A Primeira-Dama e o Tesouro (escondido)
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A Primeira-Dama e o Tesouro (escondido)

O segundo comunicado da Presidência da República, emitido hoje, 21, a tentar apagar o ‘fogo’ salarial da primeira-dama que incendeia estes dias o Palácio do Plateau é, convenhamos, bem mais esclarecedor. Mas não extingue o braseiro, nem desfaz o pecado original. Porém, ilumina os caminhos sombrios e sinuosos por onde todo o processo percorreu. Afinal, como é que o Tesouro público processou e pagou (e continua a pagar) durante dois anos a fio o salário de alguém que não é contratado, nem tem qualquer vínculo com a Presidência da República? Como tamanha ilegalidade é naturalmente homologada pelos serviços administrativos do estado/governo sem que a fiscalizaçáo detetasse qualquer anomalia ou irregularidade? O Tribunal de Contas vai obrigar a Primeira-dama a devolver os 7750 contos que já recebeu desde 2021? As respostas a estas questões explicarão, decerto, o silêncio avassalador do Governo. A minha análise.

Ponto assente: em Cabo Verde, legalmente, não existe Primeira-Dama, nem como figura, nem como título. Há uma denominação respeitosa que se atribui à companheira do Presidente da República, que não é eleita, nem possui um cargo definido ou orientado. Não há pasta. O mesmo acontece, de resto, em Portugal, ou no Brasil. De modo que a função, enquadramento e responsabilidades atribuídas à chamada Primeira-dama levantam dúvidas e provocam debates em quase todo o lado.

Em 2017, quando Emmanuel Macron venceu as eleições em França, houve uma petição assinada por mais de 270 mil pessoas contra um eventual status oficial de Brigitte Macron. O assunto levantou o debate sobre o papel da primeira-dama na França, porque, efectivamente, os cônjuges dos chefes de Estado e de governo na Europa geralmente não possuem nenhum status especial.

Macron havia anunciado durante a campanha presidencial que desejava criar um "verdadeiro status" de primeira-dama de modo a cessar com o que chamou de "hipocrisia francesa". Segundo o chefe de Estado francês, “é importante esclarecer o papel da mulher, com quem compartilho a vida e cuja opinião é importante”.

Normalmente, os cônjuges dos líderes europeus têm apenas um papel de anfitrião durante visitas diplomáticas e participam de viagens internacionais, inclusive com um programa especial. Na França, a mulher do presidente dispõe de seu próprio gabinete, colaboradores e um serviço de proteção subordinados ao orçamento do Estado.

Nos Estados Unidos, a primeira-dama tem um papel estipulado por lei de 1978. Mesmo se não recebe um salário, a FLOTUS (sigla usada para a First Lady of the United States) dispõe de um escritório na Casa Branca, um staff próprio, um chefe de gabinete e um assessor de imprensa, e sempre tem uma causa favorita. Hillary Clinton defendeu a reforma do sistema de saúde quando atuava como conselheira do marido, Michelle Obama lutou contra a obesidade infantil, enquanto Melania Trump militou contra o assédio virtual.

Há, portanto, aqui uma questão de reconhecimento. As primeiras-damas, não sendo eleitas, nem contratadas, ainda assim trabalham. Social e politicamente, em certos casos - uma primeira-dama carismática pode ajudar a transmitir uma imagem positiva do marido, como já ocorreu com Hillary Clinton ou Evita Perón, na Argentina, ou com Michelle Obama.

A actual primeira-dama de Cabo Verde (PDCV, siglamos-lhe assim) trabalha. Tem uma participação social, ambiental e na defesa dos animais muito forte. Acompanha o PR nas deslocações ao estrangeiro e em cerimónias oficiais domésticas. Está sempre onde se fala sobre empoderamento feminino, causas nobres. Portanto, tem actividade, logo, terá despesas, como as antecessoras tiveram com mais ou menor preponderância. Aliás, Lígia Fonseca defendera o estatuto para a Primeira-dama mas não colheu apoio do PAICV na altura.

O problema é que mesmo se a primeira-dama não recebe oficialmente um salário, o facto de poder beneficiar de regalias cria ruídos. Se tem vencimento pior ainda. Porque, se é proibido, imoral e anti-ético um ministro contratar um familiar, como ficará quando o presidente da república contrata a própria esposa... para pagar o dobro do que ele mesmo recebe? A questão é polémica de facto e tende a sacudir a opinião pública, porquanto tecnicamente o Chefe de Estado está a pagar para a sua companheira ser “Primeira-Dama” em exclusividade de funções, tendo para tal que abdicar da sua profissão.

José Maria Neves, talvez mudando de opinião quanto a um Estatuto para a Primeira-Dama, que em tempos teria deixado entender a alguns de que era contra, quer tudo definido na Lei. Tem razão e entendo a sua posição, como atrás demonstrei. O que não percebo é por que o Chefe de Estado, defensor-mor da Constituição e das leis da república, não esperou pelo legislador para avançar com a proposta de pagamento da Primeira-Dama, digo, da sua mulher. Sim, o PR paga mensalmente à sua dama 310 contos, sem contrato nem qualquer vínculo com a Presidência. Um escândalo, quer pelo valor, quer pela ilegalidade do acto.

Todos foras-da-lei

Mas há outras questões que martelam a cabeça ao se olhar para o quadro grande: Afinal, como é que o Tesouro Público processou e pagou (e continua a pagar) durante dois anos a fio o salário de alguém que não é contratado, nem tem qualquer vínculo com a Presidência da República? Como tamanha ilegalidade é naturalmente homologada pelos serviços administrativos do estado/governo sem que a fiscalizaçáo detetasse qualquer anomalia ou irregularidade?

Efectivamente, a Presidência não conseguiria os ‘compromissos’ com a esposa do PR se não houvesse aval do Tesouro, que é onde se processam todos os pagamentos na Administração Pública. Impossível. Razão pela qual este caso não se restringe a um eventual nepotismo de JMN, nem a uma benesse atribuída à senhora Débora Katiza Carvalho por vontade e poder arbitrário unilateral da Presidência. Há um processo que nasce no Palácio do Plateau mas que obrigatoriamente passa pelos serviços administrativo-financeiros do Estado, a nível do Governo, que permanece escondido dentro do Tesouro.

Bem, o segundo comunicado da Presidência da República, emitido esta quinta-feira, depois de um primeiro que apenas confirmou a existência desse salário ilegal e chorudo, talvez dê uma pista certeira.

“Desde o primeiro momento, a questão foi colocada ao Governo. Assim, em Maio de 2022, a Presidência da República submeteu uma proposta de novo diploma orgânico da Presidência da República, dele constando normas que, de forma mais clara, regulam os aspetos jurídico-administrativos atinentes ao Cônjuge e ao Gabinete que com ele trabalha. Decorrido tanto tempo e apesar de todas as negociações já havidas, a proposta de diploma ainda não foi aprovada”. Ou seja, inexiste qualquer respaldo legal para o pagamento da PDCV.

Ciente disso, o que fez a Presidência? Concertou com o Governo, no caso concreto o Ministério das Finanças, um expediente para garantir o ordenado da esposa até a Lei ser aprovada.  Se aprovada. “Explicadas as suas motivações, o Orçamento da Presidência da República, no âmbito do Orçamento do Estado para o ano de 2023, negociado com o Ministério das Finanças e aprovado pelo Parlamento, já prevê verbas necessárias ao processamento dos salários da Primeira Dama. Com esse respaldo, foram tomadas medidas internas, de carácter transitório, por conseguinte, até que fosse aprovada a nova Lei Orgânica e com ela os dispositivos específicos sobre este assunto, designadamente no concernente aos salários”, esclarece o comunicado da PR, que ressalva o facto de as Contas da Presidência da República serem “por iniciativa do Presidente José Maria Neves, desde o início do seu mandato, domiciliadas no Tesouro, pelo que a gestão financeira é feita de forma absolutamente transparente e, por isso mesmo, passível de acompanhamento e fiscalização a qualquer momento”.

Aqui, JMN divide as responsabilidades com o Governo, e se bem vistas as coisas, e a crer na segunda explicação do Palácio do Plateau, também tem responsabilidades neste polémico assunto. O que poderá, de certa forma, justificar por que o Executivo não entrou nesta celeuma, ficando no silêncio e deixando o secretário-geral do partido que o sustenta, Luis Carlos Silva, liderar a contestação. Ora, ou foi premeditada a atitude do Governo em ficar mudo depois de, presumivelmente, facultar tais informações – numa altura em que o país assistia a um braço-de-ferro entre Ulisses Correia e Silva e José Maria Neves sobre a política externa – ou o SG do MpD precipitou-se na sua comunicação ao país, seguindo por iniciativa própria uma corrente facebookiana sem averiguar antes se o seu Governo está de vestes limpas ou está de mãos sujas nesta trama. E está. Na verdade, estão todos foras-da-lei nesta ‘floresta negra’.

 O Governo terá pois de, tal como a PR, vir igualmente a público clarificar esta questão e, principalmente, partilhar com os cabo-verdianos quanto é que, de facto, a definição da "função pública" da primeira-dama irá custar ao país, segundo o “negócio” feito com o PR. Trezentos e dez (310) mil escudos por mês, equivalente a 22 salários mínimos, é justo? Afora isso, quanto a PDCV teria em acréscimo relação a outros subsídios? Os cabo-verdianos estarão de acordo? O Parlamento aceitaria tais valores, sendo certo que o seu (os Estatutos dos Titulares de Cargos Políticos) não passou por estrondosa manifestação pública?

Para já, independentemente da futura aprovação da nova Lei Orgânica da Presidência, que dá Estatuto à Primeira-Dama com direito a rendimentos no final do mês, parece certo que o Tribunal de Contas vai ter de agir em conformidade e se assim for, a mulher do Presidente da República poderá ser obrigada a devolver ao Estado tudo o que recebeu indevidamente, o que daria um total de 7750 contos pelos 25 meses de salários recebidos. Aguardemos os próximos dias e o que dirá JMN na habitual mensagem de fim de ano.

 

 

 

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SOBRE O AUTOR

Hermínio Silves

Jornalista, repórter, diretor de Santiago Magazine

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