Segundo David Hopffer Almada, no caso de Cabo Verde mais do que a necessidade de realizar um referendo de autodeterminação política impunha-se proceder à transferência de poderes da entidade colonial para o único verdadeiro movimento de libertação nacional existente em solo caboverdiano e que era o PAIGC, aliás, devidamente reconhecido pela OUA, desde 1965, e pela ONU, desde 1972, como o único e legítimo representante do povo caboverdiano. A essa argumentação, de grande e iniludível peso em termos políticos e à luz das normas vigentes do Direito Internacional Público, designadamente da Resolução 1514 (XV), de 14 Dezembro de 1960, da Assembleia Geral das Nacões Unidas sobre a concessão (outorga) da independência aos povos e países coloniais, e segundo a qual o exercício do direito de autodeterminação política era sinónimo de acesso à independência política, acrescia o ultimato enviado pelo MFA-Cabo Verde ao Governo Provisório português no sentido de este encetar de imediato as negociações com o PAIGC para a calendarização da independência política de Cabo Verde, sob pena de o mesmo MFA-Cabo Verde proceder à entrega do poder ao mesmo PAIGC, que, segundo reiterava, era o único e autêntico movimento de libertação nacional existente em Cabo Verde. Por outro lado, os desenvolvimentos da situação política caboverdiana posteriores à eclosão do 25 de Abril de 1974 tornaram cada vez mais visível a adesão maciça do povo caboverdiano à tese da independência total e imediata propugnada pelo PAIGC.
SEGUNDA PARTE
CONSULTA POPULAR E INDEPENDÊNCIA POLÍTICA DE CABO VERDE
2.1. Nesta fase, em parte precedente do 25 de Abril de 1974 e da queda do colonial-fascismo em Portugal e em Cabo Verde e em parte coincidente com esses mesmos relevantes eventos históricos, os princípios pan-africanistas e da unidade Guiné-Cabo Verde, incorporados e defendidos no ideário político do PAIGC, revelaram-se como encerrando um grande poder mobilizador.
Releva nesta circunstância o profundo e subliminar significado da proclamação, a 24 de Setembro de 1973, ainda no calor da guerra colonial/da guerra do Ultramar/da luta armada de libertação bi-nacional, do Estado independente e soberano da Guiné-Bissau. Como é sabido, Cabo Verde não fazia parte, nem podia fazer parte, desse mesmo Estado independente e soberano da Guiné-Bissau, quer por razões sumamente candentes e irrenunciáveis, porque fundadas na identidade própria do povo das ilhas e na intangibilidade das fronteiras do seu arquipélago, sendo que todas elas se funda(va)m em princípios de Direito Internacional Público imperativo (jus cogens), designadamente no princípio (direito) da autodeterminação e da independência política dos povos coloniais e no princípio da intangibilidade das fronteiras herdadas do colonialismo, princípios esses consagrados em vários instrumentos jurídicos internacionais, designadamente na Carta das Nações Unidas, na Resolução 1514 (XV), de 14 de Dezembro de 1960, da Assembleia Geral das Nações Unidas, e na própria Carta da Organização da Unidade Africana (OUA).
Relembre-se neste contexto que na sua Mensagem de Ano Novo de 1973, consabidamente considerada como o seu Testamento Político, Amílcar Cabral arquitectara a proclamação de um Estado independente e soberano bissau-guineense pela Assembleia Nacional Popular (ANP) desse povo africano (e cujo processo de eleição indirecta estava quase concluído com a eleição directa já realizada dos conselheiros regionais no seio dos quais sairiam os deputados à supra-referida ANP), e, posteriormente, a proclamação de um Estado independente e soberano caboverdiano, após a criação das devidas condições político-institucionais para o efeito, designadamente a eleição de uma Assembleia Nacional Popular caboverdiana. Esse Estado independente e soberano caboverdiano deveria ser distinto do Estado independente e soberano bissau-guineense, mesmo quando se tem em conta e sendo inegável que Amílcar Cabral continuava a almejar a associação política entre os dois Estados independentes e soberanos oeste-africanos e a pugnar pela união orgânica de ambos os países crioulófonos e afro-lusófonos, antevendo para prazo não muito longínquo a criação de uma Assembleia Suprema do Povo da Guiné e Cabo Verde, desde que assim fosse a vontade expressa dos povos dos dois países para o efeito consultados em referendo, como, aliás, constava expressamente da Constituição Política da República de Cabo Verde, de Setembro de 1980) e/ou por deliberação das respectivas Assembleias Nacionais Populares (como constava da Mensagem do Ano Novo, de 1 de Janeiro de 1973/do Testamento Político, de Amílcar Cabral, da Constituição Política da República da Guiné-Bissau, de 24 de Setembro de 1973, e da LOPE, de 5 de Julho de 1975.
Como anteriormente referido, já no Memorando apresentado ao Governo português no ano de 1960, Amílcar Cabral defendera, de forma inequívoca, a existência prévia de poderes independentes e soberanos em cada um dos dois países como pressuposto jurídico-constitucional e político-institucional para qualquer eventual unidade orgânica/associação política entre os mesmos.
2.2. Acontecimentos de grande relevância política rodeiam esta fase de aceleração da internalização arquipelágica dos princípios pan-africanistas conexos com o projecto de unidade Guiné-Cabo Verde. São os casos do sucessivo regresso a Cabo Verde, ao longo do ano de 1974 e a partir do mês de Maio, de combatentes e de dirigentes do PAIGC, como Henrique Semedo, Zezé Manco, Toi de Suna, Lela Guerrilheiro, Carlos Reis, Corsino Tolentino, João Pereira Silva, Tchifon, João José Lopes da Silva (Jota-Jota), Álvaro Dantas Tavares, Agnelo Tavares Dantas, João Pedro Silva (Baró), Paula Fortes, Maria das Dores (Dori) Silveira Pires, Olívio Melício Pires, Osvaldo Lopes da Silva, Silvino da Luz, Pedro Pires, entre muitos outros dirigentes, responsáveis, comandantes, combatentes e militantes caboverdianos, culminando, primeiramente, na entusiástica recepção de Pedro Pires, Presidente da Comissão Nacional de Cabo Verde do PAIGC, no aeroporto da Praia, e, já a 21 de Fevereiro de 1975, na apoteótica chegada à cidade da Praia de Aristides Pereira, Secretário-Geral do PAIGC, todavia permanecendo na Guiné-Bissau o membro do Secretariado e do CEL do PAIGC José Araújo, a Directora da Escola-Piloto do PAIGC, Lilica Boal, os Comandantes Honório Chantre, Júlio de Carvalho e Manuel (Manecas) dos Santos, integrados na Direcção Superior do PAIGC e no ramo nacional bissau-guineense desse partido bi- e supranacional e das FARP da Guiné-Bissau, e respectiv@s cônjuges/companheir@s.
2.3. Relevante no que se refere a Aristides Pereira parecem ter sido: i. A sua implícita recusa, na sua condição de caboverdiano e de mais alto dirigente político do PAIGC, em assumir primeiramente a candidadtura à Presidência do Conselho de Estado (Chefia colectiva do Estado bissau-guinense, cujo Presidente era equiparado a Presidente da República, num sistema de governo de forte pendor presidencialista) da Guiné-Bissau, proclamada unilateralmente a 24 de Setembtro de 1973, ainda em pleno fragor da luta político-armada de libertação bi-nacional, cargo a que poderia querer aspirar enquanto Secretário-Geral do PAIGC e substituto de Amílcar Cabral. Por sua vez, Amílcar Cabral era consensualmente considerado uma personalidade político-militar carismática e de grande prestígio internacional que, segundo Aristides Pereira, estaria plenamente legitimada para exercer as funções de Presidente do Conselho de Estado da República da Guiné-Bissau, porque bissau-guineense de nascimento, e, acrescentamos nós, totalmente identificado com uma bipatridia caboverdiano-bissau-guineense e com uma futura comunidade política resultante da eventual e propugnada união orgânica/da almejada associação política entre os dois países já independentes e soberanos, e no presente da História consubstanciada na união combativa independentista entre guineenes e caboverdianos no seio do PAIGC. Segundo Aristides Pereira faltar-lhe-ia, enquanto caboverdiano de nascimento (ademais de vivência e de cultura), a qualidade de bissau-guineense de nascimento, facto que obstaria de forma absoluta a uma sua eventual pretensão ao exercício do cargo de Presidente do Conselho de Estado da Guiné-Bissau (mesmo que o Conselho de Estado enquanto Chefia de Estado da Guiné-Bissau se corporizasse numa entidade colegial). ii. A sua também implicita recusa de posteriormente assumir de forma imediata a candidatura ao cargo de Presidente de uma eventual República Unida da Guiné e Cabo Verde, proposta à Reunião Alargada do Comité Executivo da Luta (CEL) do PAIGC, e que, como já referido, teve lugar a 24 e a 25 de Junho de 1975, menos de duas semanas antes da proclamação solene da independência política das ilhas caboverdianas programada para 5 de Julho de 1975, nos termos da Lei Orgânica do Estado de Cabo Verde, de 17 de Dezembro de 1974, e do Acordo de Lisboa, de 19 de Dezembro de 1974. É nessa sequência que Aristides Pereira foi formalmente indigitado pelo mais alto órgão político executivo do PAIGC para ser apresentado à ANP caboverdiana como candidato único do partido-movimento de libertação bi-nacional para exercer o alto cargo de Chefe de Estado caboverdiano, isto é, de primeiro Presidente da República de Cabo Verde, e Pedro Pires foi escolhido pela ANP, por proposta do Presidente da República também eleito/indigitado pela ANP, para ser o primeiro Primeiro-Ministro do Cabo Verde independente e soberano.
2.4. Relembre-se que a 30 de Junho de 1975 tiveram lugar as eleições para uma Assembleia Representativa do Povo de Cabo Verde, dotada de poderes soberanos e constituintes, tendo-se apresentado às mesmas eleições, nos termos da Lei Eleitoral vigente, datada de 15 Abril de 1975 e elaborada e posta em vigor pelas autoridades portuguesas competentes, grupos de cidadãos total e completamente dominados pelo PAIGC, o qual vinha agindo como partido único de facto desde a neutralização política dos partidos políticos adversários do PAIGC na sequência dos acontecimentos que levaram ao encarceramento de alguns dos seus altos responsáveis e importantes militantes no Presídio do Tarrafal. Relembre-se neste preciso contexto que, segundo dados recolhidos no livro Cabo Verde-Os Bastidores da Independência, de José Vicente Lopes, e no livro O MFA e o Processo da Independência de Cabo Verde, de Sandra da Cunha Pires, nos dias 14, 15 e 16 de Dezembro de 1974, militantes do PAIGC, instigados pelos dirigentes do partido então instalados em Cabo Verde em cumplicidade e conluio activos com os responsáveis do MFA local, procederam nas ilhas Brava, do Fogo, de Santiago, de São Vicente, de Santo Antão e do Sal, à prisão de setenta e um militantes e simpatizantes da UPICV e da UDC, por alegadamente os mesmos terem sido informadores da famigerada PIDE/DGS e/ou se terem posicionado activamente contra a descolonização preconizada pelo MFA e a correlativa independência política de Cabo Verde. Entregues à Polícia Judiciária Militar portuguesa, devidamente assessorada pelo advogado caboverdiano António Caldeira Marques, e colocados sob sua custódia, os mesmos militantes e simpatizantes da UPICV e da UDC foram encarcerados no presídio político do Tarrafal (ainda que, como se escreve na incontornável obra Cabo Verde-Os Bastidores da Independência, de José Vicente Lopes, em regime de recreio, isto é, com ampla liberdade de circulação dentro dos murros da prisão e sem que tivessem sido sujeitos a qualquer forma de tortura, sevícia ou outra forma de tratamento degradante, cruel e desumano). Desses setenta e um presos políticos oito foram imediatamente libertados por nada se ter apurado contra os mesmos. Os restantes presos políticos do processo de descolonização de Cabo Verde seriam libertados nas vésperas da proclamação solene da independência política de Cabo Verde, facto devidamente testemunhado pelo então delegado do Procurador da República, Carlos Veiga, tendo sido dezoito deles enviados para o forte de Caxias e entregues à Comissão de Extinção da PIDE/DGS, por alegadamente terem sido informadores da famigerada polícia política portuguesa. Todos esses remanescentes presos políticos caboverdianos seriam entretanto libertados na sequência dos acontecimentos do 25 de Novembro de 1975 em Portugal.
2.5. Para além de constar da Mensagem do Ano Novo de 1 de Janeiro de 1973/Testamento Político de Amílcar Cabral, como um dos seus pontos mais importantes, a eleição de uma Assembleia Representativa do Povo de Cabo Verde (relembre-se que expressamente denominada Assembleia Nacional Popular de Cabo Verde por Amílcar Cabral), dotada de poderes soberanos e constituintes e desejavelmente escolhida por grupos concorrentes de cidadãos em eleições relativamente competitivas, pareceu ao principal negociador português de facto e, na altura, exercendo as funções de Ministro da Coordenação Interterritorial no Governo Provisório da República Portuguesa, o apurado jurista António de Almeida Santos, uma solução ideal e alternativa, enquanto modalidade democrática de consulta popular, ao referendo de autodeterminação política propugnado com insistência, persistência e alguma teimosia e muita obsessão políticas pelo antigo Presidente da República Portuguesa, General António Ribeiro de Spínola, caído em desgraça por ocasião dos acontecimentos de 28 de Setembro de 1974, com o fiasco da sua propalada maioria silenciosa dinamizada em Portugal pelo Partido do Progresso e em Cabo Verde pelo Governador colonial spinolista Sérgio Duarte Fonseca e pelos seus aliados da UDC. Relembre-se ainda que o referendo, cavalgado tanto pela UDC como pela UPICV como importante cavalo de batalha, porque considerado a mais democrática da armas políticas para se apurar a verdadeira e genuína vontade popular no referente especialmente ao exercício do direito dos povos à autodeteminação política, foi sempre veementemente rejeitado pelo PAIGC, pelos países africanos seus aliados e pelos seus responsáveis, militantes e apoiantes políticos da FAAC (Frente Ampla Anti-Colonial), de que o artigo “Não ao Referendo!”, assinado pelo Director do jornal Alerta, David Hopffer Almada, é uma excelente ilustração. Aliás, a publicação desse artigo levou a que o mesmo jornal, abertamente independentista e pró--PAIGC, e por isso, considerado politicamente parcial porque nitidamente favorável a uma das correntes políticas presentes no cenário desse Cabo Verde pós-25 de Abril de 1974, fosse substituido por ordem do Encarregado do Governo na altura, Major Loureiro dos Santos, pelo Novo Jornal de Cabo Verde. Tanto no artigo assinado por David Hopffer Almada como na argumentação oficial do PAIGC, depois devidamente retomada e repercutida nos comícios e nas negociações com o Governo Provisório português, alegava-se que, embora em Cabo Verde não tivesse havido lugar à condução de uma luta político-armada para a conquista da independência política, a questão da autodeterminação política do país tinha sido já decidido pelo povo caboverdiano em actos sumamente eloquentes, quais sejam a participação de muitos filhos de Cabo Verde nas fileiras do PAIGC de Amílcar Cabral tanto na luta político-armada de libertação binacional conduzida no chão da Guiné dita Portuguesa, depois transfigurada e proclamada unilateralmente como República da Guiné-Bissau, e com base logística na Guiné-Conacri, como também na por demais arriscada luta política clandestina levada a cabo em Cabo Verde e de que os presos políticos recentemente libertados das masmorras colonial-fascistas seriam testemunhos irrefutáveis. Segundo David Hopffer Almada, no caso de Cabo Verde mais do que a necessidade de realizar um referendo de autodeterminação política impunha-se proceder à transferência de poderes da entidade colonial para o único verdadeiro movimento de libertação nacional existente em solo caboverdiano e que era o PAIGC, aliás, devidamente reconhecido pela OUA, desde 1965, e pela ONU, desde 1972, como o único e legítimo representante do povo caboverdiano. A essa argumentação, de grande e iniludível peso em termos políticos e à luz das normas vigentes do Direito Internacional Público, designadamente da Resolução 1514 (XV), de 14 Dezembro de 1960, da Assembleia Geral das Nacões Unidas sobre a concessão (outorga) da independência aos povos e países coloniais, e segundo a qual o exercício do direito de autodeterminação política era sinónimo de acesso à independência política, acrescia o ultimato enviado pelo MFA-Cabo Verde ao Governo Provisório português no sentido de este encetar de imediato as negociações com o PAIGC para a calendarização da independência política de Cabo Verde, sob pena de o mesmo MFA-Cabo Verde proceder à entrega do poder ao mesmo PAIGC, que, segundo reiterava, era o único e autêntico movimento de libertação nacional existente em Cabo Verde.
Por outro lado, os desenvolvimentos da situação política caboverdiana posteriores à eclosão do 25 de Abril de 1974 tornaram cada vez mais visível a adesão maciça do povo caboverdiano à tese da independência total e imediata propugnada pelo PAIGC.
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