CXCVIII CENA
Na sala, João da Cruz e Dário conversam-se.
JOÃO DA CRUZ – Espero que estejas com a cabeça mais fria e me compreendas.
DÁRIO (muito desconfortável) – O que é que o pai quer dizer-me?
JOÃO DA CRUZ – Já falei com a Berta, mas como já percebi que ela é falsa, que sabe disfarçar tão bem, pensei numa alternativa.
DÁRIO – Que alternativa?
JOÃO DA CRUZ – Já falei com o meu amigo, o Pau de Giz, tu vais morar naquela casa dele em Monte Sossego, de que sou o responsável. Arranja uma pessoa para ir lá dar um jeito… ir lá refrescar a pintura nas paredes e um carpinteiro para arranjar as persianas e mudar fechaduras das portas. Vais lá morar, se mais tarde a tua namorada quiser ir morar contigo… não há problema. Podes levá-la. A casa é tua a partir de agora. Podes continuar a vir comer cá, tomar banho e lavar as tuas roupas enquanto estás sozinho.
DÁRIO (arregala os olhos) – Que bom, pai! Não acredito! Que alívio! É mesmo a sério?
JOÃO DA CRUZ – Nunca falei tão a sério como falo agora. Posso não ter dinheiro, mas tenho palavra. (Entrega-lhe a chave) Aqui tens a chave. Quando o serviço tiver concluído tu vens buscar dinheiro e vais pagar.
DÁRIO – Obrigado, pai. Obrigado mesmo.
JOÃO DA CRUZ – Não tens que me agradecer.
DÁRIO – Então vou já tratar disso.
Ele levanta-se e vai dar um robusto abraço ao pai.
JOÃO DA CRUZ – Está completamente mobilada. As mobílias não são novas, nem modernas, mas o que interessa é que dão para tu desenrascares.
Dário sai rapidamente.
CXCIX CENA
De bruços à janela, Rosalina olha para o chão. Benvindo chega e fica em pé diante dela. Ela levanta a cara e dá de rosto com ele.
ROSALINA – Estavas ai, Benvindo?
BENVINDO – Cheguei mesmo agora.
ROSALINA – Já não me lembro quando te tinha visto por estas bandas. Por onde tens andado?
BENVINDO – Por aí…
ROSALINA – Talvez entretido com novos amores… esqueceste de nós.
BENVINDO – Novos amores?! Os meus amores… és tu só, Rosalina.
ROSALINA – Pois não o parece. Dantes vinhas por aqui frequentemente; mas, de um certo tempo a esta parte não há quem te veja…
BENVINDO – Isso pouco te interessa, Rosalina. E até posso jurar, se tal fosse preciso, que desejarias muito não me veres mais junto de ti.
ROSALINA – Tu enlouqueceste, Benvindo?! Por acaso tenho eu deixado alguma vez de te demonstrar que sou tua amiga?!
BENVINDO – Sim, minha amiga! Mas infelizmente há agora outro a quem melhor dispensas essa amizade. Eu já pertenço ao passado.
ROSALINA – Estás enganado. Com tão bom modo falo para ti como para outro qualquer…
BENVINDO – Olha, Rosalina, deixemo-nos de mais simulações. Tu a quem queres mais do que a ninguém é ao filho do Sr. Morgado.
ROSALINA – E o que há nisso de extraordinário?
BENVINDO – O que há nisso de extraordinário, perguntas tu! É que só agora percebi o quanto me tens sido falsa…
ROSALINA – Falsa, eu? (Dá uma gracinha) Por acaso algum dia tivesse eu declarado essa amizade que imaginaste, para me falares assim?
BENVINDO – Nada me disseste a tal respeito, é verdade. Mas a maneira como sempre me trataste, a preferência que me davas, é o que me fez supor.
ROSALINA – Pois, foi uma má suposição, meu Benvindo. Tive-te sempre muito em conta, é verdade. Preferia-te sempre a outro qualquer, não o nego, mas tudo isso não passava de uma simples afeição, filha dos nossos primeiros anos.
BENVINDO – Tens razão. Eu é que fui muito idiota. Sou um pobre enjeitado… não tenho sequer um palmo de terra… além disso não sei dizer essas palavras arteiramente estudadas com que se prendem os corações…
ROSALINA – Benvindo, não sei porque te referes isso. Desejava que te explicasses.
BENVINDO – Porque esse senhor que por aqui agora passa todas as tardes, antes de ele vir lá do inferno, tu eras muito outra do que hoje és. Falavas para todos, com todos te rias, dançavas, cantavas e vinhas sempre alegrar as nossas festas com a tua presença. Agora, porém, dá-se bem o contrário; foges de todos nós, já poucas vezes se ouve a tua voz alegre; e passas horas encostada à janela a olhar para a lua, como se visses nela o retrato de Amândio! Mas estás servida, rapariga; crê nas suas promessas, toma-lhe uma amizade cega e depois verás o pago que ele te dá…
ROSALINA – Nunca, nunca consentirei que na minha presença fales assim de uma pessoa a quem estimo; Não tenho culpa das tuas tolices, e demais sou jovem, solteira, e por isso posso entregar o meu coração, e a minha alma até, a quem muito me aprouver; quanto a ti, não te faltam raparigas que te mereçam. Eu é que nunca poderei retribuir-te a afeição que mostras ter-me.
BENVINDO – Perdão, Rosalina, se te ofendi. Pois, não era esse o meu intento. Entretanto, assalta-me um triste pressentimento.
ROSALINA – Pressentimento?! E de quê?
BENVINDO – Não sei… mas vaticina-me o coração que Amândio nunca será digno do teu amor. É quase impossível que ele te ame como mereces.
ROSALINA – Como te enganas, meu Benvindo. Era preciso nunca o ter visto, nunca o ter ouvido para assim pensar; Amândio ama-me com desinteresse e esse amor tornar-nos-á a ambos completamente felizes. Ele assim mo jurou.
BENVINDO – Palavras vãs. Coisas que se dizem, mas que não se sentem. E, mesmo que assim fosse, por muito que ele te ame, o seu amor não será mais sincero e muito menos, mais desinteressado do que o meu. Além disso ele é rico e expirará também a uma esposa que o seja igualmente.
ROSALINA (esforça-se para não voltar a chatear) – Benvindo!
BENVINDO – Vamos, não te zangues. Eu bem sei que estas verdades são amargas e que soam mal a um coração apaixonado; mas, afinal, quais são as garantias que possuis de que não suceda o que prevejo? Comigo, bem sabes, não se dariam esses receios porque te quero pura e simplesmente. Além disso, as nossas sortes são quase iguais; tu és pobre e eu também o sou; a minha única ambição, pois, era unir-me a ti, partilharmos juntos da nossa pobreza e vivermos felizes, como felizes vivem os anjos no céu. Tu, porém, não entendeste assim. Prevejo-te um fim tão triste…
ROSALINA (muito chateada) – Basta! Nem mais uma palavra! Vejo que o despeito e o egoísmo é que te fazem assim falar; mas que me importa isso? Pois bem… já que a tanto me obrigaste, ouve: nunca te amei como talvez julgaste; dei-te sempre a preferência a todos os outros rapazes, porque te tinha uma amizade de irmã, e também porque tu extremas bastante de todos esses moços daqui da zona; essa amizade, porém, é que nunca se transformou em amor, nem tal poderá suceder, porque… Deus não o quer.
BENVINDO – Ah! Amaldiçoado… foi ele quem, em um só momento, roubou-me todas as esperanças, toda a felicidade do meu futuro!
ROSALINA – Não o arguas de nada, Benvindo: se alguma culpa há, é toda minha; ele disse que me queria muito, que só eu podia fazer a sua felicidade; acreditei-o, aceitei-lhe os seus protestos e entreguei-lhe o meu coração.
BENVINDO – Então posso perder a esperança do teu amor?
ROSALINA – Seria escusado repetir o que já te disse. (Benvindo tapa a mão na cara, olha para o chão e depois para Rosalina, em lágrimas) Então que é isso, Benvindo? Assim desesperas por um mal que já não tem cura? (Tenta acarinhá-lo) Olha, meu amigo, há muitas raparigas por aqui; escolhe uma de entre elas, ama-a muito e verás como me esqueces e como serás feliz.
BENVINDO – Impossível, Rosalina. Acaso ignoras ainda o que é o amor? Deves sabê-lo porque também amas. Só tu poderias fazer-me completamente feliz! Esta entranhada afeição que te devotei não nasceu ontem nem há dois dias; amo-te desde criança. Mas enfim… tudo passou, Rosalina! Possas tu ao menos ser feliz e Deus permita que nunca se realizem as minhas tristes predições.
Rosalina vira a cara para o lado e vê Amândio a aproximar-se, vestido de caçador e com uma espingarda na mão. Dá um grito de espanto. Benvindo também o vê e fica ainda mais triste.
ROSALINA – Ah! Meu Deus?!
BENVINDO – Aí vem o Amândio. Retiro-me. Adeus, Rosalina.
ROSALINA – Não. Agora fica, por favor. Não vá ele persuadir-se que evitasses a sua presença e dar-lhe motivos a suposições menos justas sobre a minha probidade.
BENVINDO – Tens razão. Não queres comprometer-te; efetivamente podia persuadir-se que não era só ele que merecia as tuas boas graças. (Amândio chega e diz-se boa tarde) Peço desculpa, Amândio. Entretinha-me um pouco a gracejar com este papagaio, que faz a alegria de nós todos; porém, como agora o Amândio já chegou, retiro-me para me não tornar importuno.
AMÂNDIO – Deixa-te estar à vontade. Creio que tanto eu, como tu, ou outro qualquer, tem direito de captar as boas graças desta pérola daqui da zona. Quem ficar vencedor na contenda, que seja feliz, porque eu, pela minha parte, não me zango com isso.
BENVINDO – Gosto de te ouvir assim falar; mas do que deves estar certo é que eu nunca tal tentei nem tentarei, e para prova ela que o diga; é certo que entre nós existia de há muito uma certa amizade.
AMÂNDIO – Amizade?!
BENVINDO – Sim! Uma amizade livre de qualquer ambição… uma amizade de irmãos, de crianças…
AMÂNDIO – És já mais feliz do que eu. As afeições que se conseguem nos primeiros anos da mocidade são sempre ardentes, sinceras.
BENVINDO – Enganas-te. Essas afeições duram apenas até uma certa idade, até ao dia em que se conhece outro ente mais caro, ou até que se ouvem juramentos mais credíveis, embora menos verdadeiros. Muitas vezes, a mulher que acompanhamos nos primeiros alvores da vida, e que parecia querer-nos tanto, chega a detestar-nos, a aborrecer-nos do íntimo da alma, desde que uma nova afeição lhe nasceu no peito depois de acreditar numa mentira bem urdida.
AMÂNDIO – Ao que parece, achas-te ferido desse mal, não é verdade? Sê franco e explica-te mais claramente; parece-me ver uma segunda intenção nas tuas palavras.
BENVINDO – Pois bem! Queres que seja franco? O Amândio é namorado da Rosalina, ela ama-te tão cegamente que quase chega a aborrecer todas as pessoas que dantes lhe mereciam alguma consideração e confiança. Eu conto-me no rol dos queixosos; tu conseguiste convencê-la e vencer-nos. E tenho a certeza que ela gosta de ti, porque, tive ainda há bem pouco uma prova do que afirmo, porque ela quase chegou a mostrar-me desejos de nunca mais me falar, por causa de ti.
AMÂNDIO – Se não estou enganado, estás mesmo apaixonado pela Rosalina.
BENVINDO – Amei-a, sim; para quê negá-lo? Esta afeição principiou quase no berço.
AMÂNDIO – E já não a amas?
BENVINDO – Talvez não; quem sabe? Há bálsamos para todas as feridas.
AMÂNDIO – Deves aborrecer-te bastante!
BENVINDO – Não sei pelo quê…
AMÂNDIO – Por te ter roubado o coração que julgavas pertencer-te. Se é que to roubei!
BENVINDO (depois de um momento calado) – Não me aborreço… chegaria, porém, a odiar-te de morte se…
Olha para Rosalina que está opressa e receosa.
AMÂNDIO – Se…
BENVINDO – Se as tuas intenções fossem menos puras e se o teu amor se tornasse a causa da infelicidade deste pobre anjo.
AMÂNDIO – Ah, se são esses os teus receios, então alimento desde já a certeza de que terei em ti o meu melhor amigo.
BENVINDO – Quem sabe!…
AMÂNDIO – E porque não? Acaso duvidas de que eu seja capaz de fazer a felicidade desta rapariga?
BENVINDO – Duvido. E muito.
AMÂNDIO – Duvidas?! E porquê?
BENVINDO – Porque tu nunca lhe darás o nome de esposa.
AMÂNDIO – Cautela, Benvindo! Olha que me ofendes com os teus loucos preconceitos.
BENVINDO – Ofendi-te?! Não o julgava. É verdade que há coisa que custam sempre a ouvir. Receaste talvez que as minhas palavras fossem frustrar todos os teus planos. Ah! Sossega, tal não há-de suceder. Rosalina ama-te demasiadamente para que o seu amor se abale com estas minhas tolices, como talvez tu lhes chamas.
AMÂNDIO – É demais! Emprazo-te para que declares imediatamente o verdadeiro objetivo das tuas intenções.
Ele fica irritado, mas Benvindo continua, dissimuladamente calmo.
BENVINDO – Pois bem! Já que assim o queres, sejamos francos. O Amândio tem um único ponto de vista neste amor; conseguiu já bastante, isto é, fazer-te amar ardentemente por esta rapariga; foi o mais difícil; agora o resto, o mais fácil, é abusar do seu afeto e da sua inexperiência para a lançares no caminho da desgraça, roubando-lhe o mais precioso dote – a honra! – Está agora satisfeito?
AMÂNDIO (completamente fora de si) – Infame! Vais pagar com a vida os insultos que acabas de dirigir-me!
Recua alguns passos, engatilha e leva à cara a espingarda.
ROSALINA (com uma voz suplicante) – Amândio, por quem tu és, pelo nosso amor te peço que te contenhas!
AMÂNDIO (baixa a espingarda) – Agradece a Rosalina por não estares a esta hora na eternidade. Agora peço-te que te retires imediatamente. A tua permanência aqui poder-nos-á ser bem fatal. Vai, mas previno-te que te livres de repetir-me qualquer expressão das que acabaste de proferir.
BENVINDO – Retiro-me, Amândio, não porque tema as tuas ameaças; a morte para mim, neste momento, ser-me-ia talvez de grande alívio. Retiro-me, sim, porque não quero agravar mais este triste incidente, e porque também temo exaltar-me. (Dá dois passos e volta) Pela última vez repito-te: a desgraça de Rosalina será o carimbo na certidão do teu óbito. Nunca te esqueças destas palavras.
Saúda-se com um simples aceno de cabeça e sai devagar. Amândio segue-o com a vista até o ver desaparecer.
AMÂNDIO (sorri falsamente) – Iria jurar que este pobre diabo endoideceu, não te parece? (Rosalina fica muda) Não me respondes? Acaso darias crédito às sandices desse miserável, ralado de ciúmes e de despeito?
ROSALINA – Oh, não, não o acreditei.
AMÂNDIO – Então qual é a causa dessa tua consternação?
ROSALINA – Nem eu mesma o sei. Esse pobre rapaz, antes de tu chegares, já me tinha dito tanta coisa!
AMÂNDIO – Provavelmente todas estas calinadas que acabo de ouvir!
ROSALINA – Justamente.
AMÂNDIO – Diz-me uma coisa: antes de mim era ele o teu namorado?
ROSALINA – Não. Nunca nos declaramos a mais leve afeição. Talvez por tê-lo tratado com mais urbanidade do que os outros, fez-lhe persuadir que eu lhe tinha um verdadeiro amor. Enganou-se completamente.
AMÂNDIO – Outra pergunta: posso saber os motivos que se davam para essas provas de deferência?
ROSALINA – Motivos muito simples: em primeiro lugar porque, como sabes, fomos criados quase juntos, e em segundo porque notei sempre nele alguma coisa que o distinguia de todos os outros rapazes daqui. Possui uma certa inteligência, tem maneiras agradáveis, enfim reúnem-se nele qualidades que o extremam da maioria da gente do campo.
AMÂNDIO – Também eu notei isso mesmo ainda há pouco. Não é vulgar encontrar aldeãos que se exprimam como ele. Viveu alguma vez no estrangeiro?
ROSALINA – Não, Amândio. Nunca saiu destes sítios. Este rapaz, segundo dizem, foi trazido, ainda em tenra idade, não se sabe de onde, pelo Sr. Padre Gil. Que o levou para sua casa e deu-lhe uma boa educação, ensinando-lhe a ler e escrever, tencionando até ordená-lo Padre um dia. O Sr. Padre Gil teve-o sempre na sua companhia, tratando-o mais como próximo parente do que como seu servo. É de então que datam as nossas relações. Sr. Padre Gil estimava muito a minha avó, e a casa da escola era bastante distante destes sítios, admitira-me também como sua discípula, e assim fomos educados ao mesmo tempo.
AMÂNDIO – Mas vamos ao que mais interessa. Decerto que não esfriou com isso o amor que me tinhas.
ROSALINA – Oh, não, não! Amo-o muito, muito, muitíssimo. O que me temo é pelo Amândio.
AMÂNDIO – Por mim, como?!
ROSALINA – Receio que a alucinação desse rapaz o leve a cometer algum atentado contra si.
AMÂNDIO – Nada receies, minha boa Rosalina. Eu me prevenirei contra qualquer ataque. É verdade: tua avó está em casa?
ROSALINA – Está no quintal a trabalhar. Foi uma providência por ela não ter ouvido o que há pouco se passou. É muito amiga do Benvindo, e, se soubesse que eu lhe tinha causado algum desgosto…
AMÂNDIO – E a meu respeito ainda não te disse coisa alguma?
ROSALINA – Nada absolutamente.
AMÂNDIO – Ainda bem. Agora retiro-me e espero encontrar-te à noite quando voltar.
ROSALINA – Satisfar-lhe-ei em tudo, porque o amo.
AMÂNDIO – És um anjo!
Rosalina estende-lhe a mão, aperta-a com força e retira-se.
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