III CENA
Frente à frente, de pé, Paulito e Nhu Desempate convençam-se. Nhu Desempate trajado de branco aristocrático, Paulito segurado no cabo de uma enxada, com óculos escuros nos olhos, mas que não estorva que lhe vejam o penso no olho machucado.
PAULITO – Preciso dar-lhe uma fala, Patrão.
NHU DESEMPATE – Diz-me então rápido.
PAULITO – Você sabe que estamos na época de matricular meninos na escola…
NHU DESEMPATE – Tens filho para matriculares na escola?
PAULITO – Três filhos. Dois rapazes e uma menina.
NHU DESEMPATE – São trigémeos?
PAULITO – Cada um tem a sua mãe.
NHU DESEMPATE – Rapaz! Tu não segues Planeamento Familiar? Não escutas a rádio?
PAULITO – Escutar o quê?!
NHU DESEMPATE – Ah, pois, não tens tempo. Fazer filhos não te deixa. Nunca ouviste dizer que homem mulherengo, que joga batota, fuma droga e bebe muito, não garante futuro aos filhos?
PAULITO – Felizmente, vício que tinha era de arranjar muitas mulheres. Mas graças a Deus já o pus no chão e cobri uma pedra por cima. Agora só tenho uma que moramos juntos. Já pensei até em casar-me com ela.
NHU DESEMPATE – Pensaste muito bem. Vejo que restam poucos homens que pensam como tu neste mundo.
PAULITO – Jogos de batota… para mim não existem. Nem uma carta do baralho eu conheço. Não distingo o duque do terno. Da droga também já ouvi falar, mas não a conheço, muito menos prová-la. E pela informação que tenho sobre ela… nem a quero conhecer.
NHU DESEMPATE – Não precisas de falar mais nada hoje. Um homem responsável deve defender a sua dignidade e zelar-se pelo bem-estar da família, principalmente dos filhos.
PAULITO – Você tem razão. Os meus filhos são a minha riqueza.
NHU DESEMPATE – E o que é que precisas de mim?
PAULITO – Quero que me adiante o ordenado da próxima quinzena para ir matriculá-los.
NHU DESEMPATE – Não recebeste anteontem?
PAULITO – Recebi… mas o você já sabe como é que é. Para comprar coisas pra casa… a minha mulher precisava de um par de sapatos… para comprar os livros, sacolas… estes nem lhes vou comprar porque o dinheiro não chega. Vou manda-los fazer de tecido num alfaiate.
NHU DESEMPATE – Já estou a ver.
PAULITO – E as coisas estão caras! Uma quarta de milho está por 23$00; peixe, o mais barato que há, é dobrada, três custam dez tostões; meio litro de petróleo custa dezasseis tostões e uma caneca de feijão custa um cruzado. Agora faça a conta sobre o meu ordenado de quinze escudos por dia.
NHU DESEMPATE – Também… com todos esses filhos! (Dá-lhe o dinheiro) Por esta quinzena ser uma catorzona, paguei-te 210$00. Se vieres a dar falta ao trabalhodesconto-te no ordenado da próxima quinzena.
PAULITO – Muito obrigado.
Toma o dinheiro e dá uns passos para sair. Nhu Desempate repara-lhe no olho.
NHU DESEMPATE – Desculpa-me Paulito: o que é que te aconteceu no olho? Só agora é que reparei que tens um olho tapado!
PAULITO (atrapalhado) – Não é nada de grave. Deve ter sido uma melga que me pousou aí. Bem, adeus.
NHU DESEMPATE – Vai com Deus, e as minhas melhoras.
PAULITO – Amém! Até amanhã.
IV CENA
Na casa da Xia, Paulito está sentado entre os colegas. Está contente, com as cartas na mão a baralhar.
XIA – Senhor Paulito, antes do mais, deixa-me avisar-te: se é como ontem que queres vir fazer, por favor dá-me licença, porque não quero chatices.
PAULITO – Oh, mulher; senta-te e deixa-me jogar em paz. Ontem era ontem. (Ri-se) Hoje vou esfolar esses armados em batoteiros.
XIA – Só te estou a avisar. Agora tu é que sabes. Quem avisa, amigo é.
PAULITO (dá-lhe uma nota de vinte escudos) – Vai lá trazer-me um grogue.
XIA – De qual é que queres? Merdon ou Santo Antão?
PAULITO – Que bebe Merdon é quem não tem dinheiro. Traz-me grogue de Santo Antão. E se tiveres aquela palha do costume, traz-me um charrinho para vir curtir um coxi o meu feeling.
XIA – Tu já sabes que coisas destas, graças a Deus, nunca faltam.
Xia entrega-lhe um cálice de grogue e um charro. Ele tira uma caixa de fósforo do bolso, acende o charro e fuma. Ganha quase sempre sozinho. Patrick fica falido e passa algumas partidas a assistir.
PATRICK – Dá-me um passe, amigo.
PAULITO – Amigo?! Quando é que isso foi? Ou já te esqueceste ontem? Muito rápido!
PATRICK – O que se passou ontem está enterrado. Eu não guardo rancores.
PAULITO – Passou-se quanto a ti! Não foste tu que sentiste a dor! (Aponta o dedo para o olho machucado) Estás a ver aqui? Tu é que me tens com esta lâmpada fundida.
DJUCRUCO – Estás com lâmpada fundida porque procuraste!
PAULITO – Fuma no dedo… ou então compra. É baratinho. Só dez paus cada charrinho.
PATRICK – Se não queres dar, não dês! Não precisas de me mandar comprar.
CARLOS – Tu também não tinhas nada que lhe pedir beata. Sabes como ele é!
PATRICK – Cruco, casa-me uma mão.
DJUCRUCO – Quando se está a jogar não se dá dinheiro ao adversário. Traz azar.
PAULITO (ri-se às gargalhadas) – Se quiseres… eu compro-te os óculos.
PATRICK – Quem é que falou contigo?
PAULITO – Ya, man. Então tu é que sabes. Se queres vinte escudos dou-te pelo Ray Ban! Xia, não canses. Traz mais um grogue e mais um charro.
XIA – Igual ao de há pouco?
PAULITO – Exatamex. E os macacos que não querem fazer despesas em casa manda-os para o olho da rua. O caminho está livre, o vento está fresco e a porta escancaramos de banda a banda.
XIA (depois de lhe servir) – Paulito, Edite disse-me para te dizer que ela é gosta muito de ti. Ela disse que tu és um gajo fixe.
PAULITO – Qual Edite?
XIA – Edite da ilha da Brava.
PAULITO – Quando é que ela te disse?
XIA – Há bocado. Ela está no meu quarto. Se quiseres dar-lhe uma fala… esteja à vontade.
PAULITO – Se eu quero dar-lhe uma fala?! Isto é pergunta que se faz, Xia?
XIA – Perguntei-te primeiro porque podes achar-me atrevida!…
PAULITO – Achar-te atrevida? (Levanta e dá-lhe uma nota de vinte escudos) Toma pagamento. (Para os rapazes) Já viram que o dinheiro é alavanca do mundo? Vejam como é que estou a ser cortejado pela dama mais linda cá da Zona.
PATRICK – Não sei por que é que estás a gabar?! Como se Edite fosse uma ganda dama! (Levanta-se) E deixa-me ir embora antes que me chateie de novo!
PAULITO – Ya, man! Ainda demoraste!
Patrick sai e Paulito entra no quarto da Xia.
V CENA
Patrick e Bia estão no quarto, sentados na ponta da cama.
BIA – Hoje podes ficar à vontade. Paulito não vem tão cedo.
PATRICK – Deixei-o em casa da Xia a jogar e a fazer paródia com os rapazes. Não deve estar a demorar.
BIA – Quando ele diz que não vem cedo… às vezes nem vem nesse dia. E se está na paródia então… esquece-se que tem a casa dele. É como na casa de Nha Froza: até de manhã.
PATRICK – Vai confiando! Não sabes que há dias de azar? Que há horas minguadas? Dia que ele nos apanhar em flagrante…
BIA – Viraste muito cobarde. Como se já não és homem!
PATRICK – Se ser homem é andar e arranjar sarilhos… prefiro não sê-lo.
BIA – Podes não sê-lo para mais ninguém. Mas para mim tens de ser homem… sempre homem… muito homem e homem macho. (Dá-lhe beijo e tira-lhe a camisa) Diz-me que és homem só para mim… diz-me… diz-me… diz-me, que quero ouvir… sacode-me.
Caem na cama.
VI CENA
Paulito volta do quarto da Xia todo emproado.
DJUCRUCO – Baralha as cartas e eu corto.
PAULITO – Claro que baralho! Não sei o que fizeram na minha ausência!
CARLOS – Tu és mesmo confuzento, pá!
PAULITO (enquanto baralha as cartas) – Como é? (Dá um arroto) Estão a sentir-me a arrotar à manteiga?
DJUCRUCO – Coitado! Nunca teve, quando tem é muito terrível.
PAULITO – Quem nunca teve são vocês que até ainda não tiveram. Eu tive, precisamente, há bocadinho. Ahahah!
CARLOS (fica falido, passa duas partidas de fora) – Paulito, casa-me uma mão!
PAULITO – Casar-te uma mão?! Qual delas é que está solteira?
DJUCRUCO – Pede a Xia que te empreste 50$00, pagas-lhe amanhã. Diz-lhe que já faliste.
PAULITO (ri-se gozando) – Diz-lhe que fui eu que te fali.
CARLOS – Não dá as cartas ainda. Ó Bia!
BIA [O. S.] (do quarto) – O que é, Carlos!
CARLOS – Chega aqui, por favor!
XIA – Não podes vir tu? Estou ocupada.
CARLOS (levanta-se) – Volto já. Não dá a carta enquanto eu não voltar, Paulito.
PAULITO – E traz dinheiro que chegue.
Carlos vai ter com a Xia.
VII CENA
CARLOS – Empresta-me 50$00.
XIA – Pagas-me 100$00?
CARLOS – Pago-te. Já marcamos as cartas e vamos falir o Paulito já.
XIA – Ele esta com muito dinheiro hoje! Não sei por onde passou!
DJUCRUCO [V. O.] – Carlos!
CARLOS – Já vou. Despacha-me, Xia.
Xia mete a mão no bolso, tira 50$00 e dá-lhos.
VIII CENA
Paulito dá as cartas enquanto goza com os rapazes.
PAULITO – Quanto é que a Xia te emprestou?
CARLOS – O que é que tu tens a ver? Atrevido! Tu é que lhe vais pagar?
PAULITO (ri-se) – Hoje é que é hoje. Faço-vos vender todos os vossos farrapos. E eu é que os compro. (Carlos ganha primeira mão, depois ganha quase sozinho) Chiça, pá! Puseram Diabo na carta ou quê? (De vez em quando ganha uma mão) Se não tivesse invocado Diabo não ganhava.
DJUCRUCO – Calma, Paulito. A gente também tem direito de pegar a boca-do-estômago. Ou querias ganhar sozinho? Assim Deus não gosta.
Volta a perder e fica falido. Os rapazes riem-se dele. Tira o relógio e segura na mão.
PAULITO – Compra-me este relógio por 80$00, Djucruco. Tinha-o comprado por 150$00 ainda não fez um ano.
DJUCRUCO – 70$00?!
PAULITO – 80$00 que eu disse!
DJUCRUCO – Não deves estar bom da cabeça! Se quiseres 40$00!…
PAULITO – 40$00 vais metê-los dentro do teu olho do cu. SEIKO 5, Japonês, por 40$00?!
DJUCRUCO – Então fica aqui a inchar os olhos como estás.
CARLOS – E agora… estás a arrotar o quê?
DJUCRUCO – Agora ele está a arrotar à babosa. Ahahahah. Xia, traz-nos dois Santo Antão e dois trois. [truá].
CARLOS – Sabes o que é trois?
DJUCRUCO – É aquele de Angola. Aquele que após três fumos… se vê o blue. Se põe a dose completa.
Paulito inclina a cara ao peito e segura o relógio na mão.
XIA – Dois, ou três, Djucruco?
DJUCRUCO – Três?! Quando o brejeiro pediu um, por que não confundiste e trouxeste quatro?
Xia entrega-lhes dois grogues e dois charros.
PAULITO – Bom… dá cá 50.
DJUCRUCO – 40. E antes que me arrependa e baixar por 30.
PAULITO – Dá 40.
Perde-os em quatro mãos de jogos. Passa mais quatro sem jogar, despe as calças e camisa e fica só com cuecas e sapatos.
CARLOS – Traz mais uma rodada, Xia. Que bafio é que há?
XIA – Há polvo, lagosta, moreia, torresmo, tartaruga, sarabulho, mão de vaca… há de tudo o que precisarem.
CARLOS (para o Djucruco) – Pedimos tartaruga?
DJUCRUCO – Tartaruga não. É muito perigoso. Só se for para Paulito que tem muitas namoradas.
CARLOS – Traz quatro postas de moreia por minha conta.
XIA – Carlos tem um coração melhor do que tu, Djucruco. Tu pediste grogue só para ti, ele pediu bafio para vocês todos.
CARLOS – Eu?! Vou já apanhando as minhas duas…
Ele apanha duas postas e Djucruco apanha as outras duas.
PAULITO – Quem me dá 60 paus por estas roupas?
CARLOS – Eh! Paulito, vais tomar banho ou vais-te deitar?
DJUCRUCO – Dou-te 30 se quiseres, mas tens que incluir os sapatos.
PAULITO (matuta um bocado, descalça os sapatos) – Toma, oportunista! Dá 35.
DJUCRUCO – 35 não. Se quiseres 30!… 35 nem com peúgas e cuecas incluídas.
PAULITO – Todo o modo… homem no mar, mão é no mar; na terra, mão é no que é seu, ou no dos outros. Podes deixar cinco na mesa e apostamos mais dois e quinhentos para a maior carta virada.
DJUCRUCO – Queres apostar mais 2$50 para quem tiver melhor jogo?
PAULITO – Está morto. Passa-me os 20.
Perde essa partida.
DJUCRUCO – Por hoje já está bom do jogo.
Levanta-se.
PAULITO – Isto não é jogo, rapazes. Acabem de me falir e levantem-se!
CARLOS (levanta-se de um pulo) – Eu também não quero jogar mais. Só nós os dois… não tem piada.
PAULITO – Porquêeeeee!
CARLOS – Os 20 que te sobraram, vens amanhã matar a ressaca.
PAULITO – Isto não é jogo!
CARLOS – Xia, dê-nos mais dois grogues e despedimo-nos. (Dá-lhe uma nota de 100$00) Aqui estão os 50 que me emprestaste mais 50 de juros. (Dá-lhe mais 20$00) Isto é para pagar o grogue e o bafio. Os trocos ficam para ti.
XIA – Muito obrigada.
Carlos despede-se da Xia com um aperto de mão e acena ao Paulito. Djucruco vai apertá-lo a mão e olha-o fixamente nos olhos.
DJUCRUCO – Vens amanhã?!
PAULITO – Para quê precisas saber? Se eu vier ou não, incomodo-te?
CARLOS – Eh! Ainda por cima és refilão!
DJUCRUCO – Vou agora tomar um banho, visto umas calças boca-de-sino e vou ver se encontro alguma pixinguinha lá pra casa de Nhu Branquinho.
CARLOS – E Paulito tem que ter cuidado para o Pepi não lhe apanhar no seu curral com a sua besta. Já não tem dinheiro para ir a Nhu Branquinho!…
Carlos e Djucruco saem, Paulito continua sentado.
IX CENA
XIA – Paulito, sai também e vai-te embora porque vou-me deitar, quero fechar a minha porta.
PAULITO – Espera mais um bocadinho… até que a luz apague para não me verem nu a ir para casa.
XIA – Credo, rapaz! Deixar-te ficar em minha casa até que a luz apague… depois da meia-noite? O que as pessoas dirão de mim? Que me deitei contigo? Sai, sai… por favor.
PAULITO – Então vê se tens alguns calções, nem que sejam velhos e vende-me para desenrascar.
XIA – Assim já… já conversaste. Por acaso tenho uns aqui que eram do falecido. (Vai ao quarto e traz uns) Dá-me vinte paus.
PAULITO – Só me sobraram 20, Xia. Dou-te 10$00.
XIA – Nem penses!
PAULITO – Os dez que vão sobrar, vende-me um cinco de grogue, quatro cigarros e dás-me quatro escudos de trocos.
XIA – Bem, assim já… não está mal de todo.
Recebe o dinheiro e entrega-lhe os calções. Apanha a garrafa e um copo.
PAULITO – Enche bem o copo de forma a matar-me a vergonha para poder dar voltas à minha mulher quando eu chegar.
XIA (troca o copo por um do meio quarto) – Toma meio quarto. Assim, se a Bia te der porrada, estarás anestesiado, não sentes a dor. (Xia vai ao quarto e traz-lhe uma t-shirt) A t-shirt eu é que te ofereço.
PAULITO – Obrigado. (Seca o copo) De hoje em diante, se me virem sentado a jogar batota, lanhem-me o rabo com um x-ato. Eu é que mandei.
XIA – Então vais ficar a jogar em pé?
PAULITO – Não estou a brincar.
XIA – Não me digas que vou perder um freguês?!
PAULITO – E para que acredites, vou fazer a cruz com a cadeira. (Encosta o rabo à parede) Cruz, Santa Cruz. Nunca mais.
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