Dar tiros nos pés… uma táctica estúpida
Colunista

Dar tiros nos pés… uma táctica estúpida

Não tenho dúvidas que estamos perante um ataque generalizado e organizado politicamente contra jornalistas e a liberdade de imprensa, mas também de perseguição a pessoas que pensam diferente. Este ataque tem três componentes fundamentais, a saber: 1. A politização da justiça; 2. A judicialização da política; 3. Campanhas insidiosas e tentativas de assassinato profissional e de carácter nas redes sociais. Estão, porém, votadas ao fracasso, porque, até agora, têm sido apenas tiros nos pés - o que acentua a estupidez desta táctica.

Os sinais de alerta são vários e, desde logo, expressam-se através de imputações criminais a jornalistas, com a Procuradoria Geral da República a ter um papel central, reiteradamente acusando profissionais da comunicação social por alegada violação do segredo de justiça.

São os casos dos jornalistas Hermínio Silves e Daniel Almeida, em particular o primeiro, porquanto reiteradamente sujeito a um autêntico “lawfare” do poder judicial que, manhosamente, se resguarda nas ambiguidades da lei para perseguir jornalistas. E esquecendo um princípio ético fundamental do jornalismo que, quando confrontado entre supostas violações da lei e o interesse público, deve optar sempre por este último.

Discursos de ódio e misoginia

O caso mais recente de ataque vil e organizado a jornalistas - neste caso, a uma jornalista -, teve como alvo Rosana Almeida, por sinal uma das mais prestigiadas profissionais da comunicação social cabo-verdiana, entre discursos de ódio e misoginia, com a “gadaiada” inundando as redes sociais, proferindo insultos e bolsando baixo calão intentando o descrédito profissional, moral e de carácter da jornalista.

O pretexto para tal sanha foi uma peça assinada por Rosana no Jornal da Noite da TCV, tendo como pano de fundo uma conferência de imprensa do primeiro-ministro a propósito da construção do Hospital Nacional de Cabo Verde.

Na peça, Rosana Almeida refere uma verdade indesmentível: a apresentação do projecto já ia na terceira vez, o que aborreceu os prosélitos de Ulisses Correia e Silva. E, mais ainda, ousou abordar o primeiro-ministro que, visivelmente incomodado, bateu em retirada.

A narrativa de ataque a Rosana entrincheirou-se na circunstância de o próprio Ulisses, no final do seu monólogo mediático, ter avançado que não responderia a perguntas, deixando essa empreitada ao ministro da Saúde, pelo que foi logo apontado o dedo a um suposto desrespeito da jornalista pela vontade do primeiro-ministro que, como se pode supor pelas narrativas, deverá ser tratado com reverência e vassalagem…

Peça jornalística de Rosana é, ética e deontologicamente, inatacável

Tive ocasião de conferir umas três ou quatro vezes a peça da TCV e, muito francamente, não vi em nenhum momento que Rosana Almeida tivesse violado qualquer princípio ético ou deontológico do jornalismo. Fez o que qualquer jornalista que se preze deve fazer: inquirir o primeiro-ministro, afinal, a entidade política que convocou a conferência de imprensa e que, por uma questão de respeito aos profissionais da comunicação social e aos cidadãos, deveria ter dado a cara não sacudindo o capote para o ministro Jorge Figueiredo.

Aliás, se estivermos atentos à peça jornalística de Rosana, podemos perceber o incómodo de Jorge Figueiredo que, reconhecido como de verbo fácil e raciocínio célere, hesitou nas primeiras palavras, visivelmente apanhado de surpresa. Ficou claro que, antevendo ser bombardeado por perguntas dos jornalistas sobre a terceira apresentação de um mesmo projecto, que se arrasta há anos, com especial incidência em vésperas de eleições, o primeiro-ministro preferiu bater em retirada.

Historicamente inábil na gestão de relações com jornalistas e comunicação social, logo a reacção pública se manifestou maioritariamente em defesa de Rosana Almeida, deixando Ulisses, o governo e o partido que o sustenta numa saia-justa por razão de mais um tiro no pé.

Chamado às pressas ao Jornal da Noite, o inefável secretário de Estado adjunto do primeiro-ministro, Lourenço Lopes, levou discurso ensaiado, tentou proteger Ulisses e assumiu, num absoluto desrespeito pela entrevistadora, a pose de uma estrela de telenovela, com um discurso ensaiado e fitando sempre a mesma câmera. Falou, falou e, como é característico do seu ser mais profundo, não disse nada de substantivo, apenas umas vulgaridades sobre liberdade de imprensa, jurando a pés juntos que o primeiro-ministro não se revê (ele e o governo) nos ataques a Rosana Almeida.  

Pese a pia encenação de Lourenço Lopes, em tentar descolar o primeiro-ministro das alarvidades internáuticas dos seus fiéis seguidores – e dando como certo que os partidos são, bastas vezes, polos de atracção de gente doida e cobarde, que se refugia atrás de um teclado -, a verdade é que, nos ataques a Rosana, pontificam dirigentes nacionais do MpD, deputados e, mesmo, um membro da mesa da Assembleia Nacional que, por razão da institucionalidade do cargo, deveria abster-se de alarvidades. Portanto, não se trata de mera e incontrolável gente doida, são pessoas com elevadas responsabilidades políticas.

Ora, ao não dar um sinal para dentro, que contenha a gadaiada, a suposta incomodidade de Ulisses pelos ataques à jornalista, não é mais do que um cínico exercício de hipocrisia, o que também não o deixa a salvo de ataques (de todo também censuráveis) da mesma natureza.

Como se percebe, os únicos crimes de Rosana são dois: ser jornalista e ser mulher!

Uma táctica gizada nos gabinetes

O ataque generalizado e organizado politicamente contra jornalistas e a liberdade de imprensa, mas também de perseguição a pessoas que pensam diferente, teve o seu pontapé de saída institucional quando, em Janeiro último, o secretário-geral do MpD, perante a incredulidade de quem ainda não foi tomado pelo fanatismo político e a insanidade, deu uma conferência de imprensa para atacar o jornalista Carlos Santos, tentando macular o seu percurso profissional, o seu carácter e os seus princípios éticos. A caça aos jornalistas, ao jornalismo e à liberdade de imprensa, estava oficialmente aberta por Agostinho Lopes.

Escusado será dizer que os ataques e as queixas do dirigente do MpD caíram em saco roto e - usufrutuário do carinho e admiração públicos -, Carlos Santos saiu por cima, registando o partido do governo um estridente tiro no pé.

Depois do pontapé de saída, havia que alargar o plano a novos patamares. É assim que, o mesmo Agostinho Lopes, desta feita a meio de Julho, dá nova conferência de imprensa, agora para dizer que a democracia está em perigo e apresentando um suposto manual de campanha do PAICV como prova.

Porém, desafiado pelo líder do PAICV a apresentar provas da veracidade do documento apócrifo, o secretário-geral do MpD remeteu-se ao silêncio, em mais um descomunal tiro no pé que suscitou a galhofa dos cabo-verdianos.

De todo o modo, o partido do governo tem vindo a intensificar as campanhas contra personalidades e organizações que pensam diferente, utilizando mesmo um carimbo nas redes sociais para sinalizar supostos “soldados digitais do PAICV”, muitos deles sem filiação partidária ou mesmo militantes e ex-militantes mais críticos do universo ventoinha.

O MpD ainda não apresentou provas da autenticidade do “manual do PAICV, porém, pelo que se vê, apoderou-se dele e passou a utilizá-lo como instrumento de trabalho…

Por último, dizer apenas isto: com o aproximar das eleições de 2026, é previsível que recrudesçam as campanhas de terrorismo digital, por isso, é fundamental que quem, de facto, defende a liberdade e a democracia – ou, no mínimo, não tenha sido apanhado pela insanidade - se mobilize em sua defesa.

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