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Este país não é para covardes
Colunista

Este país não é para covardes

Agora é o jornalista Daniel Almeida mais o jornal A Nação, onde trabalha, a serem vítimas da ira do Ministério Público, que, teimosamente, continua a não perceber que o que pretenderá esconder (o processo contra a PJ por suposto “homicídio agravado” e que menciona o actual ministro Paulo Rocha) é de interesse público. Logo, tem de ser noticiado.

A minha solidariedade ao colega Daniel Almeida e ao jornal A Nação, onde também já estive nos bastidores. Para dizer que, enfim, a sua constituição como arguidos nesse ‘intangível’ processo é a prova acabada do que vinha alertando desde o início: a imprensa livre está ameaçada e pode perder vigor com estas mordaças que tentam impingir em nome de uma ilegal... ilegalidade, reconhecida, de resto, por académicos, jurisconsultos e constitucionalistas de relevo, como bem elucidou o pai da Lei Magna cabo-verdiana, Wladimir Brito.

É tão descabida esta tentativa de calar a imprensa, que aqueles que o engendram não pensam nas consequências dos seus actos inquisitórios - não para si, pois se acham supra-sumos -, o problema é este meu país, claramente a perder cotação internacional em matéria de liberdade de informação e de expressão.

Ora, se a constituição de Santiago Magazine e de eu próprio como arguidos por “desobediência qualificada” não bastassem, o MP procura agora bascular a carga de betão em cima do jornal A Nação e do jornalista Daniel Almeida, confirmando, pela via da intimidação e mordaça, que não gosta do trabalho que os jornalistas fazem, a duras penas, para informar o país sobre assuntos que tocam a Justiça.

Deve ser por isso que se vestem de preto, para amedrontar, intimidar nesse fúnebre traje. Os jornalistas, pelo contrário, não envergam farrapos para ficar acima ou abaixo de ninguém – está com as pessoas, vive com as pessoas e trabalha para as pessoas, sem dedo indicador na cara de nenhum cabo-verdiano que ande pelos trilhos da legalidade. Os fora-da-lei, sim, estão na linha da caneta jornalística e eu o faço sem temor.

Quero aqui sublinhar que eu e o Santiago Magazine estamos arguidos por “desobediência qualificada” por denunciar que o MP investiga, há sete anos, a PJ e o suposto mentor da operação, Paulo Rocha, pela morte do presumível assassino a soldo (versão da PJ), Zezito denti d’Oru, em 2013, com balas de metralhadora.

Desobediência, dizem. Eu desobedeci a quem? E a o quê? O Daniel Almeida Desobedeceu a quem e a o quê? Isso só ocorreria se houvesse uma notificação, ordem ou despacho a avisar-nos para parar. Não existe.

Mutatis mutandis, há uns meses tinha escrito isto, a respeito do caso Amadeu Oliveira, e repesco-o neste momento por ser actual e oportuno. “Em toda a parte do mundo, aquilo a que se chama equipamento estatal ‘Justiça’, é imprescindível ao aperfeiçoamento da República. Não pode, portanto, haver quem negue a opção por um Estado de Direito de índole democrática, com um Poder Judiciário forte e consistente”. 

Porque, ao fim e ao cabo, escrevera então, “saber direito não significa ser justo. Há uma diferença fundamental entre a ciência jurídica e a obtenção da Justiça”. Aliás, como defende o jurista brasileiro Renato Nalini, para “alguém ser juiz/magistrado precisaria ser sensível, humano, gostar de pessoas, ter bom senso. Se soubesse um pouquinho, apenas um pouquinho, de Direito, ajudaria bastante no desempenho de sua missão de pacificar o convívio”.

Em Cabo Verde, está claro, a percepção da sociedade é de que não há justiça. Ou, havendo-a, é injusta, parcial, obtusa e irresponsável, em último caso.

Não o canso de o repetir, o decano dos juízes cabo-verdianos, Raul Varela (primeiro presidente do STJ), havia dito numa entrevista comigo ao extinto jornal A Voz, que a Justiça em Cabo Verde está condicionada por causa da máfia. Isso mesmo, máfia, ele dissera então – “os endinheirados é que mandam… (…) E o Tribunal Constitucional é mais uma instância criada para protelar decisões, apenas serve aos endinheirados”.

Segundo esse enorme juiz – trabalhou até à beira dos seus 90 anos e foi dos mais produtivos, modernos e visionários – o problema da Justiça neste país é que copiam leis que Portugal deitou no lixo e aparecem uns ‘espertos’ que ganham com outros ‘espertos’ para produzir leis desactualizadas, retrógradas, dissera na altura.

Acrescentaria eu nesse mesmo texto: “Daí que há uma necessidade urgente de se reformar o sistema judicial para, efetivamente, servir a sociedade. Porque hoje a Justiça está numa encruzilhada. Está há muito a defraudar os cabo-verdianos, com a faxina junto aos que confundiram a coisa pública, os interesses do povo com os seus próprios. Mais, a Justiça precisa enfrentar a demanda crescente por eficiência, princípio incidente sobre toda a Administração Pública, inclusive e principalmente o Judiciário”.

Os tempos presentes e futuros são prenhes de incerteza e de inéditos reptos. Sim, há que expurgar os carrascos da Justiça. Porque este país, meu país, não é para covardes.

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SOBRE O AUTOR

Hermínio Silves

Jornalista, repórter, diretor de Santiago Magazine