A destruição do PAICV e a democracia cabo-verdiana
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A destruição do PAICV e a democracia cabo-verdiana

E de repente a democracia cabo-verdiana se descobre num terreno pantanoso. E o perigo de se afogar no lodaçal do imediatismo e das oportunidades conjunturais é hoje uma hipótese cada vez mais real, evidente, verificável, não exigindo qualquer esforço de análise ou estudo mais aprofundado, só possíveis aos mais avisados. Porque o povo já deu conta do estado das coisas e não está contente com o que passou a ver e a perceber.

Os discursos políticos em presença já não convencem ninguém. O descrédito é notório. As conversas e as práticas quedam-se, tímidas, aquém das exigências do país, das capacidades de interpretação e das leituras populares da Governação.

O povo acha-se cansado. O desfasamento entre o discurso político e prática política é acentuado. E já não passa a ninguém despercebido. Os sinais de desgaste estão claros. O levantamento popular ocorrido em São Vicente, os ecos que chegam do Fogo, do Sal, de São Nicolau, são resultados de uma sociedade perdida nos seus extremos.

De um lado está o povo com as suas necessidades, os seus desafios, os seus sonhos, as suas potencialidades, e do outro está o poder político - situação e oposição - acantonado nas guerrilhas internas, apostado na produção do efémero, do imediato e do faz de conta, para manter a presença, o charme e o estatuto.

Zeca de Nha Reinalda cantou há algum tempo o seguinte: “la di riba so ta bran bran li di baxu so ta hum hum”. Tem razão o Zeca, este homem incontornável da cultura cabo-verdiana. Há, com efeito, fortes sinais de esgotamento da democracia representativa entre nós.

No seu discurso na sessão solene de comemoração dos 42 anos da independência nacional, o Presidente da República, Jorge Carlos Fonseca, apelou ao respeito pelas minorias.

De entre as inúmeras leituras possíveis sobre as declarações do chefe do Estado, está esta seguramente: meus senhores políticos respeitem a vontade popular, lêem os sinais da sociedade civil e respondam em conformidade, são eleitos para isso!

País arquipelágico, pobre, desprovido de recursos naturais, gerir este Cabo Verde é arte, exige elevada criatividade para reformular conceitos, recriar fórmulas de gestão pública e reformatar propostas e decisões. Sempre! Num esforço de ponderação, de sageza e de encaixe permanentes, leais e mobilizadoras da vontade popular.

E é neste processo de recriação, de reformulação, é que entram a democracia, os partidos políticos e a sociedade civil, as três variáveis de uma equação que se quer transitiva e bivalente, sendo verdadeira ou falsa, sem rodeios ou manifestos circunstanciais.

Governar é servir. Os fundamentos da democracia perseguem objectivos nobres como servir bem, com eficiência e eficácia, potencializando os recursos nacionais, para gerar riquezas e bem-estar social.

O papel dos partidos políticos aqui é indispensável. Sem os partidos não existe democracia. Assim como o Governo e a oposição. Há, pois, uma relação de causa e feito entre os partidos do poder e os partidos da oposição. E essa reciprocidade é hoje real aos olhos do povo, pois este já sabe que não pode haver bom Governo sem uma boa oposição.

A oposição assume, assim, por decreto e por missão, um papel tão importante no processo governativo quanto o partido do poder. Não há como fugir. Se assim é, é porque assim tem que ser!

É, portanto, perigoso para a democracia cabo-verdiana, o processo de gradativa destruição  por que passa o PAICV  há já algum tempo. E isto é mau para a nação, e exige um repensar profundo do sistema, abrindo assim outras portas para a participação da sociedade civil no processo democrático, e consequentemente, no processo de governação do país.

O antigo líder do PAICV, José Maria Neves, agastou a liderança da Janira Hopffer Almada, causando um profundo dano ao partido, cuja reparação manifesta-se cada vez mais complexa e lenta.

Sem entrar em detalhes – porque não é este o objectivo destas notas - convém dizer que nos últimos anos do seu mandato, José Maria Neves entregou o partido aos seus adversários internos – com Felisberto Vieira e Júlio Correia à cabeça. E não foi por acaso! O homem entendeu que já não precisava mais daquilo.

Quando decidiu abandonar o barco, em finais de 2014, fez de tudo para entregar o leme à Maria Cristina Fontes Lima, porém, Janira Hopffer Almada estragou-lhe a festa. E, sendo um homem que lida mal com derrotas, iniciou uma insana manobra de destruição da Janira Hopffer Almada, a menina que teve a ousadia de o desafiar, habituado como estava a ser cegamente seguido pelas mulheres do partido.

Neste processo, José Maria Neves contou com a honrosa ajuda de importantes figuras do cenário governativo de então, como Sara Lopes, Leonesa Fortes, Marisa Morais, Cristina Duarte, entre outras, que juntamente com o chefe fizeram de tudo para sombrear a nova liderança.

Uma ressalva, porém! Janira Hopffer Almada fez por merecer, colocando-se a jeito para ser objecto de escárnio e sacanagem dos seus adversários. Só lidera quem tem coragem para reconstruir novas pontes e novas estruturas.

E a nova líder, mandatada pelo “povo do partido” – a designação é dela – para reconstruir um novo PAICV pós Neves, não teve coragem para desempenhar o mandato que lhe foi confiado por voto dos militantes, e o resultado é hoje um partido mergulhado numa acentuada crise de destruição progressiva.

O PAICV está enfermo! Discursos inflamados, terroristas aqui e ali. Trincheiras abertas e Kamikazes prontos para detonar tudo. Felisberto Vieira é o Comandante em Chefe! E nem quer entender outra linguagem, já não tem nada a perder!

Estranho? Nunca! A democracia cabo-verdiana é isso. Descobriu-se assim já se fez algum tempo, enferma de uma intolerância insana, indiferente e comprometedora, por todos os quadrantes.

O país vive um período complexo da sua história. O MpD, hegemónico, faz o que bem entender, “sem djobe pa ladu”. O PAICV, até aqui único partido da oposição com vocação de poder, mergulhado num processo de autodestruição sem precedentes, já não fala coisa com coisa. A UCID, ainda acantonada em São Vicente, não consegue comunicar com o país, nos termos e nas condições que o momento exige.

O que resta? Um país perdido nos seus extremos e uma democracia em profunda crise.  

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SOBRE O AUTOR

Domingos Cardoso

Editor, jornalista, cronista, colunista de Santiago Magazine

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