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A propósito do livro "As Ilhas Crioulas de Cabo Verde - da Cidade-Porto ao Porto-Cidade" de Manuel Brito-Semedo, e da Desafricanização Geográfica, Geo-Política, Geo-Estratégica e Político-Cultural de Cabo Verde propugnada pelo seu Autor (IV parte)
Colunista

A propósito do livro "As Ilhas Crioulas de Cabo Verde - da Cidade-Porto ao Porto-Cidade" de Manuel Brito-Semedo, e da Desafricanização Geográfica, Geo-Política, Geo-Estratégica e Político-Cultural de Cabo Verde propugnada pelo seu Autor (IV parte)

"Esquecem-se todavia os detractores do ALUPEC que dos primeiros alfabetos utilizados para a escrita da língua caboverdiana, e certamente o primeiro sistematizado, foi o alfabeto de base fonético-fonológica criado por António da Paula Brito para escrever em versão bilingue português-caboverdiano a primeira gramática da língua caboverdiana - na variante de Santiago- e que fez publicar, em 1877, no Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa. Esquecem-se ademais os detractores do mais recente alfabeto de base fonético-fonológica para a escrita da língua caboverdiana que a partir do Movimento da Nova Largada, indiciado nos anos quarenta do século XX e efectivamente iniciado nos anos cinquenta do mesmo decisivo e disruptivo século, os poetas e os escritores caboverdianos deixaram de utilizar o alfabeto português para uma escrita alegadamente etimológica da língua caboverdiana, procurando antes utilizar esse mesmo alfabeto, por gritante falta de outro sistema de escrita, para o adaptar aos sons típicos e às sonoridades próprias da língua caboverdiana, como as reproduzidas pelos dígrafos dj e om, pelo trígrafo tch e pela letra i, abandonando assim as regras recomendadas por Pedro Cardoso para a escrita do crioulo no seu livro Folclore Cabo-Verdiano, de 1933, ou utilizadas por Eugénio Tavares na escrita das suas mornas, com destaque para aquelas constantes do seu livro Mornas-Cantigas Crioulas, de 1930."

 

QUARTA PARTE

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A TESE  LUSO-CRIOULISTA DA DESAFRICANIZAÇÃO DE CABO VERDE, ALGUNS DOS SEUS CRÍTICOS PÓS-CLARIDOSOS E ALGUNS DOS SEUS OPOSITORES AFRO-CRIOULISTAS E PAN-AFRICANISTAS ACRESCIDOS DAS PERSPECTIVAS E DAS VISÕES  DE ALGUNS DE ENTRE ELES SOBRE A LÍNGUA CABOVERDIANA E NÃO SÓ...

5. 1. 1. As tentativas de desafricanização do povo caboverdiano, do seu país meso-atlântico e da sua cultura crioula por Manuel Brito Semedo não têm poupado nem sequer a língua caboverdiana. É assim que  esta é entendida, tanto no referido livro em pauta As Ilhas de Cabo Verde- Da Cidade-Porto ao Porto-Cidade  como nas entrevistas concedidas pelo autor para a sua divulgação,  única e exclusivamente como um idioma de base lexical portuguesa, e não como uma língua que, sendo indubitavelmente de base lexical portuguesa, resultou do contacto entre essa língua europeia românica e novilatina e várias línguas da África Ocidental, daí advindo a sua identidade própria e singular e que se reflecte não só a nível lexical do seu vocabulário, mas também aos  níveis fonético-fonológico e morfo-sintáctico da sua gramática, consabidamente assaz impregnada de influências das línguas negro-africanas suas co-matrizes. A redução da língua caboverdiana a um idioma de base lexical portuguesa visa objectivos muito claros, quais sejam a perpetuação da sua dependência e da sua subalternidade em relação ao português, transformando-a num quase dialecto da antiga língua colonial de Cabo Verde e, assim, despojá-la de qualquer pretensão séria de ter um alfabeto próprio e, assim, de trilhar o seu próprio caminho no sentido da sua normalização, da sua estandardização e da sua institucionalização, isto é, da sua oficialização plena com vista ao seu paulatino, programado e pleno acesso aos espaços formais  e aos códigos escritos de comunicação, com destaque para a literatura, para os debates científicos, políticos e de outro tipo. Como é também sabido, nos domínios acabados de referir o crioulo caboverdiano está cada vez mais presente e com cada vez mais visibilidade,  se bem que muito contaminado na qualidade da sua locução e da sua escrita por certos utilizadores oriundos das categorias sociais mais escolarizadas e instruídas por intoleráveis interferências da língua portuguesa, não só a nível lexical, como também nos planos fonético e morfo-sintáctico, por isso, muito propiciadoras e indutoras da rápida descrioulização do idioma nacional caboverdiano, assim vendo-se os defensores da língua materna caboverdiana dificultados no seu desiderato de fazer cumprir à risca e com denodo, engenho e empenho uma nobre tradição legada pelos letrados nativistas, claridosos e nova-largadistas que é a utilização do idioma crioulo em espaços formais de comunicação cada vez mais alargados. Assim, urge também expandir e consolidar a presença do nosso crioulo no sistema formal de ensino, onde, aliás, logrou entrar pela primeira vez desde a independência nacional no ano lectivo 2022-2023, se nos abstrairmos dos projectos de alfabetização bilingue de adultos , e, mais recentemente, dos projectos  de ensino bilingue de crianças e adolescentes nas escolas oficiais conduzido pela professora e estudiosa Ana Josefa Cardoso, das aulas de língua caboverdiana  ministradas pelo linguista Manuel Veiga na antiga Escola de Formação de Professores do Ensino Secundário da Praia e do Mestrado em Língua Caboverdiana da Universidade de Cabo Verde também dirigido pelo agora Professor Doutor  Manuel Veiga.

Essa recente entrada da língua caboverdiana no sistema formal do ensino caboverdiano, sendo assaz positiva e pertinente, foi todavia por demais tardia e incompreensivelmente tímida, porque somente como disciplina opcional e ministrada apenas no 10º ano de escolaridade, em flagrante violação da Constituição da República, de vigentes leis ordinárias do Estado caboverdiano, com destaque para a Lei de Bases do Ensino, e de inúmeras Resoluções adoptadas pelo Governo de Cabo Verde.

 

5.1.2. Ademais, essa tardia e tímida medida ministerial segue-se ao desmantelamento do projecto de ensino bilingue conduzido com inegável sucesso pela professora Ana Josefa Cardoso em duas escolas, uma rural e uma suburbana, da ilha de Santiago e numa escola da ilha de São Vicente, depois de projecto similar ter sido experimentado, igualmente com pleno sucesso, numa escola do Vale de Amoreira, no concelho de Setúbal da região da Grande Lisboa em Portugal. Atolou-se nesse funesto e inqualificável desmantelamento e até à cabeça e ao absurdo  a por mim denominada “ministra cubana da educação caboverdiana” que, assim, descontinuou uma medida muito pertinente e aplaudida, tempestivamente decidida pela sua antecessora, e atingiu ademais as raias do ridículo quando a mesma “ministra cubana da educação caboverdiana” deu-se ao desplante de argumentar que doravante o português seria ensinado nas escolas caboverdianas como segunda língua, sem que a língua primeira que é a língua materna caboverdiana fosse ensinada, nem mesmo a título experimental!

Deu-se ainda e persiste o mais que escandaloso e revoltante caso de o uso oral da língua materna caboverdiana estar proibido nos recreios e a alunos caboverdianos da Escola Portuguesa da Praia que, assim, se arroga, como referi e argumentei em artigo na altura publicado, um inexistente estatuto de extra-territorialidade, de todo o modo acordando cenários de má memória colonial quando os alunos caboverdianos estavam proibidos de fazer uso da sua língua materna nas escolas de Cabo Verde, nas suas salas de aula, nos seus pátios e nos seus recreios!

 

5.2. 1. É nesse implícito intuito de manutenção da situação de diglossia prevalecente em Cabo Verde com concomitantes desvalorização e inferiorização da língua caboverdiana nas suas relações com a língua portuguesa que reside a razão profunda dos esforços que vêm sendo expendidos em campanhas nalguns meios de comunicação social, blogues e redes sociais contra a utilização de quaisquer alfabetos de base fonético-fonológica para a escrita da língua caboverdiana, designadamente do ALUPEC-Alfabeto Unificado para a Escrita do Cabo-Verdiano, do seu icónico kapa e das suas ausentes letras cê e cedilha, e as correlativas argumentações a favor da utilização do alfabeto português para a mesma escrita em língua caboverdiana. Para tanto, recorre-se a uma realmente existente longa tradição de escrita alavancada primacialmente na obra em crioulo legada por renomados e consagrados escritores caboverdianos, alguns deles de grande envergadura, como Eugénio Tavares, Pedro Cardoso, João José Nunes, Sérgio Frusoni, Jorge Barbosa, B. Léza, Mário Macedo Barbosa, Luís Romano, Arnaldo França, Gabriel Mariano, Ovídio Martins, Jorge Pedro Barbosa, Virgílio Pires, Kaoberdiano Dambará, Artur Vieira, Arménio Vieira, Emanuel Braga Tavares, para além dos ficcionistas Baltasar Lopes, Manuel Lopes, Henrique Teixeira de Sousa, Manuel Ferreira, Gabriel Mariano, Virgílio Pires, Pedro Duarte, entre outros, que nas suas obras literárias, reproduziram letras de músicas caboverdianas grafando-as utilizando o alfabeto do português, bem como por inúmeros letristas, como B. Leza, Jorge Monteiro mais conhecido por Jotamonte ou Jorge Cornetin, Tututa Évora, Ano Nobo ou Manuel de Novas. 

Esquecem-se todavia os detractores do ALUPEC que dos primeiros alfabetos utilizados para a escrita da língua caboverdiana, e certamente o primeiro sistematizado, foi o alfabeto de base fonético-fonológica criado por António da Paula Brito para escrever em versão bilingue português-caboverdiano a primeira gramática da língua caboverdiana-na variante de Santiago- e que fez publicar, em 1877, no Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa.

Esquecem-se ademais os detractores do mais recente alfabeto de base fonético-fonológica para a escrita da língua caboverdiana que a partir do Movimento da Nova Largada, indiciado nos anos quarenta do século XX e efectivamente iniciado nos anos cinquenta do mesmo decisivo e disruptivo século,  os poetas e os escritores caboverdianos deixaram de utilizar o alfabeto português para uma escrita alegadamente etimológica da língua caboverdiana, procurando antes utilizar esse mesmo alfabeto, por gritante falta de outro sistema de escrita, para o adaptar aos sons típicos e às sonoridades próprias da língua caboverdiana, como as reproduzidas pelos dígrafos dj e om, pelo trígrafo tch e pela letra i, abandonando assim as regras recomendadas por Pedro Cardoso para a escrita do crioulo no seu livro Folclore Cabo-Verdiano, de 1933,  ou utilizadas por Eugénio Tavares na escrita das suas mornas, com destaque para aquelas constantes do seu livro Mornas-Cantigas Crioulas, de 1930.

Data, aliás, desses tempos pan-africanistas da Nova Largada político-cultural na percepção e na representação da identidade caboverdiana e da sua expressão idiomática primordial  o uso sistemático do kapa na escrita da língua caboverdiana, daí advindo o preconceito anti-africanista cultivado em certos ignaros meios luso-crioulistas e adeptos da escrita etimológica, também impropriamente designada de escrita tradicional, do crioulo contra essa muitíssimo útil e funcional letra grega. 

Por seu lado, desde há muito que se concedeu que, devido ao uso dos acentos circunflexos, invertidos ou não, sobre as letras c, j, l, n, s e z para representar as palatais na língua caboverdiana, originando signos linguísticos anteriormente completamente desconhecidos dos caboverdianos nas suas muitas experiências de escrita literária da sua língua materna e, por isso, sem qualquer tradição na escrita, mesmo por estrangeiros, do nosso crioulo, a não ser na sua transcrição para fins de estudos científicos mediante o uso do Alfabeto Fonético Internacional utilizado pelos linguistas e filólogos, por isso vituperados e desqualificados como chapéus,  o chamado Alfabeto do Mindelo adoptado no Colóquo Linguístico Internacional, realizado, em 1979, com o apoio da UNESCO, na cidade do Mindelo pela Direcção-Geral da Cultura, então chefiada pela filóloga e estudiosa da caboverdianidade Dulce Almada Duarte, terá sido e foi efectivamente uma resposta demasiado radical e contundente contra a chamada escrita etimológica, incluindo na sua versão imprópria também mais adequadamente denominada escrita tradicional. Anote-se que uma outra importante recomendação do Colóquio do Mindelo de 1979 foi a adopção oficiosa da variante-matriz de Santiago para a escrita da língua caboverdiana, fundando-se essa recomendação no posicionamento do prestigiado filólogo e escritor Baltsasar Lopes da Silva e de outras conceituadas personalidades, como o Professor Augusto Mesquitela Lima. Com efeito, numa conferência proferida em 1986 na cidade do Mindelo e publicada no Número Comemorativo do Cinquentenário da Revista Claridade, Baltasar Lopes da Silva argumentou que para a escolha da variedade insular do crioulo para fazer emergir um padrão literário para a escrita do idioma caboverdiano, devia  ter-em conta as seguintes consideracões, quais sejam:  i. A colocação nos pratos da balança do peso socio-linguístico de diferentes variantes do crioulo caboverdiano consubstanciado, por um lado, a circunstância de o crioulo de Santiago ser o mais antigo crioulo do mundo,   acrescendo ainda a seu favor o facto de o mesmo crioulo ser falado pela maioria da população caboverdiana bem como o facto de a capital do novo país continuar a localizar-se na ilha de Santiago, desde a irreversível decadência da antiga cidade da Ribeira Grande de Santiago e da sua transmutação na Cidade Velha, e, por outro lado, a circunstância de, apesar de ser a mais recente variante do idioma caboverdiano, o crioulo de São Vicente ter a seu favor o facto de nessa altura o Mindelo continuar a deter o estatuto de facto de capital económica e social  de Cabo Verde; ii. A adução ademais e sobremaneira de argumentos essencialmente linguísticos, designadamente os relativos à completude vocálica do crioulo de Santiago,  contraposta à patente incompletude vocálica do crioulo de São Vicente com a sua exasperante sequência de consoantes que muito dificultava ou impossibilitava a sua escrita com base numa grafia etimológica. Sendo muito favorável à escrita etimológica do crioulo, que  defendia, professava e praticava, não foi difícil o filólogo Baltasar Lopes da Silva considerar o crioulo de Santiago aquele que devia ser escolhoido para servir de padrão literário para a escrita do crioulo.

 5.2.2. O posicionamento auto-crítico das entidades oficiais e dos autores defensores de um alfabeto de base fonético-fonológica para a escrita da língua caboverdiana resultara por sua vez de uma prática cada vez mais crescente e alargada de escrita do nosso crioulo com uma grafia de base fonético-fonológica mas excludente do uso dos chamados chapéus, como se podia constatar nos textos em crioulo de alguns crioulógrafos, por exemplo, Kaká Barboza, José Luís Hopffer Almada, Danny Spínola ou Pedro Delgado Freire, bem como da sequente deliberação do Forum de Alfabetização Bilingue de Adultos de 1989 no sentido da manutenção do uso de um alfabeto de base fonético-fonológica para a escrita da língua materna caboverdiana mas com exclusão dos famigerados chapéus e com recurso prioritário às formas tradicionais dj, lh, nh, tch, para representar as palatais na língua caboverdiana. É, assim, que, por proposta de renomados linguistas, filólogos, professores, escritores e tradicionalistas,  reunidos num Grupo para a Padronização do Alfabeto para a Escrita da Língua Cabo-Verdiana criado em 1993 pelo INAC-Instituto Nacional da Cultura e presidido pelo linguista e escritor bilingue Manuel Veiga, se veio a adoptar o ALUPEC-Alfabeto Unificado para a Escrita do Cabo-Verdiano, que adopta as Bases do Alfabeto e algumas normas de escrita propostas pelo seu Presidente Manuel Veiga  e faz uma importantre inovação  ao substituir, por proposta da filóloga e pensadora Dulce Almada Duarte, o dígrafo ch por x e o trígrafo tch pelo dígrafo tx. O ALUPEC viria posteriormente,  e por decisão governamental exarada em competente diploma legal, a ser  utilizado para a escrita da língua caboverdiana pelas instituições públicas caboverdianas, primeiramente a título experimental, ulteriormente a título oficial, depois de devidamente ratificado por um amplo Forum de especialistas e utilizadores nacionais e estrangeiros reunidos, em 2009,  na cidade da Praia, e  baptizado como Mesa-Redonda para a Apreciação e a Validação do ALUPEC, por iniciativa do Ministério da Cultura, então dirigida por Manuel Veiga, através da  Direcção de Ciências Sociais e Humanas do  Instituto Nacional do  Património Cultural, então dirigida pela socio-linguista Adelaide Monteiro. Anote-se que, para funcionar como órgão consultivo do Governo nas problemáticas referentes às duas línguas de Cabo Verde, foi criada uma Comissão de Línguas dirigida pela socio-linguista Adelaide Monteiro e integrada igualmente por especialistas,  escritores, professores e utilizadores qualificados das duas línguas de Cabo Verde ainda durante o consulado governamental do PAICV pelo  sucessor de Manuel Veiga no Ministério da Cultura o escritor e músico Mário Lúcio Sousa -curiosamente um férreo defensor da escrita tradicional, dita etimológica, do crioulo e que vem , aliás, utilizando correntemente para a grafia das letras musicais da sua autoria. A Comissão de Línguas realizou em 2012 e com o apoio da UNESCO um Forum Parlamentar de grande relevância  -curiosamente um férreo defensor da escrita tradicional, dita etimológica, do crioulo e que vem , aliás, utilizando correntemente para a grafia das letras musicais da sua autoria. A mesma Comissão de Línguas realizou em Maio de 2013, com o apoio da UNESCO, um Forum Parlamentar de grande relevância, pois que recomendou à Casa Parlamentar Caboverdiana uma revisão constitucional para proceder à oficialização plena, isto é, em paridade com o português, da língua materna e nacional caboverdiana, tal como, aliás, preceituado no artº 9º,  acima referido, da Constituição da República. Tal como outros organismos de cultura criados e instituídos pelo Ministro da Cultura Mário Lúcio Sousa, a  Comissão de Línguas viria a ser desmantelada em 2016 pelo seu sucessor no governo do MpD, o Ministro da Cultura e das Indústrias Criativas, Abraão Barbosa Vicente que, todavia e tal como o seu antecessor, tem reiteradamente afirmado a necessidade de uma revisão constitucional para a oficialização  plena da língua materna caboverdiana que, aliás, foi elevada ao estatuto de património imaterial nacional no consulado do mesmo ministro.  

5.2.3. Anote-se que, contrariamente ao Alfabeto do Mindelo que foi utilizado essencialmente em trabalhos oficiais da Direcção-Geral da Cultura e das entidades públicas suas sucessoras, como o INAC, e em escritos da autoria de funcionários  dessas mesmas instituições públicas ligadas à cultura, como, por exemplo, a primeira edição dos livros Odju d´Águ e Diskrison Strutural di Língua Kabuverdianu, de Manuel Veiga,  e Natal y Kontus, de T.V. da Silva,  e o  muito meritório labor de recolha e sistematização das tradições orais das nossas várias ilhas levado a cabo pelo Departamento de Tradições Orais dessa mesmas instituições públicas, o ALUPEC contou durante a quase década da sua vigência a título experimental, como, aliás, constatado pelo mesmo Forum Linguístico da Praia, de 2009, com uma ampla aceitação socio-linguistica, incluindo por parte das camadas mais jovens e escolarizadas das populações caboverdianas das ilhas e das diásporas, sendo utilizado actualmente pela generalidade dos escritores caboverdianos em língua caboverdiana das várias variantes, tanto os residentes nas ilhas, como os radicados nas diásporas. Uma maior resistência à utilizacão do ALUPEC vem-se registando entre os letristas e os músicos compositores caboverdianos - com as destacadas excepções do compositor Abílio Duarte, do compositor e poeta Kaká Barboza,  do compositor, guitarrista e cantor Daniel Rendall, do poeta, compositor e intérprete musical Princezito, e, mais recentemente,  do compositor e poeta Tony Lima que grafou em ALUPEC as letras do disco Korda Skrabo/Korda Skrabu, dos Kaoguiamo/Kaugiamu. e do compositor e multi-instrumentista Djinho Barboza e de outros músicos caboverdianos residentes nos EUA. A razão da  persistente resistência à utilização do ALUPEC pela esmagadora maioria dos autores e intérpretes musicais originários de todas as ilhas e diásporas caboverdianas poderá residir no seu compreensível apego à escrita dos grandes letristas e escritores do passado, com destaque para os supra-referidos Eugénio Tavares, Sérgio Frusoni, B. Léza, Tututa évora, Jotamonte, Ano Nobo ou Manel de Novas, sem que se lhes possa necessariamente imputar quaisquer complexos de inferioridade ou sentimentos de subordinação, dependência ou subalternidade em relação à lingua portuguesa, tanto mais que enquanto letristas e músicos são considerados e têm-se evidenciado como dos maiores protagonistas da sobrevivência, da valorização, do desenvolvimento,  da consolidação e do prestígio da língua caboverdiana nas suas diferentes variantes e expressões insulares e nos seus diferentes níveis socio-linguísticos. Por isso mesmo é que a Resolução do Governo sobre a livre utilização da língua caboverdiana nos espaços públicos e na escrita, mesmo se optando pelo ALUPEC, ao qual em anteriores diplomas legais conferiu o estatuto de alfabeto experimental e, depois, de alfabeto oficial para a escrita da língua materna caboverdiana, deixou margens de liberdade suficientes para o uso de outras grafias fundadas em outros alfabetos, desde que sistematizadas, pois que afinal o que mais importa é o alargamento e a paulatina generalização do uso da língua caboverdiana na escrita e nos espaços formais de comunicação.

5. 2.4. Atente-se neste concreto circunstancialismo que os trabalhos produzidos e publicados pelo Grupo de Padronização do Alfabeto Unificado para a Escrita do Cabo-Verdiano, criado em 1993 e subsistente por seis meses até 1994, vieram comprovar e trazer a público várias insuficiências, incongruências e disfuncionalidades da grafia ou escrita tradicional dita etimológica, a maior das quais é certamente a sua falta de unidade e sistematicidade. Com efeito, são inúmeras as variações dessa mesma grafia ou escrita, oscilando  conforme as opções de cada letrista, escriba ou escritor. Por isso, são raros os autores que escrevem o crioulo utilizando o alfabeto do português que dão provas de coerência na concretização desse seu desiderato, como foi o caso do livro Noti, de Kaoberdiano Dambará, pseudónimo de Felisberto Vieira Lopes. Ainda mais flagrantes são as diferenças entre os diversos autores na grafia de uma mesma palavra ou de um mesmo som.

Por seu lado e não obstante carecer ainda de aperfeiçoamentos, o ALUPEC tem-se comprovado como altamente funcional, económico  e sistemático, permitindo mediante a operacionalização da sua regra básica de biunivocidade entre a letra e o som que todas as variantes da língua caboverdiana tenham acesso generalizado e irrestrito à representação escrita sem que sejam feridas ou lesadas a sua integridade e a sua autenticidade nos seus diferentes níveis, nuances, variações e variedades. Essa vantagem comparativa do ALUPEC em relação a outros virtuais alfabetos para a escrita da língua caboverdiana é  de grande utilidade e relevância prática quando as políticas linguísticas do Estado caboverdiano, devidamente assessorado na matéria por especialistas na área linguística e por utilizadores altamente credenciados e abalizados, apontam para uma visão abrangente e multifacetada da questão linguística caboverdiana e tendem a valorizar não só as duas línguas de Cabo Verde que são o caboverdiano e o português, mas também todas as variantes da língua caboverdiana que, aliás, consubstanciam em cada ilha e em cada região do país bem como nas diásporas a condição e o estatuto de língua materna que lhe são  outorgados pela Constituição Política e pelas leis da República de Cabo Verde. 

5.2.5. Uma breve análise de textos em prosa da língua caboverdiana escritos a partir e com base no alfabeto português demonstra que são maiores as ameaças de descrioulização quando se usa esse alfabeto para a escrita da língua caboverdiana em razão do latente e do efectivo mimetismo em relação ao léxico e às construções morfo-sintáticas do português que paira nessa escrita tradicional dita etimológica. 

Não é, pois, por acaso que Manuel Brito Semedo, tal como os demais defensores da desafricanizacão geográfica, geopolítica, geo-estratégica e político-cultural de Cabo Verde,  tem uma nítida preferência pela escrita dita etimológica, mais usualmente denominada, como já referido, escrita tradicional. De tal modo é assim que o nosso cronista-antropólogo não se coibe de escamotear o enorme papel da filóloga e pensadora Dulce Almada Duarte na defesa da institucionalização de dois alfabetos de base fonético-fonológica, designadamente do chamado Alfabeto do Mindelo e do ALUPEC, para, com notória desonestidade intelectual, sobrelevar a sua fase etimológica e consubstanciada na sua já muito antiga tese de licenciatura, na qual vários aspectos da língua caboverdiana são tratados de modo científico por forma a comprovar e a conferir-lhe a sua autonomia linguística, mas a mesma língua caboverdiana ainda era ainda denominada dialecto, tal como no livro O Dialecto Crioulo de Cabo Verde, de Baltasar Lopes da Silva.

 

5.3.  Por outro lado, é de se ter em grande conta que não é por acaso que, apesar da sua expressa preferência pela escrita etimológica ou dita tradicional da língua caboverdiana, alguns articulistas e frequentadores das redes sociais se posicionaram frontalmente contra as teses de desafricanização de Cabo Verde, do seu povo e da sua cultura veiculadas por Manuel Brito Semedo. 

5.3..1. É o que ocorreu no caso de Napoleão Vieira de Andrade, um convicto e indefectível defensor  da escrita etimológica do crioulo, que num post publicado na sua página do facebook realçou a necessidade da percepção  de Cabo Verde como país africano como significando necessariamente a representação ou a integração de Cabo Verde numa África diversa e plural do ponto de vista étnico-cultural e étnico-racial, não havendo por isso nenhuma contradição entre ser caboverdiano, ser crioulo e ser africano.

Por seu lado, algumas personalidades, mesmo se defendendo um maior teor europeu e americano do que africano na cultura crioula caboverdiana, exprimiram certas e determinadas  reservas em relação a algumas das teses defendidas e propaladas por Manuel Brito Semedo, como no caso do conhecido músico e compositor Betú - Adalberto Silva, que, também num post publicado na sua página de facebook, considerou inquestionável a identidade africana de Cabo Verde, do ponto de vista geográfico, mesmo se a sua cultura crioula seja portadora de maiores influências ocidentais, isto é, europeias e americanas, do que africanas, ao contrário da pertença racial dos caboverdianos em geral em que seria predominante a influência africana. Outrossim, enfatizou o mesmo autor a singularidade idiossincrática de todas e de cada uma das ilhas de Cabo Verde como “laboratórios particulares da caboverdianidade” em função do modo e do tempo histórico do seu povoamento, do isolamento e das dificiuldades nas comunicações inter-ilhas, para tanto utilizando o conceito de maiensidade para caracterizar as caracterírsticas específicas da cultura crioula caboverdiana da sua ilha natal, inicialmente povoada por gentes idas da muito próxima ilha de São Tiago, mas também, em tempos posteriores, por gentes oriundas das ilhas da Boavista e de São Nicolau, que, como se sabe, estão também na origem do povoamento da ilha do Sal, ainda não se tinha iniciado a crescente afirmação no panorama caboverdiano da urbe do Mindelo e da ilha de São Vicente. Asseverou ainda o conhecido compositor que a maiensidade não se confunde nem com a cultura santiaguense, nem com as culturas boavistense e sanicolauense, nem tão pouco com a cultura da ilha de S. Vicente, o “segundo  laboratório” da criacão da caboverdianidade enquanto Porto-Cidade, depois do “laboratório da Cidade Velha”, enquanto Cidade-Porto, na controversa e contestada visão de Manuel Brito Semedo. A final, afirmou-se o conhecido compositor, economista e historiador da sua ilha natal, mesmo que subtil e implicitamente, como crioulo caboverdiano e africano.

Por sua vez e a propósito do debate despoletado pela publicação do mais recente livro de Manuel Brito Semedo,  o jurista Casimiro de Pina, um conhecido e feroz crítico de Amílcar Cabral, da sua pugna pela reafricanização dos espíritos e das suas outras teorias e démarches progressistas, nacionalistas e democrático-revolucionárias, refutou num post publicado na sua página pessoal do facebook qualquer binaridade na compreensão da caboverdianidade nos seguintes termos: “A nossa IDENTIDADE não pode ser captada através da conjunção alternativa "ou", mas sim, e em definitivo, através da conjunção aditiva "e". Assim sendo, após um fino pensar e repensar da nossa História e Cultura, concluí tranquilamente o seguinte: Eu, Casimiro de Pina, sou, felizmente, africano e europeu, latino, grego, cosmopolita, humanista, liberal, mestiço esclarecido, individualidade pensante e cidadão do mundo! Sem nenhuma contradição. A nossa identidade é, pois, COMPLEXA, muito complexa e com mil nuances e componentes, coisa que os complexados de carteirinha, fechados num opressor esquema binário, jamais entenderão!”.

 

5.3.2. Utilizando uma linguagem irónica e bem humorada, aliás, característica da sua obra literária e dos seus escritos jornalísticos, o advogado e escritor Germano Almeida publicou um artigo intitulado “Cabo Verde Visto por Manuel Brito Semedo” no nr. de 22 de Fevereiro de 2024 do jornal A Nacão. Nesse mesmo artigo, Germano Almeida declarou ter-se constituído como advogado de Manuel Brito Semedo, alegamente  “acusado do crime de lesa-pátria por oralmente ter retirado Cabo Verde do seu natural espaço africano”. O autor do artigo reportava-se assim às opiniões emitidas por Manuel Brito Semedo, como já referido, não propriamente no livro As Ilhas  Crioulas de Cabo Verde-Da Cidade-Porto ao Porto-Cidade, mas sim em entrevistas, em que afirmou que, como já referenciado,  Cabo Verde não é África, estando o seu destino ao contrário de costas voltadas para esse continente e virado inteiramente para a Europa. Considerando “algo temerária” essa afirmação de Manuel Brito Semedo, Germano Almeida concluiu todavia que “na realidade, não existe, ao longo de todo o livro, absolutamente nada a demonstrar que o autor fundamenta com propriedade essa afirmação.  Melhor diria: nem a provar que Cabo Verde não é África, nem a desmentir a condição africana de Cabo Verde”. E concluiu: “Atrevo-me a dizer que neste aspeto particular, o livro é rigorosamente neutro. Portanto, o eventual crime do Brito-Semedo está na afirmação que terá feito na entrevista: as ilhas cabo-verdianas não são africanas. Portanto, um crime de palavras!”.

Em seguida, e recorrendo ao seu percurso editorial pessoal em que, contra a sua vontade expressa, se quis inseri-lo e enquadrá-lo nunma coleccão da Editorial Caminho denominada de Autores Africanos, Germano Almeida desmonta o preconceito muito disseminado que vê em África uma entidade única e uniforme, para, por assim  dizer,  meter todos os africanos no mesmo saco. “É tudo quel mé, é tudo a mesma coisa . Seja artista, seja futebolista, seja cantor”,  assevera  o articulista parcialmente em crioulo e com grafia dita etimológica. Refutando esse preconceito, escreve o escritor: “Do mesmo modo que não há um só europeu, também não há um só africano. Para apenas falar de nós, grosso modo podemos dizer que há tantas culturas africanas quantos os povos existentes em África. Do mesmo modo, não há uma cultura africana, temos culturas, próximas ou muito diferentes, conforme os povos de cada região. Tudo África. E é por isso que nós exigimos o rótulo de cabo-verdianos antes de entrarmos na grande garrafeira que é a África.”.

Para explicar o que ele chama “o fraquinho” dos caboverdiamnos, ou, melhor dito, de alguns caboverdianos pela Europa, o escritor resolveu recorrer à História caboverdiana, sendo ele, aliás,  autor do volumoso livro ilustrado intitulado Viagem pela História de Cabo Verde e de dois romances históricos, para conduzir-nos aos meandros da dupla lealdade e da dupla pertenca identitária que marcaram durante décadas, senão séculos, as elites letradas caboverdianas. Na sua opinião, tal compreensão radicaria na efectiva dupla pertenca biológica dos primeiros letrados caboverdianos, presume-se que nativistas, na medida em que todos eles, salvo Pedro Cardoso, eram descendentes directos de portugueses “por alguma razão” radicados nas nossas ilhas.Por isso, segundo Germano Almeida, esses “primeiros intelectuais caboverdianos” identificavam-se simultaneamente como portugueses e caboverdianos e,  em razão dessa sua auto-assumida dupla identidade, advogaram a adjacência de Cabo Verde a Portugal para a obtenção de um estatuto político-administrativo similar ao dos arquipélagos dos Açores e da Madeira. Com os claridosos, continuou a reivindicação do estatuto da adjacência para Cabo Verde. Escreve o escritor boavistense que, depois da estaca zero em que teria ficado a questão da adjacência depois da morte do Marquês de Sá da Bandeira e da sua gorada tentativa de implementá-la:  “nós continuávamos insistindo na adjacência, não queríamos tomar consciência da não existência de europeus negros, e a nossa esperança fixou-se em Gilberto Freire: mal o grande sociólogo nos espreitasse, logo confirmaria a nossa condição europeia. Mas não, por onde passou, ele só viu África! Vale a pena lembrar as palavras magoadas de Baltazar Lopes no seu excelente opúsculo Cabo Verde, visto por Gilberto Freire: O messias desiludiu-nos!”. Tentando explicar a postura adjacentistsa e europeizante dos claridosos, aduz Germano Almeida: “Mas não se deve avaliar com excessivo rigor a defraudada tentativa dos claridosos de nos quererem meter na Europa. Devemos antes lembrar que todos eles eram intelectuais de formação académica europeia e que não conheciam a África. Há que não esquecer que praticamente até aos inícios dos anos 60 do século XX, a África, mesmo a portuguesa, era o “sul” para onde se mandavam os degredados merecedores de maior castigo. Por exemplo, o capitão Ambrósio foi mandado para o “sul””. Situando-se na actualidade dos nossos dias pós-coloniais, escreve o intelectual pós-claridoso:”Porém, ainda hoje muito mal conhecemos a África e muito pouco temos feito nesse sentido. Assim, a acusação de “reafricanização dos espíritos” é muito mais um slogan para irritar o PAICV, praticamente sem já qualquer correspondência com a realidade política ou social. Mas já que de livros estamos falando, quantos de nós conhece que o Senegal, a Nigéria, o Gana, têm uma literatura pujante? É verdade que a língua nos impede em grande medida esse conhecimento, porém é também verdade que o Brasil tem dado um forte impulso à divulgação dessas literaturas e qualquer interessado pode ter acesso a elas”.

Situação que Germano Almeida considera totalmente diferente em relação à Europa. Com efeito, escreve o escritor:”Conhecendo mal a África, fomos e somos ainda levados a conhecer bem a Europa. Politicamente, literariamente, socialmente, economicamente. Lembrando Oliveira Barros, o Dick, “a hipnose Lisboa já vem desde infância”. “Os letrados cabo-verdianos de Portugal, os portugueses de Cabo Verde, buscaram sempre o consagrante olhar de Lisboa. São Tomé é fome e doença, Lisboa é deslumbramento”. Ora, ainda hoje, 50 anos passados sobre a independência, continuamos a buscar freneticamente a consagração da Europa! É verdade que continua a haver muita relutância e até resistência, curiosamente mesmo de alguns intelectuais nacionais, em aceitar que pensemos pelas nossas próprias cabeças”.

Conclui o segundo Prémio Camões caboverdiano o seu artigo publicado no  semanário A Nação, de modo tão honestamente irónico como o começou, incluindo pelo título :”De modo que, em vez de denegrir Brito-Semedo, deveríamos antes louvá-lo pelo seu Cabo Verde - Ilhas Crioulas. Deixados em África ou fora dela, o certo é ele brindou-nos com um excelente manual de divulgação das nossas ilhas. Se quis realmente escrever um livro de eventual contestação, acabou escrevendo um livro de exaltação ao que somos”. Seria, pois, caso para dizer: o Manuel Brito Semedo escreveu um bom manual turístico sobre a cultura caboverdiana!

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5.3.4. Sem nunca nomear o livro As Ilhas Crioulas de Cabo Verde- Da Cidade-Porto ao Porto-Cidade e o seu autor Manuel Brito Semedo, o psicólogo, colunista e comentador José António dos Reis considerou, por sua vez, que “está a emergir em Cabo Verde uma teoria romântica do colonialismo”, explicando logo a seguir: “ Romântica porque os seus defensores procuram transmitir a ideia de que a relação entre senhores/colonos e escravos/ serviçais era baseada em beijos, abraços e carícias recíprocas: a chamada “miscigenação perfeita”. Acrescenta o articulista: “Porém, os seus paladinos omitem deliberadamente que esse sistema relacional se baseou numa conhecida e comprovada dialética,assente numa relação opressor/oprimido, senhor/escravo, proprietário/trabalhador sem direitos”. Reforça o colunista do jornal online Santiago Magazine: “Esquecem (será mesmo isso?) que os filhos de pais escravos eram propriedade dos chefes/colonos e que as mulheres escravas eram propriedade dos seus senhores que dispunham delas como quisessem. Ignoram que os escravos não eram sujeitos de relação, mas simplesmente objeto de uso e de imposição da vontade do dono, e que foi exatamente do uso e da imposição da vontade, que não da relação inter-sujeitos, que resultou alguma mistura e assimilação da cultura dominante”.

Segundo José António dos Reis, as muitas revoltas havidas ao longo da História de Cabo Verde, como a revolta dos Engenhos de 1822 e a revolta da Achada Falcão de 1842, atestam e testemunham bem sobre as relacões tensas senão antagónicas entre opressores e oprimidos na sociedade caboverdiana.

Sobre o processo de aculturação que conduziu à formação da caboverdianidade, afirma o autor: “Um processo de aculturação, certamente, entre duas culturas diferentes, mas que ocorreu num contexto relacional entre desiguais, que embora houvesse trocas comunicacionais, predominou sempre a vontade de quem mandava, até porque este se achava, não só como o dono, mas também culturalmente superior: isto  é, comprovadamente, da ciência. Portanto, a nossa cabo-verdianidade é fruto e o resultado dessa relação”.

A mesma teoria  romântica do colonialismo visaria, assim,  o branqueamento das atrocidades do colonialismo em Cabo Verde, incluindo na sua fase colonial-esclavagista. Socorrendo-se do Frantz Fanon do livro Os Condenados da Terra e do António Carreira do livro Cabo Verde: Aspetos Sociais, Secas e Fomes do século XX, publicado em 1984, José António dos Reis desmonta a chamada miscigenacão perfeita que estaria no cerne da teoria romântica do colonialismo e do questionamento da identidade africana de Cabo Verde, concluindo: “Acredito, pois, que a nossa singularidade é produto desse cruzamento de base relacional assimétrica e, em relação a qual, em nome da verdade histórica, não devemos escamotear e nem romantizar as condições e circunstâncias em que esse fenómeno se deu, justamente para não trairmos a nossa própria génese etno-psico-antropológica. A criação e formatação da singularidade cabo-verdiana se deu em África e não na Europa ou América, como a singularização portuguesa se deu na Europa e não em África. Isto é um facto histórico-geográfico incontornável!”

Depois de discordar daqueles que negam a africanidade de Cabo Verde também do ponto de vista geográfico, pois que segundo ele, o nosso arquipélago está localizado inquestionavelmente na plataforma continental africana, de desmontar a imagem de uma África uniformemente bárbara e selvagem impingida pelo colonialismo e de discorrer sobre a grande diversidade cultural existente em África, tal como, aliás, na Europa e em outros continentes, facto que lhe parece ser omitido pelos paladinos da consideracão de Cabo Verde como nem África, nem Europa e que ele qualifica de cabo-verdianidade isolacionista,  assevera o colunista de forma conclusiva: “Cabo Verde não é África por opção! Cabo Verde é África por determinismo histórico-geográfico e cultural”.  Facto que, segundo José António dos Reis teve a devida consagração no artigo 7º, nº 7, da Constituição da República de 1992.

5. 3.5. Colocando-se na trincheira oposta à de Manuel Brito Semedo e defendendo convictamente o regionalismo africano da cultura caboverdiana, tal como anteriormente professado por alguns próceres afro-crioulistas da Nova Largada político-cultural na literatura e na compreensão da cultura caboverdiana, como Amílcar Cabral e Manuel Duarte, que defendiam uma maior predominância cultural africana do que europeia na identidade caboverdiana, e tal como alguns nacionalistas caboverdianos de fortes conviccões pan-africanistas, como, por exemplo,  Kaoberdiano Dambará-Felisberto Vieira Lopes, Mário Fonseca, Elisa Andrade ou Jorge Querido, o combatente da liberdade da pátria João Pereira da Silva, antigo participante da luta político-armada na Guiné-Bissau conduzida pelo PAIGC,  Ministro do Desenvolvimento Rural e alto dirigente do PAIGC e do seu ramo nacional caboverdiano e, depois, do PAICV durante a vigência do regime  de partido único socializante e titular de vários importantes cargos governamentais e de gestão empresarial durante a governação do PAICV na Segunda República caboverdiana, considera num post da sua autoria publicado no seu blogue pessoal corda d esperanca que o livro de Manuel Brito Semedo se insere numa estratégia mais geral de combate aos fundamentos da luta de libertação nacional e, em consequência, ao ideário progressista e pan-africanista de Amílcar Cabral com visíveis repercussões nos cenários políticos caboverdianos, bissau--guineenses e africanos em geral. Provas disso seriam i.  O recente golpe institucional e constitucional protagonizado pelo actual Presidente da República da Guiné-Bissau, Umaro Cissoco Embaló,  contra a Assembleia Nacional Popular e o Governo do mesmo país liderado pelo PAIGC bissau-guineense e as contínuas perseguições contra o seu Presidente e os seus militantes, simpatizantes e aliados e contra outros oposicionistas protagonizado pelo mesmo Chefe de Estado golpista.  iii. O golpe institucional protagonizado no Senegal com o adiamento das eleicões legislativas face à iminência da vitória de uma coligacão progressista de esquerda. Atente-se que a medida tomada pelo Presidente Macky Sall e ratificada pela Assembleia Nacional do Senegal sem a participação da oposição foi anulada pelo Tribunal Constitucional do país, obrigando o mesmo Presidente da República a remarcar as eleições para um mês depois da data inicialmente prevista. A esses factos referenciados por AJoão Pereira Silva, tomo a liberdade de acrescentar um terceiro facto, qual seja o voto promovido pela bancada parlamentar maioritária do MpD na Assembleia Nacional caboverdiana contra a Resolução visando celebrar de modo condigno e abrangente em se  declarando o ano de 2024 como o Ano do Centenário Natalício do mais célebre e consistente dos líderes nacionalistas afro-crioulistas e afro-lusófonos, Resolução essa  da iniciativa da Fundação Amílcar Cabral e levada ao plenário do parlamento caboverdiano pela bancada parlamentar minoritária do PAICV.

A mesma estratégia neo-colonialista acima dissecada  integraria, segundo João Pereira Silva, uma componente de sujeição  da política externa do Governo de Cabo Verde aos imperativos imperialistas da maior potência económica, política e militar ocidental e mundial e dos seus aliados europeus, isto é, aquilo que ele denomina o Ocidente Colectivo, e a transformacão de Cabo Verde num Estado cliente desse mesmo Ocidente Colectivo e internamente suportado por uma nova elite burocrática pós-colonial aliada à antiga elite burocrática colonial, em face da ascensão económica e geo-política da República Popular da China  e do crescente protagonismo de rivalização militar e geo-estratégica da Federação Russa de Vladimir Putin contra a hegemonia mundial dos EUA e, outrossim, em face da crescente e irreversível perda de influência militar, económica, política, cultural e linguística da França na sua Françafrique de teor ostensivamente neo-colonial e em nítidos declínio e desagregação por mor do sucesso de golpes de estado militares   de inspiracão nacionalista e pan-africanista contra governos e poderes civis  bastas vezes eleitos em cenários de democracias meramente virtuais e  eleitorais, ademais infestadas de irregularidades processuais e fraudes eleitorais e de tentativas de revisão das Constituições mais ou menos democráticas vigentes no sentido de prolongar por mais mandatos os dois mandatos constitucionalmente previstos e, assim, perpetuar no poder os Presidentes em exercício. Por isso mesmo, essas mesmas democracias virtuais e eleitorais  estão cada vez mais desacreditadas junto  das novas gerações e das novas elites africanas democráticas e nacionalistas, sendo essa a razão porque os golpes de estado militares acima referidos têm sido legitimados  e muito aplaudidos e apoiados por essas novas elites e pelas populações dos respectivos países.

É nesse contexto geo-estratégico que, segundo João Pereira Silva, Cabo Verde surge  devidamente enquadrado na doutrina do Full Spectrum Dominance,  segundo a qual não deve haver lugar à partilha da hegemonia com a maior superpotência mundial e nem deve haver espaços para não-alinhamentos, como tinha ocorrido nos tempos da Guerra Fria, devendo-se seguir estritamente os termos ditados nos tempos imediatamente subsequentes à Guerra Fria em que os Estados Unidos da América emergiram como a única superpotência num mundo unipolar. 

Segundo o blogger João Pereira Silva o combate para a submissão neo-colonial  de Cabo Verde teria como objectivo geral a desafricanização cultural e geográfica de Cabo Verde, tendo como especial alvo as comunidades emigradas caboverdianas, muito permeáveis aos discursos liberal-democráticos ocidentais porque maioritariamente radicadas em países ocidentais da Europa e das Américas,  e seria conduzida em várias frentes, designadamente i. a linguística; ii. a geológica; iii. A  da divisão em focos da cabovernianidade com correlativa divisão dos caboverdianos em dois povos,  o de Sotavento e o do Barlavento, com os respectivos centros nas cidades do Mindelo e da Praia. Nessa démarche, ignora-se todavia, segundo João Pereira Silva, que i. quando a ilha de São Vicente foi finalmente povoada já existia a caboverdianidade e os respectivos atributos, designadamente a língua comum de todos os caboverdianos;  ii. que a ilha de Boavista já tinha sido um importante centro de contacto de Cabo Verde com o mundo, etc., etc., sendo do porto de Sal-Rei que, por mor de um surto epidémico,  partiram o Cônsul britânico John Rendall e os boavistenses que trabalharam no abastecimento do carvão, primeiramente através de barcaças fundeadas  no porto do Mindelo. Conclui o bloggger que de facto a longa História colonial caboverdiana fez emergir dois polos principais da cultura caboverdiana centrados nas cidades da Praia e do Mindelo. Acrescenta o blogger que são todavia diversas as histórias, os modos e os tempos de constituição das antigas elites praienses e mindelenses, umas, as praienses, muito influenciadas pela cultura lusitana e pelo desprezo das expressões mais africanas da cultura rural santiaguense, como a tabanca, o batuco e o funaná tradicional, ferozmente perseguidas e proibidas de subir ao platô da cidade da Praia, e as outras, as mindelenses, muito marcadas pelos ingleses e pelos italianos presentes na cidade portuária, que, além das suas mansões e palacetes, introduziram vários hábitos, sobretudo os britânicos, depois assimilados pelas elites mindelenses que passaram a ter visíveis  complexos de superioridade em relação aos outros caboverdianos e mesmo em relação à cultura portuguesa dominante nas ilhas e cujos portadores metropolitanos eram desdenhados e chamados de mondrongos.

Comum às elites das duas principais cidades de Cabo Verde era o seu desprezo pelos chamados pés-descalços das periferias das respectivas urbes, os quais estavam proibidos de frequentar as praças grandes das duas cidades, sendo também múltiplas as dificuldades criadas aos negros, mesmo se endinheirados, para o seu ingresso, por exemplo, no muito elitista Grémio do Mindelo.

 

 

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