Será que a base Social e Educacional Cabo-verdiana está assente na herança Matriarcal/Matrilinear ou Patriarcal/Patrilinear. Eis a Questão?
Cultura

Será que a base Social e Educacional Cabo-verdiana está assente na herança Matriarcal/Matrilinear ou Patriarcal/Patrilinear. Eis a Questão?

Um dos grandes fenómenos dos finais do século XX, que se expandiu, ainda que a passos lentos, a uma escala planetária, foi a emancipação da mulher, que deixou de ser aquela figura de segundo plano no universo da família. Em vez de continuarem cingidas a esse papel, tornaram-se grandes empresariais, investigadoras, professoras, políticas, cientistas, desportistas de alta competição, deixando de depender única e exclusivamente do marido/pai de filho para o sustento da família. Hoje, as mulheres são tão ou mais competitivas que os homens no mercado de trabalho, ocupando grandes cargos de chefia e de responsabilidade. E, não obstante, continuam a ser mães e mulheres que deixaram de depender financeiramente dos homens/maridos ou pai dos filhos. Este fenómeno, numa sociedade tão pequena como a Cabo-verdiana, teve um impacto gigantesco na estrutura das famílias do país. Aquela mulher que dedicava boa parte do seu dia a cuidar dos filhos (educar, dar de comer, lavar, vestir, ajudar nos deveres da escola, fazer o almoço, jantar e ainda fazer doces, pastéis, entre outras coisas, para vender e ter algum sustento para a família que, na maior parte das vezes, não contava com um escudo do pai dos filhos), teve de ir para a escola aprender a ler e escrever, já que a maioria era analfabeta, ao passo que outras ingressaram na faculdade e muitas lançaram-se no mercado de trabalho.

Há já algum tempo que me venho debatendo mentalmente com esta questão, que penso ser de grande importância nos dias de hoje para uma breve compreensão da evolução da sociedade cabo-verdiana em particular e, oxalá, de qualquer sociedade em geral. Para tal compreensão, penso que será importante, antes de mais, perceber a estrutura familiar que esteve e está na base da composição da sociedade cabo-verdiana desde os primórdios até a atualidade.

Resumindo de uma forma clara e direta, a questão apresenta-se da seguinte forma: Serão as bases das famílias cabo-verdianas assentes no papel desempenhado pelas mulheres, configurando esta situação uma sociedade “Matriarcal” onde estas sempre desempenharam um papel fundamental na educação dos filhos, na organização e composição da própria família e do lar, e, muitas vezes, também a única fonte de rendimento da família, ou serão os homens, naquilo que se designa de modelo “Patriarcal”, o verdadeiro chefe de família, aquela figura autoritária e respeitada pelos filhos e o único que contribui, enquanto fonte económica, para a subsistência da família?

Este dilema pairou sempre no universo da sociedade Cabo-verdiana. Dever-se-á esta situação, porventura, à natureza sensível desta sociedade, ligar-se-á a uma questão de machismo cultural e pudor social? Ou será motivada por pura incompreensão, esquecimento ou porque dá jeito não colocar o dedo na ferida por alguns setores que possam hipoteticamente ter alguma responsabilidade na sociedade? Seja como for, com todas as incongruências e atrevimento, mas acima de tudo com humildade intelectual, hoje decidi, conscientemente, tocar na questão de uma forma descomplexada. Faço-o como um exercício a cidadania e sem apontar o dedo em nenhuma direção.

Antes de aprofundar o meu raciocínio, gostaria de elaborar uma breve introdução acerca do(s) “significado(s)”, e sua respetiva evolução ao longo do tempo, de termos como Matriarcado e o Patriarcado.

Sociedade matriarcal é uma configuração de sociedade na qual o papel de liderança e poder é exercido pela mulher, especialmente pelas mães.

“Segundo as palavras do Antropólogo Suíço Johann Jakob Bachofen (1815 – 1887) a maternidade é a fonte de todas as sociedades humanas, religião, moral e decoro. Ele teorizou sobre um "direito-de-mãe" dentro do contexto de uma religião matriarcal.”

“Considerações importantes sobre o matriarcado também foram feitas pelo antropólogo Bronislaw Malinowski. Na pesquisa que fez junto aos trobriandeses, ele afirma que as mulheres possuem um papel importante na vida da comunidade, liderando-a em muitas áreas. Outra importante descoberta deste autor foi que o parentesco era matrilinear, não importando quem era o pai biológico.”

“Um dos grupos mais respeitados no assunto atualmente é o grupo de estudos internacional chamado “Modern Matriarchal Studies” (Estudos Matriarcais Modernos). A principal pesquisadora deste grupo é a alemã Heide Göttner-Abendroth, que se dedica a estudar sociedades matriarcais em todo mundo em diferentes períodos da história.

A partir dos estudos desse grupo, o conceito de matriarcado recebeu um novo significado, que não busca sociedades construídas através do poder feminino. A palavra grega “arché”, que compõe a etimologia das palavras patriarcado e matriarcado, possui dois significados: dominação e início. Os estudiosos do patriarcado preferem o uso do significado dominação, e esta talvez seja a causa de desacreditarem da possibilidade de sociedades matriarcais, porque buscavam sociedades lideradas por mulheres, como base no poder de dominação. Os estudos recentes sobre matriarcado utilizam o segundo significado, traduzindo a palavra como “as mães do começo”.

Este significado permite pensar nas mulheres como mães no sentido biológico e como mães no sentido cultural, enquanto criadoras do início, do começo. Por esta virtude de dar à luz, de fazer nascer, as mulheres são detentoras de um poder que é superior ao poder de dominação, característico do patriarcado, o poder da criação.”

Patriarcado é uma doutrina social em que homens mantêm o poder principal e imperam em funções de liderança política, autoridade moral, regalias sociais e controle das propriedades. No domínio da família, o pai (ou figura paterna) mantém a autoridade sobre as mulheres e as crianças. Algumas sociedades patriarcais também são patrilineares, o que significa que a propriedade e o título são herdados pelos homens e a descendência é imputada exclusivamente através da linhagem masculina, às vezes, até ao ponto onde parentes do sexo masculino significativamente mais distantes têm precedência sobre parentes do sexo feminino.

Concluindo esta pequena introdução sobre a diferença terminológica entre o modelo Matriarcal e o Patriarcal, iremos concentrar-nos, agora, na realidade Cabo-verdiana.

A primeira questão que se coloca quando falamos da origem da sociedade Cabo-verdiana tem a ver com a formação da nossa identidade como povo, sendo que esta se encontra intimamente ligada ao continente africano, aos homens e mulheres de diferentes regiões e grupos étnicos capturados pelo colono e trazidos para os arquipélagos de Cabo Verde.

“Mama África”, o continente africano, é representado na figura de uma mãe: o matriarcado como substrato social dos povos que habitam o continente africano.

Além disso, na construção da identidade deste povo foi também determinante a própria influência do colonialismo, que trouxe as caraterísticas das sociedades ocidentais. Nesse campo, destaque-se a influência portuguesa, que penso ter tido um papel muito influenciador ao colocar o pai como o elemento nuclear da família e da sociedade, relegando a mulher para um papel meramente secundário e, na maior parte das vezes, de submissão parcial ou total à figura masculina, embora isto não corresponda à verdade, como mais adiante tentarei clarificar.

Foi a colisão destes dois mundos diferentes que deu origem à sociedade Cabo-verdiana, que com o passar do tempo foi ganhando uma textura própria, depois de assimilar todas as influências recebidas.

Senão, vejamos como em África sempre existiram sociedades matriarcais, tal como sucede na Ásia, onde os vestígios históricos, nomeadamente a arqueologia e a história da arte, o comprovam através das representações de figuras femininas adoradas, de entre as quais se destacam, entre outras: a Deusa das serpentes cretense, a Vénus de Willendorf, hoje também conhecida como Mulher de Willendorf.

Hoje, de forma categórica, podemos indicar estas cinco comunidades contemporâneas totalmente governadas por mulheres: Gana os Akan, Costa Rica grupo indígenas os Bribi, Oeste da Nova guiné os Nagovisi, Indonésia Sumatra os Minangkabau e perto da fronteira de Tibete os Mosuo, etc.

Continuando a analisar a realidade Cabo-verdiana, penso que podemos assumir que na sua essência básica, a sociedade é matrilinear/matriarcal, uma vez que quase “tudo” gira à volta da mulher, ou seja, é ela o pilar da família. Ela é mãe, muitas vezes mãe solteira cujo marido ou pai dos filhos a abandonou para ir viver com outra(s) mulher(es), ela é dona de casa em todos os sentidos, isto é, educa sozinha os filhos, faz os deveres de casa quando os filhos ainda não têm autonomia para ajudarem, é ela que trabalha e, na maioria das vezes, é com o salário dela que os filhos comem, se vestem e vão para a escola. A mulher foi, desde sempre, a pedra basilar da sociedade Cabo-verdiana, assumindo-se ainda com mais força enquanto tal nos momentos de maiores dificuldades a nível nacional, quando os homens, devido ao flagelo da imigração por causa da seca e da falta de recursos do país, tiveram de se aventurar por outros destinos, sendo que muitos esqueceram a família, que ficou para trás na forma de um grande peso deixado nas costas das mulheres, as quais se viram obrigadas a assumir todos os papéis que deveriam ser partilhados com o marido/pai dos filhos.

Hoje, muitos homens e mulheres que se formaram (Cidadãos exemplares e bem-sucedidos) em Cabo Verde e com alguns estatutos e responsabilidades social, devem-no às mulheres/mães solteiras e chefes de famílias que souberam educar e ajudar a formar os seus filhos sem qualquer ajuda do marido/pai dos filhos e sem qualquer ajuda social, ao contrário do sucede nos países do dito primeiro mundo.

O papel da mulher é tão louvável no desenvolvimento humano da sociedade Cabo-verdiana que quando muitas se emanciparam, a estrutura social encontrou em colapso total e ainda hoje isso se faz sentir.

São exemplo, a grande taxa de criminalidade jovem que assolou a sociedade Cabo-verdiana no início de 2000. Na minha humilde opinião, esta deveu-se à emancipação das mulheres, ainda que outro motivo tenha contribuído para esse fenómeno. No entanto, uma vez que estamos a falar do papel da mulher na sociedade Cabo-verdiana, vou cingir-me a esta questão apenas para tentar explicar este fenómeno que penso estar ligado ao papel desempenhado pela mulher no seio da estrutura familiar, papel que muitos homens nunca desempenharam e alguns já mais desempenharão.

Primeiro, quero deixar bem claro que não é um ataque ao papel do homem/pai, que penso ser tão importante como o da mulher quando é cumprido ou partilhado com a mulher.

Segundo, quando digo que a emancipação da mulher teve uma influência enorme na falta de acompanhamento da educação dos filhos, não é de forma alguma estar a resumir o papel da mulher a estas “meras tarefas” e, muito menos, enveredar por um discurso de machismo, nem nada que se pareça. Trata-se apenas da constatação de um facto ocorrido e que teve influência, uma vez que não havia outra figura, nomeadamente a paterna, para assumir o papel desempenhado por ela na sua ausência.

 

Pintura de Raymond Douillet

Um dos grandes fenómenos dos finais do século XX, que se expandiu, ainda que a passos lentos, a uma escala planetária, foi a emancipação da mulher, que deixou de ser aquela figura de segundo plano no universo da família. Em vez de continuarem cingidas a esse papel, tornaram-se grandes empresariais, investigadoras, professoras, políticas, cientistas, desportistas de alta competição, deixando de depender única e exclusivamente do marido/pai de filho para o sustento da família. Hoje, as mulheres são tão ou mais competitivas que os homens no mercado de trabalho, ocupando grandes cargos de chefia e de responsabilidade. E, não obstante, continuam a ser mães e mulheres que deixaram de depender financeiramente dos homens/maridos ou pai dos filhos.

Este fenómeno, numa sociedade tão pequena como a Cabo-verdiana, teve um impacto gigantesco na estrutura das famílias do país. Aquela mulher que dedicava boa parte do seu dia a cuidar dos filhos (educar, dar de comer, lavar, vestir, ajudar nos deveres da escola, fazer o almoço, jantar e ainda fazer doces, pastéis, entre outras coisas, para vender e ter algum sustento para a família que, na maior parte das vezes, não contava com um escudo do pai dos filhos), teve de ir para a escola aprender a ler e escrever, já que a maioria era analfabeta, ao passo que outras ingressaram na faculdade e muitas lançaram-se no mercado de trabalho.

Tudo isso teve o seu impacto na educação dos filhos em famílias desestruturadas por causa da ausência da única figura de autoridade que muitas dessas familiais possuíam, traduzida na presença quase constante da mãe/mulher da vida dos filhos controlando todos, ou quase todos, os passos de forma a que estes não se desviassem para caminhos obscuros, com veio a acontecer, infelizmente.

Tudo isso poderia ser minimizado se o homem se tornasse uma figura presente e cumprisse o seu papel de pai e não de mero progenitor.

Muitas mulheres tiveram que abandonar o lar e os filhos numa idade complicada para irem em busca de melhores condições de vida para elas e para os seus filhos, o que numa família onde eram elas a única base, teve impactos a todos os níveis na sociedade Cabo-verdiana.

Como é óbvio, existem muitas exceções, mas comparando com a nossa realidade, são uma minoria.

Na minha opinião, a nossa sociedade é patriarcal só a nível formal, a nível da representação, pois a estrutura e os alicerces tornam-na, toda ela, matriarcal.

 

Esta configuração é um produto do colonialismo ocidental, com o respetivo papel que os homens representavam nessas sociedades, nas quais as mulheres estavam submissas aos maridos, não tendo qualquer direito nem sobre os próprios filhos.

Vejamos, a esse respeito, a imagem de propaganda do Salazarismo, assente nos temas Deus, Pátria e Família. A representação gráfica deste slogan era a mulher com o avental à volta do fogão, os filhos a fazerem os deveres de casa e o marido a chegar do trabalho. A mulher e as crianças corriam ao encontro do chefe da família para prestarem vassalagem ao patriarca. No mesmo regime, a mulher adúltera podia ser morta pelo marido sem que ele sofresse qualquer consequência jurídica, enquanto ele podia ter amantes que a mulher tinha que consentir.

Aliás, a obra Os dois irmãos, do nosso fabuloso escritor Germano de Almeida, retrata esta realidade.

Tal como disse Cheikh Anta Diop, “o sistema matriarcal é a base da organização social no Egito e em toda a África Preta”, sendo que Cabo Verde não fugiu à regra.

Também foi, e será sempre, muito importante o papel das instituições de apoio às mulheres, no sentido de ajudarem muitas delas a recuperarem a autoestima, tendo em conta o modo como a perderam com a educação e a retórica machista que foram escutando ao longo da vida.

Digo isso, porque já ouvi discursos como “ami ka ta vota na mudjer pa manda na mi”. A pergunta que fica é se ela votará num “homem para mandar nela”. Estamos claramente em presença de um discurso motivado por complexos de inferioridade. De facto, quando se vota, vota-se na pessoa que, independentemente do seu sexo, acharmos competente para assumir algo. É preciso desconstruir este discurso de inferioridade que paira ainda na mente de muitas mulheres, uma vez que o papel delas é tão importante como o dos homens.

Espero que em relação à nossa sociedade, o futuro, para bem das nossas famílias, traga maiores equilíbrios e mais cooperação entre os papéis que cada uma tem que desempenhar no seio familiar.

Poderia continuar com outros exemplos e explorar outros aspetos, mas penso que o essencial, por agora, está dito. Aguardaremos por uma próxima reflexão sobre o mesmo assunto.

Gostaria de terminar com a seguinte frase de Efu Nyaki: “Metade do mundo são as mulheres. A outra metade, os filhos dela”.

Ednilson Fernandes, Jovem Careca para os amigos.

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