por outro lado, procede-se a uma composição mais equitativa e mais estritamente paritária da Comissão Permanente do CEL em razão das origens nacionais e das predominantes identidades culturais dos seus membros, com a integração no seu seio de Aristides Pereira (Secretário-Geral), Luís Cabral (Secretário-Geral Adjunto), Francisco Mendes (Chico Té) –prematuramente falecido em 1979-, João Bernardo (Nino) Vieira, Pedro Pires, Abílio Duarte, Constantino Teixeira (Tchutcho Axon) e Umarú Djaló, e procede-se à institucionalização dos Conselhos Nacionais enquanto estruturas dirigentes superiores dos ramos nacionais do PAIGC em ambos os países.
A solução supra-referida traz à tona uma postura hiper-realista dos protagonistas políticos de ambos os países, mas também as possíveis lições extraídas das feridas ainda não saradas ou muito mal saradas advenientes das causas próximas invocadas pelos golpistas internos do PAIGC, os amaldiçoados assassinos e executores de Amílcar Cabral, na aziaga noite de Conacry de 20 de Janeiro de 1973 , qual seja o fim de uma alegada hegemonia caboverdiana no seio do PAIGC e representada pela cúpula política com assento na Comissão Permanente e na metade política do Conselho Supremo de Guerra do PAIGC ocupadas exclusivamente por um natural de Cabo Verde, Aristides Pereira, e por dois naturais da Guiné, mas com fortes e inegáveis vivências e traços culturais crioulos caboverdianos, designadamente Amílcar Cabral e Luís Cabral, enquanto que a metade militar do Conselho de Guerra do PAIGC era ocupada por guineenses ditos de gema, porque cultural e identitariamente negro-africanos, designadamente por Osvaldo Vieira, Francisco Mendes (Chico Té) e João Bernardo (Nino) Vieira. Deste modo, afigurava-se como um verdadeiro logro, argumentavam os detractores da pretensa hegemonia política dos caboverdianos no seio do PAIGC, a aparência de esmagadora maioria detida no seio desses cruciais órgãos de direcção política e político-militar da luta e alegadamente representada por dirigentes naturais da Guiné dita Portuguesa, deliberadamente ignorando, olvidando e esquecendo-se todavia que era efectivamente esmagadora a maioria guineense no seio do Comité Central do PAIGC e do seu sucessor, o Conselho Superior da Luta, bem como no seio do Bureau Político e do seu sucessor, o Comité Executivo da Luta do PAIGC.
É o eminente jurista Manuel Duarte que anota, num seu bem fundamentado ensaio sobre a implementação pós-colonial do princípio da unidade Guiné-Cabo Verde que, ressaltando a originalidade da pré-existência do PAIGC como principal actor, autor e fautor das independências políticas em relação aos Estados independentes e soberanos da Guiné-Bissau e de Cabo Verde, por exemplo, em relação ao processo de unificação entre a República da Tanganica e a República do Zanzibar na República Unida da Tanzânia, só depois havendo lugar à fusão entre a TANU (da Tanganica) e o Afro-Shirazi Party (do Zanzibar), continuavam assaz fluídas e difusas as definições das formas de concretização da supra-referida União Orgânica entre as duas Repúblicas irmãs, não se sabendo ainda se no quadro de uma Federação de Estados, se no âmbito de uma Confederação de Estados ou numa outra coisa qualquer a inventar ou recriar, sendo, para nós todavia pouco críveis e viáveis quer uma solução tanzaniana com nítida subalternização do arquipélago zanzibarenho enquanto região semi-autónoma em relação ao colosso continental da Tanganica, quer uma solução camaronesa com fusão das partes ex-coloniais anglófona e francófona num todo nacional único, aparentemente contrária ao princípio plasmado na Carta da OUA, de 25 de Maio de 1963, a tão invocada intangibilidade das fronteiras herdadas do colonialismo, com indisfarçável hegemonia da componente elitista francófona, quer ainda uma solução somaliana com fusão das partes ex-coloniais anglófona e italiana num todo nacional único, também aparentemente contrária ao acima mencionado princípio da intangibilidade das fronteiras coloniais, com inequívoca hegemonia da componente elista italiana.
Curiosamente, seriam argumentos idênticos àqueles aduzidos para justificar a eliminação física de Amílcar Cabral a serem invocados, desta feita pelos seus assumidos protagonistas militares, mas também pelos seus ideólogos Victor Saúde Maria, o único civil membro efectivo do Conselho da Revolução, liderado pelo Comandante de Brigada Nino Vieira (agora popularizado como Kabi, etnónimo balanta a pretender invocar e realçar os seus feitos de bravura enquanto grande e lendário guerrilheiro, combatente e militante armado do PAIGC), Fidélis Cabral de Almada, Joseph Turpin e outros assessores/conselheiros nomeados do mesmo Conselho da Revolução, instituído pelo golpe de Estado de 14 de Novembro de 1980 como o órgão máximo do poder do Estado bissau-guineense e que representou o princípio do fim definitivo do sonho cabraliano e do princípio paigcista da unidade Guiné-Cabo Verde e do projecto pós-colonial de União Orgânica entre as Repúblicas da Guiné-Bissau e de Cabo Verde.
Na verdade, o golpe de Estado de 14 de Novembro de 1980 foi um relevante acontecimento histórico, recebido, é certo, com algum alívio em ambos os países, e, até, com franca euforia, designadamente nos círculos da oposição política ao PAIGC, clandestinos no território da Guiné-Bissau e no arquipélago caboverdiano e abertamente activos nos países de acolhimento dos exilados e dos emigrantes caboverdianos e bissau-guineenses, mas também de efeitos altamente disruptivos, traumáticos e devastadores nas relações entre os altos dirigentes dos Estados soberanos e independentes da Guiné-Bissau e de Cabo Verde, até agora considerados Repúblicas irmãs, por assim dizer, e como se louvava na canção popular alusiva ao princípio cabraliano da unidade Guiné-Cabo Verde, em evidente panegírico da unidade e luta de matriz paigcista, dois corpos siameses dotados de um único coração que seria o seu comum movimento de libertação (bi) nacional no poder em ambos os países, o PAIGC.
Para concluir o presente ítem, propunha-se que se retivesse o cenário a seguir apresentado e a hipótese histórica alternativa dele adveniente, mas não factualmente verificada e que todavia representaria sempre uma lição a aprender e uma ilação a retirar da nossa História política recente:
Os autores e os fautores do golpe de Estado de 14 de Novembro de 1980 pretenderiam, segundo as suas bastas vezes proferidas palavras e declaradas intenções (diga-se que sempre assaz contraditórias e confusas nos seus termos e muito imprevisíveis nos seus inconfessáveis desideratos), não o fim do projecto da unidade Guiné-Cabo Verde e, nessa óptica, nem tão-pouco o fim do sonho cabraliano e do princípio paigcista da unidade Guiné-Cabo Verde e, consequente e concomitantemente, do projecto pós-colonial da União Orgânica entre as duas Repúblicas irmãs numa Pátria Africana unida e solidária, que segundo a argumentação de Amílcar Cabral e do PAIGC, seria fundada na História e na comunhão de sangue e de destino dos povos das nossas terras africanas da Guiné e de Cabo Verde e sedimentada numa sua complementaridade em todos os domínios da sua vida em sociedade e nas condições político-sociais e geo-económicas da sua existência.
O que se pretenderia com o golpe de Estado de 14 de Novembro de 1980 seria, segundo os seus autores militares e os seus mentores políticos, tão-somente o resgate na sua pureza inicial e na sua originária autenticidade desses mesmos sonho, princípio e projecto pan-africanistas. Por isso que, argumentavam, engendraram o seu Movimento de reajustamento político-militar exactamente para i. acabar, sim, com a considerada iníqua e famigerada unidade do cavalo e cavaleiro que teria provocado imensas mortandades na Guiné-Bissau, designadamente das populações civis e dos combatentes caídos na luta armada de libertação (bi)nacional e dos comandos africanos, diga-se que assaz famigerados e odiados, porque maioritariamente suspeitos e acusados da comissão de crimes de guerra e crimes contra a humanidade, de todo o modo executados sumariamente e sem qualquer julgamento em Abril de 1975 e enterrados em valas comuns trazidas com grande espalhafato ao conhecimento público pelos golpistas e autoproclamados reajustadores do 14 de Novembro de 1980, e, ii. finalmente, fazer por repor nos seus verdadeiros e equitativos carris o principio, o sonho e o projecto pós-colonial da unidade Guiné-Cabo Verde. Nesse sentido, e segundo os golpistas e auto-proclamados reajustadores, o golpe de estado de 14 de Novembro de 1980 representaria a segunda libertação do povo da Guiné-Bissau, desta vez de um pretenso jugo colonialista caboverdiano, acusação considerada tão irresponsável, infundada e grave que foi interpretada pela ala caboverdiana do PAIGC como razão suficiente para provocar a ruptura definitiva e irreversível com a ala guineense do mesmo partido-movimento binacional, doravante considerada estrita e exclusivamente nas suas vestes de golpistas e membros do Conselho da Revolução como os perpetradores da considerada segunda morte de Amílcar Cabral e do enterro definitivo do seu sonho e projecto pós-colonial de União Orgânica entre a Guiné-Bissau e Cabo Verde.
Retomando o fio à meada: para repor a equidade e a pureza original do princípio da unidade Guiné-Cabo Verde seria necessário, na óptica dos acima referenciados golpistas e autoproclamados reajustadores, desfazer a suposta hegemonia caboverdiana alegadamente prevalecente desde há séculos, desde os tempos dos Rios da Guiné do Cabo Verde, na sociedade, na economia, na educação, na administração pública guineenses bem como no próprio acto fundador do PAI, oficialmente protagonizado por cinco caboverdianos (sendo dois deles naturais da Guiné Portuguesa) e um guineense, e nos próprios órgãos executivos máximos do PAIGC, e colocar os guineenses autênticos, isto é, os de nascença e vivência estritamente guineenses, com preferência para os de matriz negro-africana, nos justos lugares hierárquicos e maioritários que lhes seriam devidos.
Se, num mero exercício especulativo, considerarmos a hipótese, por um lado, segundo a qual o ramo caboverdiano do PAIGC se tivesse limitado a, pura e simplesmente, sacrificar politicamente Luís Cabral, doravante considerado definitivamente um irreversível morto político, e, ademais, subordinar Aristides Pereira a Nino Vieira na mais alta hierarquia do PAIGC e não tivesse proclamado, na Conferência Nacional transmutada em Congresso Constitutivo, o ramo caboverdiano do PAIGC como partido soberano e exclusivamente islenho caboverdiano e, por outro lado, que Nino Vieira tivesse logrado assumir a liderança do PAIGC na sua totalidade binacional, e não somente da totalidade do ramo bissau-guineense do mesmo PAIGC, como efectivamente aconteceu com a completa eliminação política de Luís Cabral, o sonho cabraliano, o princípio paigcista e o projecto pós-colonial da unidade Guiné-Cabo Verde teriam certamente fortes possibilidades de sobrevivência durante todo o tempo da vigência da Democracia Nacional Revolucionária, a denominação oficial do sistema político de autoritarismo revolucionário vigente nos dois países irmãos, antes e depois do golpe de Estado de 14 de Novembro de 1980.
Todavia, estamos em crer que dificilmente essa quase-utopia pan-africanista unitarista de génese cabraliana, de tão genial engendramento político-estratégico - genialidade essa, aliás, assaz demonstrada na sua insofismável utilidade prática para a conquista das independências e das soberanias políticas dos povos da Guiné-Bissau e das ilhas de Cabo Verde-, sobreviveria ao autoritarismo revolucionário exercido simultaneamente nos dois países por um único movimento de libertação nacional erigido em partido único, isto é, em detentor exclusivo, em regime de monopólio, do poder político.
Estamos em crer que, mais do que extremamente difícil, seria mais provável e simplesmente impossível a sobrevivência, pelo menos em Cabo Verde, do projecto pós-colonial da unidade Guiné-Cabo Verde, bem assim do princípio paigcista e do sonho que política e ideologicamente o sustentavam, à onda anti-africanista e anti-paicvista (no fundo, pagando integralmente o PAICV pela sua assunção na plenitude das vestes de herdeira legítima em Cabo Verde e entre as diásporas caboverdianas do PAIGC e do legado político-ideológico de Amílcar Cabral, sendo, por isso, sintomáticas as suas continuadas vituperação e diabolização políticas como PAIGC/CV por parte dos seus inimigos e adversários políticos históricos e recentes) que, com as mudanças políticas de 1991, assolou Cabo Verde e se reflectiu no exacerbado revanchismo político-simbólico que determinou a radical mudança dos símbolos nacionais associados ao pan-africanismo e às condições históricas assaz particulares da conquista da nossa soberania política e da nossa erecção e edificação atlântica como ilhas africanas do meio do mar e nação afro-atlântica e afro-crioula soberana.
A hostilidade contra os caboverdianos (no sentido lato de naturais de Cabo Verde e descendentes directos de caboverdianos das nossas ilhas) que se fez presente e se disseminou no imediato período subsequente ao golpe de Estado de 14 de Novembro de 1980 mostra bem o que poderia acontecer com o nacionalismo bissau-guineense, tanto o de matriz negro-africana como o de teor crioulo, em condições de liberdade política muito propícias à exacerbação de demagogias e de populismos, sobretudo os de cariz chauvinista, racista e/ou xenófobo.
Estou, pois, em crer que também na Guiné-Bissau o projecto pós-colonial de unidade Guiné-Cabo Verde estaria irremediavelmente condenado à morte, e, mais precisamente, de morte matada consumada pelo nacionalismo bissau-guineense de várias matrizes e diversificadas feições.
/José Luís Hopffer Almada/
Membro-fundador e membro efectivo (correspondente)
da Academia Cabo-Verdiana de Letras (ACL)
e da Associação de Escritores Cabo-Verdianos (AEC)
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