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A imortalidade em tempos de pandemia. Apontamentos avulsos de um confinado por mor da vigente situação de calamidade pública sanitária III
Cultura

A imortalidade em tempos de pandemia. Apontamentos avulsos de um confinado por mor da vigente situação de calamidade pública sanitária III

                             TERCEIRAS ANOTAÇÕES

           EM MODO DRAMÁTICO-INTIMISTA E QUASE-METAFÍSICO

     As atrocidades em potente latência e aqueloutras já causadas em todos os continentes pelo novo coronavírus (SARS-CoV-2) e pela COVID 19 e de que vamos dando conta e tomando mais exaustivo conhecimento através das notícias (são já mais de trezentos mil mortos em mais de cinco milhões de infectados, afora os assintomáticos não testados), sendo já comparáveis aos morticínios provocados por guerras localizadas, de grande ou média dimensão, ou por grandes fomes a nível continental e mundial, às mortandades provocadas pelas secas e estiagens e pela incúria do poder colonial no nosso antigo e famigerado arquipélago da fome, e por outras tragédias históricas e catástrofes naturais (ou naturalizadas) que assolaram o nosso vasto e lato mundo, nele incluindo o martirizado povo das nossas ilhas, primam por uma característica sui generis: o silêncio e a sigilosa intimidade na morte que envolvem as suas vítimas, a pouca ferocidade aparente com que labora o agente da morte, a relativa baixa abjecção que a sua aparição pública suscita nos sobreviventes (afora, é claro, os parentes e amigos próximos e/ou mais chegados) e a diminuta repugnância dos cenários fúnebres, se comparada com os cenários de morte de outros, passados, surtos epidémicos e pandemias, tais a peste bubónica (também chamada peste negra), a cólera, a malária, o paludismo, a tuberculose, a varíola (também chamada bexiga), o sarampo, a gripe suína, a peste bovina, a gripe das aves, a gripe espanhola, a doença do sono, a febre amarela, a febre zica, a icterícia, a difteria, o tifo, a sida, o ébola, o dengue, os coronavírus (os antigos e o novo, dos tempos de agora, com as suas novíssimas mutações) e outras pragas infecciosas que hão-de vir com os vírus, os bacilos e outros invisíveis inimigos transmissíveis pelo mero acto de respirar, de falar e de tocar pessoas, bichos e objectos, e outras forças da natureza que hão-de irromper com os micróbios, as bactérias, as secreções anais e vaginais, os ratos, as pulgas, os mosquitos e outros parasitas, e outros seres predilectos da sujidade, da insalubridade, da promiscuidade, da pobreza extrema e da miséria, para também nos relembrar, enquanto seres humanos falíveis, da nossa muitas vezes impotente, conquanto amiúde vaidosa e jactante insignificância num mundo indiferente à miséria e às gritantes desigualdades sociais, e a inexistência em vastos espaços do nosso mundo globalizado das condições necessárias e suficientes para a condução de uma vida humana digna, livre da pobreza, da doença, do medo, da ignorância, da discriminação e de outros muitos malefícios e infernos do subdesenvolvimento e da opressão.                            

Talvez porque no caso vertente se trate de um inimigo invisível que, como nos casos de outros conhecidos coronavírus, se propaga no ar e tem na própria respiração humana (ou, melhor, nas vias respiratórias das criaturas humanas), nos espirros, nas gotículas de saliva e em outras secreções mucosas o seu foco e o seu veículo difusores e obriga, nos seus efeitos e repercussões imediatos enquanto foco e veículo de contaminação e da morte (o seu sempre possível sucedâneo) à invisibilidade no quotidiano dos espaços públicos das suas potenciais vítimas, por via do seu confinamento preventivo ou profiláctico no mais íntimo e privado dos lugares, o lar, locus da domesticidade, baluarte da salvaguarda da intimidade da vida privada (agora levada ao extremo, também na morte e na despedida fúnebre, na ausência de verdadeiras e públicas exéquias e cerimónias mortuárias), lugar de reprodução da família e das suas alegrias, de congeminação dos seus projectos individuais e colectivos de uma vida feliz, de troca das mais inconfessáveis confidências e de selagem de muitas outras cumplicidades privadas, mas também lugar de saturação dos laços conjugais e familiares e, assim, de germinação dos seus conflitos e da sua possível derrocada enquanto loca da família.

   Deste modo, o silêncio parece ser a, de todos visível e a todos audível e apreensível, atmosfera mais característica do actual surto pandémico.

   Silêncio nas ruas, nas alamedas, nas avenidas, nas praças, nos jardins, nas escolas, nas universidades, nas repartições públicas, nos restaurantes, nos quiosques, nas igrejas, nas mesquitas, nas sinagogas e em outros lugares de culto, nos botequins e esplanadas, nos cinemas e teatros, nas praias, nos estádios, nos recintos de espectáculos, nos santuários, nos amplos relvados e em outros recintos abertos para a realização de comícios, de missas campais, de festivais de música e de outras grandes, festivas e altissonantes aglomerações de pessoas.

     Silêncio em todos os lugares de exposição pública e privada dos corpos, das almas e dos espíritos, propiciando infinitos tempos de meditação adentrados no confinamento desse sucedâneo de prisão domiciliária em que, por vezes imaginadas, se tornou o lar, esse útero da casa de cada um, e no qual os companheiros de cela são os parentes mais chegados do núcleo familiar mais restrito e/ou da família alargada, consoante as circunstâncias de cada um, da sua opulência, da sua riqueza, da sua mediania, da sua normal ou extrema pobreza de meios de condução da vida quotidiana, dos hábitos e tradições da sociedade em que vive e/ou cresce.

   Propiciador de calado e ansioso temor, de desviantes e aterrorizadas atitudes (mesmo se pautadas pela discrição) em face do outro, visto sempre como eventualmente contagiado, e tornado ainda mais suspeito na sua potencial ameaça e latente periculosidade porque virtualmente infectado por um vírus invisível nos seus sintomas e nas suas marcas exteriores, como nos casos mais evidentes dos assintomáticos ainda não detectados e com a actual obrigatoriedade, ainda que somente cívica em Portugal, salvo as devidas excepções dos casos do uso obrigatório de máscaras, o silêncio que rodeia e acompanha a insaciável voracidade da disseminação do novo coronavírus (SARS-CoV-2) e da COVID 19 torna-se ademais mais virulento porque indelevelmente marcado pela paciência.

   Não sei se por mor de uma paciência chinesa, neste concreto circunstancialismo ainda assim, e mais uma vez, pejada de sabedoria em face, por um lado, de uma certa e pouco prudente pressa com que alguns vêm encarando a chamada reabertura da economia numa sociedade de mercado marcada pelo consumismo e pela intrínseca necessidade da correlativa contínua expansão da oferta da produção e da procura dos consumidores e dos advenientes ganhos e lucros, aliada à obtusa e abstrusa celeridade (também no sentido próprio psiquiátrico de loucura varrida de celerados, isto é, de seres humanos também céleres na difusão das suas pouco sensatas e potencialmente genocidas acrobacias mentais) de alguns políticos tresloucados nitidamente de má memória futura e, por outro lado, a lentidão com que marcamos os passos nas filas dos mini (e super) mercados, das farmácias, dos mercados e feiras municipais, dos autocarros, dos restaurantes e cafés take away e de encomendas domiciliárias alinhavadas do fundo solitário e apto para a sobrevivência do confinamento, das padarias (incluindo as agora tornadas epidémicas Padarias Portuguesas, se bem que também benfazejos quiosques de distribuição dos jornais e das revistas da nossa predilecção, tão imprescindíveis agora na melhoria da literacia sanitária dos cidadãos e no combate sem tréguas aos fake news, por vezes equiparados, na sua capacidade danosa e na pretendida criminalização da sua disseminação, aos antigos e convenientes boatos e rumores dos tempos de outrora, no agora relembrado antanho severamente punidos).

   Essa mesma lentidão com que nos demoramos nas leituras e nas reflexões sobre as muitas e sempre surpreendentes voltas que o mundo dá e dá ao mundo nosso circundante privado, nos augúrios sobre o que nos anos vindouros há-de vir nas nossas ilhas, no nosso continente, no nosso comum mundo do planeta Terra, da trágica, mortífera e actual comprovação da sua natureza como a nossa casa verdadeiramente comum, de todos os seres humanos sem excepção, com as infecções e os morticínios provocados pela planetária e universal disseminação do novo coronavírus (SARS-CoV-2) e da COVID 19 e com a anunciada e indesmentível crise económica e social do gradual e muito cauteloso pós-desconfinamento e da pós-pandemia dos tempos vindouros …

   Mas também dos eventuais planos B, C, D, etc., a serem congeminados, caso efectivamente vier a Humanidade a confrontar-se com uma Guerra infinita ou de muito longa duração por impossibilidade de se encontrar uma vacina para, fora dos laboratórios de virologia de alta segurança, erradicar e extirpar o vírus, e finalmente, e, de forma longeva e duradoura, curar a doença.

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Redação