NOTA PRÉVIA
Pátria Soletrada à Vista do Harmatão é um projecto de viagens a Cabo Verde e a escrita de um livro onde serão abordados aspectos paisagístico-patrimoniais, sócio-históricos, culturais, antropológicos e políticos. É um projecto que implica deslocações e permanências nas várias ilhas, e não só, mas também aos locais onde haja comunidades cabo-verdianas relevantes. Fa-lo-emos por etapas, à nossa medida, consoante a nossa disponibilidade financeira e de deslocação. Ou num período seguido de seis meses, se tivermos o apoio ou o patrocínio de entidades com responsabilidades ou interesse na matéria, quais sejam Associação Nacional de Municípios (ou os municípios individualmente), Fundo de Turismo, Ministério das Comunidades, etc. Aguardamos manifestação de interesse.
Por razões de actualidade, as partes 1 e 2 foram deslocadas da sequência natural ou ideal, das partes já escritas, referentes estas ao nosso amado Tarrafal e alguns lugares da ilha do Fogo.
PRELÚDIO
Aqui começa a viagem. Parto para a invenção e o conhecimento do que há-de ser o meu país.
Subir as colinas do tempo, descer aos mares da memória. Ver nas faces dos seus habitantes, reais e imaginados, a suma sede de tudo. Cartografar a pátria dos homens puros na santidade do pecado. Divisar na escuridão a claridade que consola, e no fulgor da palavra viva a certeza de que sou eternamente livre. E na soberania do tempo o sumo sinal da mortalidade.
Com a palavra viva calar a voz do infortúnio, mas tornando tudo verdadeiro entre os prazos do esquecimento. Assinalar que a tarefa do homem é preservar a liberdade. Que criar a beleza é, assaz, a mais alta possibilidade de dominar o tempo. Que, em verdade, nada do que é essencial prospera longe da palavra. E que a vida só é curta se colocada no patamar ou na balança da eternidade. E que lavar e preservar a alma é tarefa da candura e da cordialidade. Que a terra não exige outra ciência que nos sabermos vivos e libertos, e apostados nessa árdua arte de durar, mesmo se te descobres na amargura do exílio, ou em fuga à fatalidade e suas vetustas meadas.
Aqui começa a viagem. E nosso unívoco desígnio de não cegarmos os olhos para quanto nos interpela, mesmo se repisamos a via dos predecessores ou tudo se torna insuportavelmente inenarrável.
Indagaremos como se determina uma genealogia, mas não aguardaremos pela aprovação que não melhora o nosso pecúlio, herança ou febre. Repartiremos pelos dias o lume do entusiasmo e da candura, para que nos não visitem a vacilação ou o queixume. Sobre as feridas calcaremos a saliva do tempo como propícia poeira que assegurasse, à conta dos indícios, que o dano é irrefutável.
Partir por tantas veredas e caminhos, sem a desculpa dos padecimentos que nos pesam. E assinalar no início de cada trilho este rumo que escolhemos, e assim escapar ao espantalho da pequenez ou da periclitância. E sentados no degrau mais alto espalhar o pólen mais perene para a consagração do que houvermos nitidamente visto com o olhar da imaginação, quando a apreensão da realidade nos pede o soberano prumo do mistério.
Não teremos, porém, a certeza se porventura o pasmo nos lavará a névoa dos olhos e a espuma das narinas. Se diante da fraqueza a grandeza encherá a nossa boca e os nossos ouvidos. Não saberemos, porque amiúde, ou sempre, duvidamos, porque grande «é essa pátria do pânico e do desnorteamento», e não há refúgio nem termo para o que alimenta a nossa inquietação.
Haveremos de ler os sinais e os vestígios, os pasmos e as reinvidicações desse povo que, cantando, aguarda a chuva que jamais chega. Esse que desfolha a incerteza com o melhor dos augúrios, porque lhe é grata a verdade vindoura: que também haverá descanso na tribulação, e para se dessedentar haverá sempre a escuma ou a névoa, que melhor se estendem quando a poeira fatídica palpa os vivos contornos da Pátria Soletrada à Vista do Harmatão.
Que caminhos escolher se a perícia é essa frágil meada que nos não concede a segurança que pusemos nos vaticínios ou nos propósitos plantados entre as trevas? O que ficar por indagar constará entre as obras do futuro, porque nesse tempo, pausadamente, palparemos, para melhor assinalar as fendas onde tropeçamos, o ancoradouro da chegada ou os páramos da partida.
Partimos para sopesar as lendas e as histórias, até ao que remonta à cogitação mais íntima, por razão do nosso pacto, que é como a fome gorda que nos vara até aos ossos.
Partirás ao vento e à chuva que falta aos campos do teu país. Mas corrigirás no poema este descuido dos deuses pregando a bátega benfazeja sempre à cabeceira do poema. E lá onde mais seu estrépito se ouvir, escutarás a voz da mãe chamando-te para dentro de casa para te encheres do fumo e da resina que te salvarão do naufrágio e do olvido.
Nenhuma tabuleta verás a indicar a pátria prometida, mas saberás sempre que chegaste, quando o coração se sobressaltar ao açoite do harmatão ou a tua pele se tingir da tinta turva do sol-pôr. Então, gritarás os nomes dos lugares, para concluires que sempre ansiaste a escuridão porque ela aleita a tua imaginação, que tudo te permite ver, desde os contrafortes alongados às baías rasas onde sonhaste a beleza que se entreabre na face escondida de nenhures.
Bendirás a vida que te deram, o pão duro e a oração esquecida, e por mais que penses no absurdo sem fim há uma estrada que te conduz de novo entre altivas montanhas aos pastos onde prosperam as manadas.
Partirás sem derramar uma lágrima, porque vais ao encontro do que amas, mesmo se na tua boca o teor das invectivas é um chumbo que lastra como as pedras que atiraste em amorosa contenda aos corvos da tua infância, nas vertentes onde rola a lestada sazonando a inclemência.
Falaste disso em tantos poemas que te libertaste do grito de ânsia acumulada nas estações da sede. Em silêncio, na estação em que a vida se afere pelo peso da posteridade, partes. Para indagares, sob os auspícios da partilha, o que jaz no coração das ilhas. Mesmo se nos avisam da corda da derrota a traçar o rasto à perdição, ou a contínua hesitação, fugidia certeza, entre se aquilo que auscultamos foi gerado antes do tempo, ou tudo é uma pobre aglutinação que não depende da nossa adesão de homem que roda pelas escarpas estremecidas afastando em investidas de delírio os suplícios e os maus fados.
Que sabemos nós, afinal, ó parcas, da prudência quando sobre as nossas têmporas, pelas empenas da certeza, brande a inquietude, afinal, o nosso selo de homem?
Poderemos não ser desses adros ou desses montes, dessas charnecas ou dessas eiras que vigiam toda a transcendência, mas procederemos ao inquérito conveniente, com a língua que desconhece o comedimento, porque tudo nos há-de ser gozo, fúria, ou gozosa fúria, diabrite ou pasmo, desilusão ou gáudio, semeada a semente certa e volvidos nós outros ao íngreme regaço da inquietação ou aos prodígios que obram a língua e os pés do peregrino.
Parto com as feridas todas abertas e o sal do tempo pingando sobre elas, mas o único consolo é chamar-te PÁTRIA.
Que as parcas nos não invejem o ímpeto e a ousadia com que ansiamos emoldurar nesta estação da nossa vida esta vocação que não hesita nem se detém diante da derrota inexorável.
1
CHÃ DAS CALDEIRAS — REGRESSO AO CORAÇÃO DE LAVA
Regresso ao coração de lava. Acolhe-me a sombra do pico mais cimeiro. Desde que partimos da amodorrada S. Filipe e por Monte Barro, Vicente Dias, Brandão, Patim, Forno, Salto, Monte Largo, Queimado, Achada Furna, Cabeça Fundão, atravessando paisagens variegadas, que minha alma ansiava apenas as chãs distantes, a sombra dos homens caindo, alta, sobre a terra, suas vozes requebrando-se na inteireza das penedias, cantando o início das coisas criadas e incriadas.
Vejo as marcas do desastre, mas também o germinar do sonho e da perseverança, nas casas, poucas, que se alevantam sobre tanta periclitância, nas vides que orlam os caminhos de novo rasgados, nos funcos que se dispersam na paisagem estratificada, na canção dos vivos que se decompõe entre as leiras ainda acabrunhadas, nos sulcos de esperança que não perguntam ao tempo pela sua minúcia implacável, no som de um sino que vibra destronando tanto silêncio, esse que borda desde a cabeceira do povoado essa pétrea veemência velando de novo os passos do peregrino e do estrangeiro.
É pela porta estreita que adentro a taberna do Ramiro (Montrond), e um franco sorriso, mas olhar de estranheza, acolhe a minha saudação e o anúncio de que vinha cumprir a promessa, anos ali feita: entregar-lhe um exemplar de Coração de Lava, agora livro de memória e recriação das chãs devastadas pela erupção de 2014( livro esse premonitoriamente recebido da gráfica no dia em que se iniciaram os abalos telúricos). Já pouco se lembrava ele de mim, mas pelo viés da noite, ao som da música, muito vinho e alguma cerveja, lá nos fomos aportando aos dias antigos da minha primeira visitação à Chã.
Quem se me depara, também, ao fundo da taberna, é uma figura familiar da primeira visita, com quem nunca falara, pois, sempre que eu estava por perto, punha-se ele a recitar o conhecido e pessoano o poeta é um fingidor, levando-me a crer que, ou ele saberia quem eu era, ou, no mínimo, era um interessantíssimo personagem naquele sítio de névoa e dor, onde as conversas fluem sonolentas e o enxofre habita as entranhas da terra e se infiltra no hálito dos que, vivos, medem os dias à soleira dos astros que se soltam das alturas para vir confidenciar no silêncio magmático, nos sinais barafustados, a sorte futura de viagens e colheitas.
Fixara-o sob a alcunha de Bin Laden (sei-o agora Danilo Fontes, Don Danillon, insubmissa voz dos anseios das gentes dessas chãs), com suas longas e brancas barbas, camuflado a condizer, beberricando do mosto das chãs, entre brejeiros chistes e algum pesado humor, típico das gentes desta ilha. Foi-me ele o guia nesta nova visitação, o confidente dos anseios e revoltas, dos temores cuja materialização é a lava terrosa que cobre Bangaeira e, num diferente veio, estacara súbita e cenograficamente à porta do Ramiro e, doravante, acortina o som da orquestra Pai&filhos (hoje sem a presença do patriarca Nho Djonsinho Montrond, mas cujo violino emoldurado confirma a linhagem ininterrupta) e colhe a admiração e o espanto do visitante e do estrangeiro.
O despojamento é um preceito essencial aqui onde o olhar se não desgasta, mas renasce em cada matiz, em cada rugosidade, renasce em cada mirada a esta paisagem que reclama duma primordial cegueira, qual se para o parto da intemporalidade a finitude dispusesse os seus parcos grãos numa conjunção em que a analogia ou a similitude são deveras a razão que testa a infinita descrença do visitante, face à perene certeza do habitante, de que aquilo que destrói também traz vida, e o perigo é ainda a ocasião para se certificar que o nascimento é um óbito irrefutável, e a romã e a figueira melhor conhecem a justiça do tempo que os nossos ossos plantados para uma safra que não requer nem o aluvião bendito ou a água toda dos presságios.
*
Pelas sacudidelas de Bila Baxu até à Chã, passando pelas muitas voltas e ruelas em Achada Furna (quantas das localidades nossas, ditas cidades, têm a estrutura urbana de Achada Furna?), o meu estômago já estava a pedir um qualquer, ainda que leve, aconchego. Ali chegados, partimos logo ao assalto duma lata de atum, acompanhada dumas retemperantes bolachas, pretexto sobretudo para uma cerveja comemorativa do regresso à Chã, a conversa com o Danilo, (Bin Laden, que em Lisboa alguém me dissera ter morrido duma queda) e o Ramiro Montrond, enquanto se aprontava o verdadeiro almoço na casa em frente, do David e da Zenita, filho e nora do Ramiro, nossos anfitriões, e onde iríamos pernoitar antes do nosso regresso a S. Filipe, bem cedo, na manhã seguinte, numa despedida sem tristeza, transportados por Cocôia Montrond (coincidentemente irmão do Zezé Montrond, nosso guia na excursão ao vulcão e ao vulcãozinho na nossa primeira viagem a Chã das Caldeiras) que nos trouxe de novo ao coração de lava.
Quem reencontro também é essa atentíssima Antónia, de quem falei no poema 4 de Coração de Lava:
E enquanto imaginávamos silos e usinas/
saíram-nos ao caminho mulheres clarividentes,/
antecipando a festiva curiosidade da infância/
deslumbrada e dessa atentíssima antónia,/
terna criatura, feita sombra nossa/
nas tardes de inquirições recorrentes.
Mudada da soterrada Bangaeira (mas com corajosas construções já despontando ali e acolá) para a antiga rua principal, um pouco mais velha agora, vejo-a sentada num desvão de luz, já pulsante das sombras do quase tardecer, leio-lhe no rosto calmo a paciência que burila essa insonora revolta que se perde num horizonte queimado que se estende por ilhéu (djeu) de Losna, ou dobra por Bangaeira, direcção do Monte Velha, em amorosa dança de inquebrantável altivez, que me enche a cabeça de prelúdios ao poema em que, em falas ásperas, arrisquei o retrato das silenciosas soberanas desta terra. Falo-lhe, e assim desfaço o novelo que o tempo e a distância interpôs entre nós, e ela responde-me com a sua voz entre altiva e resignada, apontando os netos, pequenos vultos na penumbra da casa, corações que fazem brotar mesmo entre os cataclismos e perversidades deste mundo o sublime dom da compaixão.
Este reencontro faz-me subir a rua num delírio de anjo, o céu baixo do lugar a recrudescer de aleluias, orai por nós, ó telúricas bocas, recordai-nos os nomes e os rostos desses que cedo abalaram, cercados pela lava ou sentados sobre a pedra da espera, deixando atrás súplicas de sangue ao ouvido dos deuses moucos, aqui onde a infância talvez não caiba na palavra casa, mas diz-se na dureza da lava estratificada, na sombra que sonha ouvindo a canção da chuva, no vento peregrino conjurando o desastre que sempre se ouve ressoar neste perpétuo falanstério de espera, onde o eco (ou o tempo) diz: sou eterno, e isso basta.
É à noite, quando uma luz negra e vivaz se esfiapa na bordeira, que minha alma se enche do mais alto júbilo. É a orquestra dos Montrond&Companhia a romper em memoriosa toada de fogo, em requebros vivos e sonambúlicos, em girândolas de vozes a desatar a noite veloz por dentro de um sangue que não dorme, trazendo a vida assim cantada da treva primordial a essoutra treva que nos alumia nas corcovas lavadas pela graça de um sol que só de noite murmura a desmesura do nosso destino, ou diz, à rémora que tarde sela o fôlego, que será sempre o fogo e o vento a ampararem-nos a busca.
De rosto voltado a oriente, perto dos álveos que nos outorgam a lassidão ou o ímpeto, sem hesitação ou ambiguidade, repetimos que o que caminha connosco vem da tenacidade acrescentada ao grão, que não ignora que o que sabemos ou intuímos é uma curta ou consentida versão dos faustos celebrados junto à raíz de tantas tribulações. E porque este é um tempo de inventários, nós observamos, incansavelmente observamos, porque a vicissitude fia sempre por pequeníssimas fábulas as versões da grande história ou catástrofe.
Por isso não duvidai dos padecimentos que se esteiam à sombra destes céus, pois eu bem os vi, à beira da tarde, a um sol enfarruscado, na vivacidade dessas crianças vendendo sonhos em forma de funcos. Estão sentadas à entrada do parque natural, são de tez clara e morena, pequeninos anjos a quem não pude estender a mão, enquanto rolava o hiace pela estrada da tarde, saudando já o colosso magnífico exalando a força telúrica por que anseia a planta dos meus pés e o meu destino de poeta, hoje vestido de viandante e peregrino.
Quem lhes dá o pão que lhes falta, sonhos em forma de palavras, o calor duma canção quando a névoa e o frio descem sobre as suas vidas minguadas, sobre as suas poses valentes de guerreiros de batalhas parturidas apenas na sua imaginação infante?
Rinchoa, Novembro de 2019.
*José Luiz Tavares é poeta e tradutor. Publicou treze livros entre 2003 e 2019. Recebeu inúmeros prémios, sendo o escritor mais premiado de sempre do seu país. Os seus poemas estão traduzidos para inglês, espanhol, francês, italiano, alemão, neerlandês, mandarim, russo, letão, finlandês, letão e catalão.
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