É, pois, nesse terreno duplamente fértil mas também duplamente pantanoso que se vêm acolhendo os pescadores das águas turvas da descrioulização, sempre à cata de formas descaradas ou subtis de levar a bom porto o seu empreendimento e o seu empenhamento des-identitários, bastas vezes de teor reaccionário, obscurantista e neo-colonial(ista), mesmo quando travestido em modos supostamente modernizantes, eruditos e cosmopolitas, ainda que estranhamente reduzidos ao almejado e selecto mundo das elites islenhas amiúde imbuídas de saudosistas complexos de superioridade em relação às massas nativas crioulófonas do seu próprio país crioulo e oficialmente lusófono e de sorridentes e angustiantes complexos de inferioridade em relação ao outro, outrora ostensiva e abertamente colonizador e agora subreptícia e manhosamente neo-colonizador, sobretudo se ostentando uma expressão ocidental, e sempre firmemente ancoradas no universo da lusofonia e da lusografia de feição europeia, e a uma visão desassombradamente lusófila, lusitanista, luso-crioulista e lusotropicalista do mundo, de induzida dialectização da nossa língua materna, aliás, amiúde confundida com uma pretensa nobilitação do idioma nosso crioulo, já severamente condenada por Baltasar Lopes da Silva na fase pós-colonial do seu longo e muito produtivo percurso de vida de adjacentista/regionalista/nacionalista cultural caboverdiano.
À especial consideração dos que a autora do texto "Ah! A Boa Escola!..."
denomina crioulistas e dos assumidos alupecadores, nos quais me
Sinto integrado, sem quaisquer pejo e complexo.
VII. DO ESTADO LASTIMOSO- SENÃO CALAMITOSO- DA LÍNGUA PORTUGUESA NO ENSINO PÚBLICO EM CABO VERDE E DE ALGUMAS DAS SUAS MAIS ESTUDADAS, EVIDENTES, NOTÓRIAS E SUPERÁVEIS CAUSAS
Reitere-se, aqui e agora, o facto de também eu reconhecer o estado lastimoso, senão calamitoso, no qual se encontra a língua portuguesa no Ensino Público em Cabo Verde, podendo ser trazidas à colação, e a título meramente exemplificativo, as seguintes razões para tal estado de coisas, aliás, já apontadas e analisadas por inúmeros estudiosos, com destaque para Dulce Almada Duarte e Amália Melo Lopes :
i. A incúria com que se tem tratado a língua caboverdiana, condenando-a a um verdadeiro limbo e a um patente ostracismo no sistema formal do ensino, como se não se tratasse da língua materna e primeira de todos os caboverdianos das ilhas, língua transnacional, bastas vezes, exclusiva, de ligação e comunicação entre todas as diásporas caboverdianas espalhadas pelo mundo, entre si e com o país de plena radicação identitária do povo das ilhas, e língua co-oficial (ainda que jurídico-constitucional-mente somente de forma parcial, imperfeita e incompleta e, por isso mesmo, em processo de construção) na República de Cabo Verde.
Não obstante a evidência catastrofista da situação sócio-linguística e didáctico-pedagógica da língua portuguesa em Cabo Verde, ela continua a gozar de um duplo, contraditório e assaz privilegiado estatuto, adveniente fundamentalmente da diglossia reinante no nosso país e dos correlativos códigos e espaços dominantes na/da sua utilização, designadamente como i. língua plenamente oficial, única língua do ensino formal, principal língua da escrita e do labor literário, ii. mas também língua nacional caboverdiana em construção, sendo disso reflexo o chamado português literário caboverdiano, muito cultivado, pela primeira vez e em estilística e estética literárias assaz pioneiras, pelos escritores caboverdianos claridosos e prosseguido pelos escritores caboverdianos neo e pós-claridosos do período colonial e do período pós-colonial, por forma a, de alguma forma, colmatarem e compensarem a ausência do crioulo (verdadeira língua materna da massa das personagens ficcionalmente retratadas na sua por vezes trágica, por vezes heróica e anónima odisseia) nas suas obras literárias lusógrafas e a outorgarem uma marca indelevelmente crioula às mesmas obras. Hodiernamente, o português caboverdiano parece distinguir-se e singularizar-se no conjunto das variantes nacionais do português - à semelhança, aliás, das demais variantes afro-lusófonas-por específicas marcas morfo-sintácticas e lexicais, felizmente inventariadas, preservadas e valorizadas no âmbito das políticas linguísticas da CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa) e do IILP (Instituto Internacional de Língua Portuguesa).
Do duplo estatuto da língua portuguesa em Cabo Verde resulta a sua inquestionável condição como importante e, até, imprescindível língua de Cabo Verde, conjuntamente com o idioma materno caboverdiano, estando a língua portuguesa ademais e consequentemente adstrito a uma dupla posição:
a) Num lugar cimeiro nos espaços formais da comunicação veiculada ou embebida de lusografia e/ou de lusofonia.
b) Num lugar secundaríssimo nos espaços informais da comunicação veiculada ou engendrada pela oralidade, pela oratura, pela oralitura e pelas demais formas de expressão das tradições orais, obviamente intermediada pela língua materna caboverdiana.
É nesse terreno que medra cansada, mendicante, desprevenida e desventurada a diglossia, sendo, por isso, fértil em interferências, descaracterizações e mimetismos linguísticos, evidenciados em especial no plano da escrita supostamente etimológica da língua caboverdiana e/ou orgulhosamente engendrada e afanosamente declarada como tal, porque operada com base e referência no alfabeto português, e legítima, verdadeira e honestamente encarada como herdada dos nossos mais antigos letrados e praticantes das letras e da música crioulas e, por isso, declarada como tradicional, também para saciar a sede enganosamente filial e ostensivamente reverente de alguns protagonistas, quer em relação ao próprio idioma português, tido por único idioma matricial do nosso crioulo, quer ainda em relação aos nossos letrados, letristas e compositores musicais mais antigos e sempre ao gosto oscilante e assaz arbitrário de cada letrado, letrista e escriba de serviço.
É, pois, nesse terreno duplamente fértil mas também duplamente pantanoso que se vêm acolhendo os pescadores das águas turvas da descrioulização, sempre à cata de formas descaradas ou subtis de levar a bom porto o seu empreendimento e o seu empenhamento des-identitários, bastas vezes de teor reaccionário, obscurantista e neo-colonial(ista), mesmo quando travestido em modos supostamente modernizantes, eruditos e cosmopolitas, ainda que estranhamente reduzidos ao almejado e selecto mundo das elites islenhas amiúde imbuídas de saudosistas complexos de superioridade em relação às massas nativas crioulófonas do seu próprio país crioulo e oficialmente lusófono e de sorridentes e angustiantes complexos de inferioridade em relação ao outro, outrora ostensiva e abertamente colonizador e agora subreptícia e manhosamente neo-colonizador, sobretudo se ostentando uma expressão ocidental, e sempre firmemente ancoradas no universo da lusofonia e da lusografia de feição europeia, e a uma visão desassombradamente lusófila, lusitanista, luso-crioulista e lusotropicalista do mundo, de induzida dialectização da nossa língua materna, aliás, amiúde confundida com uma pretensa nobilitação do idioma nosso crioulo, já severamente condenada por Baltasar Lopes da Silva na fase pós-colonial do seu longo e muito produtivo percurso de vida de adjacentista/regionalista/nacionalista cultural caboverdiano.
É igualmente nesse terreno de dupla fisionomia e de dupla afeição que, como é sabido, o crioulo se constituiu historicamente também no seu duplo estatuto e na sua dupla feição de i. língua plena e global na expressão da nossa identidade nacional e transdiaspórica, ii. língua oficial em construção, encetando com múltiplos ziguezagues a via da sua almejada e imediata parificação político-simbólica e da sua gradual e segura equiparação material com a única língua, agora e sempre (mas certamente não para sempre) plenamente oficial da nossa República afro-atlântica independente e soberana que é o português.
É, pois, nesse terreno duplamente fértil em obtusas divagações e e abstrusas navegações linguísticas que se fazem ressonar e ressoar algumas estranhas, mas persistentes, vozes, na sua vã, desesperada e errónea tentativa de perpetuar o actual e condenável estado de diglossia no qual vem vegetando, se atolando e se empobrecendo a nossa paisagem sócio-linguística.
VIII. BREVÍSSIMOS REFLEXÕES SOBRE A PADRONIZAÇÃO/ESTANDARDIZAÇÃO/ NORMALIZAÇÃO DA LÍNGUA CABOVERDIANA
1. CONJECTURAS SOBRE O PRÓXIMO FUTURO DA PADRONIZAÇÃO DA LÍNGUA MATERNA CABOVERDIANA
Em Cabo Verde, porque ainda não existe variante-padrão da língua materna caboverdiana ou, dito de outro modo, língua crioula padronizada e não tendo sido eleita nenhuma variante como variante-padrão para a escrita e o ensino da língua caboverdiana por entidade governamental e/ou parlamentar devidamente abalizada e competente na matéria, são as variantes de cada ilha (isto é, as nove variantes insulares existentes e como tal reconhecidas histórica e socialmente) as formas de existência e de consubstanciação da língua materna caboverdiana consagrada como "língua oficial em construção", ao lado da língua oficial plena que é o português, no artº 9º da Constituição da República de Cabo Verde. Por isso, e independentemente da eventual futura padronização da língua caboverdiana com base numa ou em ambas as variantes sócio-linguisticamente mais importantes, que são efectivamente as variantes de Santiago e de São Vicente, ou, até, numa terceira variante que por uma qualquer razão político-estratégica, linguístico-cultural, demográfica, económica ou outra efectiva e inquestionavelmente relevante, que sempre requererão os necessários e alargados debates prévios, cientificamente fundamentados e politicamente consensualizantes, sou da opinião que, nas actuais circunstâncias linguísticas e sócio-linguísticas imperantes no país, o ensino do crioulo deve processar-se com base na variante de cada ilha, sob pena de se infligir uma incompreensível e inaceitável violência simbólica e político-cultural contra a auto-estima das populações das diferentes ilhas e a diversidade dialectal intrínseca à diversidade cultural insular do nosso arquipélago. É o que, aliás, propôs a Comissão de Línguas, criada no consulado do Ministro Mário Lúcio Sousa e extinta no consulado do também Ministro da mesma pasta, Abraão Vicente, diga-se que na sequência de uma anterior proposta de Manuel Veiga, vazada em livro e restringida, tal como agora, a uma padronização, ensino e oficialização plena (no sentido material) às variantes de Santiago e de São Vicente da língua caboverdiana, e muito longe, diga-se, da recomendação do Colóquio do Mindelo que propugnava uma padronização da escrita do crioulo com base somente na variante de Santiago, na senda, aliás, da acima referida opinião defendida e fundamentada por Baltasar Lopes da Silva. Acrescente-se que por agora a proposta supra do conceituado e experiente linguista Professor Doutor Manuel Veiga trazida a público pela primeira vez no seu livro Cabo Verde- A Construção do Bilinguismo parece-me excessivamente centralizadora, se bem que assaz nuançada e adaptada às tradicionais e fratricidas rivalidades Santiago-São Vicente e respectivas pulsões hegemónicas no contexto arquipelágico e diaspórico caboverdiano, . Faria, pois, todo o sentido alargar a metodologia Sul-Sul e Norte-Sul, proposta por Manuel Veiga, à totalidade das variantes insulares da língua caboverdiana, o que, segundo explicações suplementares veiculadas pelo mesmo investigador e professor universitário jubilado na sua respectiva página do facebook, seria efectivamente o caso, vindo a disciplina do crioulo a ser ministrado e ensinado às crianças e aos alunos das diferentes ilhas nas respectivas variantes insulares, embora os manuais da disciplina de crioulo tenham que necessariamente ser elaborados somente nas variantes de Santiago e de São Vicente de forma a poderem constar, por razões atinentes aos respectivos custos económicos, num mesmo manual escolar unitário. É essa visão descentralizadora e empoderadora das comunidades insulares que também ressalta de forma expressiva do Discurso Bilingue de Tomada de Posse do recém-eleito Presidente da República, José Maria Pereira Neves.
A futura implantação das autarquias insulares/regionais, ao lado das autarquias municipais, no contexto da descentralização do poder local democrático, poderá ter importantes implicações positivas na optimização dos recursos humanos, financeiros e materiais mediante a celebração de parcerias entre, por um lado, o Estado central caboverdiano e a Administração Pública desconcentrada e, por outro lado, essas mesmas entidades insulares/regionais/municipais descrentralizadas na preservação, na promoção e na difusão das nove variantes principais da lingua caboverdiana, tendo sempre em perspectiva a consideração de forma integral da unidade e da diversidade linguísticas caboverdianas, isto é, a compreensão de Cabo Verde a um tempo como um continente e um arquipélago culturais, na feliz e inapagável expressão do ensaísta e pensador Gabriel Mariano.
Relembre-se neste preciso contexto de preconização do ensino escolar do crioulo nas variantes insulares das respectivas populações que todas as ilhas de Cabo Verde são portadoras de pujantes tradições orais, já recolhidas e publicadas, pelo departamento de tradições orais da instituição pública competente na matéria, designada e sucessivamente a Direcção-Geral da Cultura, o INAC, o INPC, o INIPC, etc.), para além de também disporem de autores literários e musicais (letristas) versados nas respectivas variantes e com importantes obras já publicadas. O ensino do crioulo poderá ser visto ademais como uma oportunidade ímpar para traduzir para o crioulo as principais obras da literatura caboverdiana lusógrafa, para tanto podendo ser elegíveis as variantes insulares e regionais nas quais as personagens presentes nas mesmas obras literárias maxime os seus autores se expressam.
2. BREVÍSSIMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE EXPERIÊNCIAS ESTRANGEIRAS DE PADRONIZAÇÃO LINGUÍSTICA, COM ESPECIAL ENFOQUE DAS GRANDES LÍNGUAS TRANSNACIONAIS, NULTINACIONAIS E INTERNACIONAIS
Se no contexto de uma língua supranacional, como o português, o inglês, o alemão, o francês ou o espanhol (castelhano) são aceitáveis e são efectivamente praticados vários padrões linguísticos, existindo de facto e/ou de jure pelo menos duas ou mais variantes-padrão para o português (Portugal e Brasil), para o inglês (Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte e Estados Unidos da América), para o alemão (Alemanha, Áustria e Suíça), como exemplos mais evidentes, sempre coexistentes com variantes dialectais, por vezes muito vivas, resilientes e fortes, como no caso dos dialectos regionais alemães, dos dialectos regionais austríacos bem como do suíço alemão (uma quase língua nacional no contexto multilingue suíço) ou dos dialectos regionais e insulares do português, a construção de dois padrões linguísticos em Cabo Verde, a Sotavento com base na variante de Santiago, e a Barlavento com base na variante de São Vicente, parece-me francamente questionável, sendo todavia inelutável a construção de padrões diferentes para o crioulo de Cabo Verde e para o crioulo da Guiné-Bissau, tão ligados entre si, na minha opinião, como o são a variante europeia do português (português de Portugal) e as diversas variedades de português padronizadas e praticadas no Brasil e nos demais países lusófonos, designadamente em Angola, em Cabo Verde, na Guiné-Bissau, em Moçambique, em São Tomé e Principe e em Timor-Leste.
A padronização/estandardização/normalização de uma língua deve, na minha opinião, reflectir a unidade de uma dada nação ou de um dado Estado-nação ou a diversidade dos Estados-nação falantes dessa mesma língua, residindo nessa unidade e/ou nessa diversidade a pertinência e a principal razão da existência de uma única variante-padrão ou de múltiplas variantes-padrão de uma mesma língua. Não é por acaso que bastas vezes quando um povo se constitui em Estado num soberano e independente e/ou se consolida politicamente como Estado-nação tem tendência a erigir em língua nacional, em regra padronizada, a variedade linguística falada no país e/ou de que as suas populações são falantes nativas e até então, até ao momento da ruptura política, era considerada como um mero dialecto de uma língua-mãe, como o holandês em relação ao alemão, o luxemburguês em relação ao holandês, o austríaco em relação ao alemão, etc.
A construção de duas variantes-padrão em Cabo Verde pode representar as irreversíveis potenciação, consagração e perenização das rivalidades de feição regionalista hegemónica entre as ilhas de Santiago e de São Vicente nas respectivas esferas insulares e arquipelágicas de influência, com consequências imprevisíveis e indesejáveis na unidade da nação e do Estado unitário caboverdianos (desejavelmente desconcentrados, descentralizados, regionalizados e municipalizados, de um ponto de vista estritamente administrativo e cultural), tal o separatismo e/ou o regionalismo doentio e secessionista num pequeno país arquipelágico dotado de uma notável, senão impressionante, unidade político-cultural do seu povo nas ilhas e diásporas, reflectida na existência de uma única língua nacional (se bem que coexistente no todo arquipelágico com a outra língua de Cabo Verde, o português), sendo, aliás, o caboverdiano o primeiro crioulo do mundo, não obstante a configuração também insular do seu percurso histórico e das suas outras expressões e manifestações culturais e que no plano da sua língua nacional se manifesta na sua diversificação em variantes insulares e intra-insulares, sendo tudo isso que atesta a prevalência de uma comunidade nacional e linguístico-cultural assaz consolidada no chão das ilhas suas onde germinou e floresceu, a despeito das regulares irrupções de bairrismo doentio e de chauvinismo de teor regionalista.
Todo cuidado é pouco, sendo a cautela a melhor conselheira nesta e noutras questões similares, igualmente sensíveis e potencialmente explosivas.
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