Pátria Soletrada à Vista do Harmatão
Cultura

Pátria Soletrada à Vista do Harmatão

DAS CASAS

É regressado (por estes dias) à casa da infância que tornas ao labor da edificação memoriosa, que é, em verdade, a levedura que transforma em perenes signos o que palpa a determinação tua, só vida que nos visita quando melhor acariciamos a desventura.

Tal é um dom que amamos como as brasas da mais alta interrogação, ou, encostados ao chão, nos despimos das nossas dores, e na nudez equânime dizemos aos deuses que um tempo há para acrescentar a cólera à mansidão do espírito, essa maré que nos subtrai ao refúgio da grandeza para o ardor da querela, que sempre fizemos, a nosso modo, o ínvio caminho para a festa da fraternidade.

É debaixo de promissoras nuvens que se fundem a memória e a imaginação, e tu procuras o desenho da casa com as artes da palavra, porque perdeste para sempre a régua e o compasso, a enxada e a peneira, a kafuka e a xila, o toleti e a pota, longe da empena e do batente, esses profícuos lugares do louvor e do esconjuro, e vais de encontro às casas que guardam estranhos sonhos das almas que se tornam visíveis na incandescência dessa escuridão que vela o rosto dessa que franqueia as suas portas com um dúbio sorriso que só tu podes agora compreender.

Bates às portas da morada antiga, mas ouves apenas a voz da errância que te repete: «parte, aqui já não há nada para ti; inventa outra pátria de palavras lá onde o destino te levar». Mas tu desejas findar nesse mar ao sol-pôr, no reino dos que cedo abraçaram a solidão e a salmoura, as luxuriosas tempestades que evocas com grato estremecimento, porque a dor longínqua dorme domesticada nos versos do poema, e tu caminhas agora pela pátria do presente, à vista das casas que testemunham o labor do homem e seu secreto desejo de eternidade, proibindo-te as lágrimas e o temor, mesmo quando é o som da morte que ainda escutas, abafado, pelas empenas mofinas, onde os guizos de terror não embotam o teu entendimento, nem amarfanham o furor da existência que brota das palavras, que agora sabes a via por que te livraste duma pobre vida de assentimentos.

*   *   *

Essas casas que ao longe despontam, é em mim que renascem nos ciclos de torna-viagem. Em mim que me despego do pé destas pedras, e quedo-me diante do mundo largo a recordar-me corsário em estado de alerta, ou costado na areia a reviver a calma, replantada raiz num labor de desassossego a que falta a gota de água para o viço e o alento.

Casas emergindo do lén das ribeiras, arrancadas à negrura da noite pelo viés da alvorada, casas tristemente redesenhadas do mar em frente, na gradual perspectiva que vai de monti moska a pirdigotu, plantando pelo caminho desconhecidas urbes nascidas da minha imaginação infante.

Casas que torno a vós na constância dessa fome de ser, imperturbáveis sentinelas duma vida de rudeza e aceitação, sei-vos a primeira saudação quando nas altas névoas da serra lavo-me do cieiro nos dias de torna-viagem, em que a felicidade é a empena onde descansarei na repetição dos gestos que se cumpre como um ritual apaziguador.

Casas que não calais a desordem, mas incutis o princípio de que aquilo que se ergue é sempre produto de um método, aceito as vossas boas-vindas desde o alto cutelo onde expio a exigência da partida para uma vida despida de heroísmo, e contudo com a faca da nostalgia a murmurar-me: quando tornas do teu exílio nesse norte de neve e amplidão?

Casas que descendeis desde pasu i tetu, kabesa karera i monti moska, e espraiais por rasaka i len mendi, pontu, riba strada, len di txada i riba d’orta, por kintal, petxeku, ponta rubera até ao malpás das novas construções, e bebeis no mar as nostalgias marinheiras, quando não é o murmúrio do escuro a porta para o segredo dormindo nas levadas abandonadas.

Dou por mim transformado em vigia desfalecido, e vós subindo sobranceiras, com o poder de perdurar diante dos ventos inclementes, do salitre que beija as portadas e os batentes, ataca os frisos delicados onde pusemos tanto denodo, tal que nem a chuva que raro nos visita apaga as linhas embutidas que agora despontam para um diferente resplendor.

Numa de vós dei serventia à arte fina dos pedreiros rabelados, à molenguice de djustinu fan e à sisudez de paxinhu fitiseru. Por isso, não me apressai na despedida; que na calma eu adormeça outra vez, provando que o propósito da vida é dizer os vínculos todos que prendem o homem às raizes da sua vida, na constância da vossa fidelidade, ó casas, casas, por toda a eternidade resignadas a tanta paração.

Este destino de correr terras e fazer da casa tudo o que o pasmo lê com o olhar grave, faz-nos tropeçar amiúde no orgulho que esfregamos pelas nossas costas acima, como se para melhor falar da premência com que as parcas patenteiam o seu êxito tenhamos que tornar a vós, casas, ao vosso desenho, perene diante dos mutáveis sonhos que pelejam para o êxito ou a danação.

Casas que não dizeis qual o melhor preço para o sangue que se guarda nos potes da identidade, ou o peso e a tara dos ossos secos, mas chorais diante da corrupção dos mais gratos ideais, se a alma claudicante cai do trono alto da sapiência, que para o perdão há que vestir o corpo e atapetar o espírito com a dominância da graça e da longanimidade, há tanto, tanto, perdidas.

Casas que ecoais os sinos das vésperas e das matinas, os gritos da parição e os estertores da partida, vem a aurora e pede contas às portas por abrir, porque procuramos sempre um melhor poiso para descansarmos dos périplos e peripécias desta vida, porque todos os passos são raízes que nos prendem aos parapeitos da identidade.

(É decerto presunção de poeta querer apurar o teor do que não consente certeza alguma, e é só desvio que aponta o caminho da saída, ou análoga tabuleta que te indica a parte da sina radicada entre as empenas memoráveis).

Espanta-te que ainda rescendam a salmoura viva os telhados sob o sol (o pequeno elefante amarelo de seka-pexi foi sonho fugaz duma industrialização que não se concretizou), pois foi há muito o tempo dos grandes cardumes, do cheiro a txitxaru apodrecendo nas areias de dianti kasa, do rumor das vendedeiras retornadas por íngremes veredas desses moirões do nosso ribeirinho desdém, com o milho e o feijão da primitiva ancestral safra ou troca, mas tu sabes que estás aqui para confirmares o mundo verdadeiro da tua memória, para que nunca o disfarces de poesia ou fábula, mas recordes sempre as doze estrelas que guardam os poiais da casa eterna, embora seja no exílio que a tua sina se cumpre, com a perícia que somas agora à timidez da criança mofina de outrora.

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