A defesa de Amadeu Oliveira vai requerer ao Tribunal Constitucional a aclaração do controverso Acórdão que legitimou a Resolução da Comissão Permanente que autorizou a detenção fora de flagrante delito do ex-deputado da UCID para ser presente ao juiz. Essa ´démarche´ foi também defendida pelo constitucionalista e professor universitário Wladimir Brito em recente entrevista ao jornal A Nação, onde afirmou que “os juízes só se legitimam com fundamentação das suas decisões e quando começam a tomar decisões como a do TC começam a perder legitimidade. E aqui penso que o TC não prestou um bom serviço à república, à democracia e aos direitos fundamentais”. Os seus argumentos são arrasadores, a ponto de considerar inaplicável o acórdão do TC, instância que, segundo esse académico, tem decidido quase sempre a favor do poder. “Assim aconteceu no caso SOFA, no recurso do PAICV, no caso Alex Saab, em que decidiu sempre a favor daquilo que a Procuradoria pedia, e agora com este caso do dr. Amadeu Oliveira em que se vai a reboque das ilegalidades e inconstitucionalidades cometidas pelo Parlamento.”
Amadeu Oliveira deverá fazer chegar ao Tribunal Constitucional, nos próximos dias, um novo requerimento a pedir a essa corte judicial a clarificação do seu Acórdão nº 17/2023. O documento, ainda em fase de construção, se baseia muito nos subsídios/artigos dos juristas Germano Almeida e Daniel Carvalho e também do analista político José António dos Reis, publicados no A Nação e Santiago Magazine. O texto final a ser entregue ao TC ainda não está acabado, mas pode ler aqui em exclusividade a versão pré-finalizada com os principais argumentos com os quais Amadeu Oliveira pretende confrontar o TC “com as suas próprias inconstitucionalidades”, tal como sugeriu o prof. Wladimir Brito numa recente entrevista ao A Nação.
Aliás, as posições assumidas por Brito nessa entrevista são firmes e contundentes e trazemos aqui algumas passagens de capital importância.
“Neste processo do sr. dr. Amadeu Oliveira, esclareço que não sei se ele tem ou não razão, se deve ser ou não condenado, mas sei é que até ser julgado ele é inocente, por ser um princípio básico do qual eu não abdico. Todo esse processo tem tido trombolhões jurídicos que nos levam, como cidadãos, a dizer aos tribunais: “basta desses trombolhões”. Como cidadão cabo-verdiano, como jurista, não posso deixar de falar disso. É momento de dizermos aos tribunais que estamos atentos e estamos a olhar para as suas decisões. Os juízes só se legitimam com fundamentação das suas decisões e quando começam a tomar decisões como a do TC começam a perder legitimidade. E aqui penso que o TC não prestou um bom serviço à república, à democracia e aos direitos fundamentais, ao produzir, repito, um acórdão manifestamente inconstitucional”, afirmou Wladimir Brito logo a abrir a entrevista para o semanário A Nação de 27 de Abril último.
Para Brito, a unanimidade alcançada entre os juízes-conselheiros do TC acerca de um tema controverso como o do costume para se tomar decisões judiciais surpreende, sobretudo porque o mesmo TC já tinha emitido um Acórdão a dizer precisamente o contrário. “O surpreendente é essa unanimidade ocorrer quando o presidente do TC, dr. Pina Delgado, tinha tido, antes, uma posição diferente. Ou seja, ele esqueceu-se da posição que tinha tido, vota por unanimidade contra a sua própria posição, numa outra decisão. Isto para mim é o mais surpreendente”.
Mas o que mais incomodou o constitucionalista cabo-verdiano e professor de Direito na Universidade do Minho, Portugal, tem a ver com o braço político que estende pelo TC adentro. “Eu tenho verificado que em várias situações que envolve o poder político, que o TC tem decidido quase sempre a favor desse poder. Assim aconteceu no caso SOFA, no recurso do PAICV, no caso Alex Saab, em que decidiu sempre a favor daquilo que a Procuradoria pedia, e agora com este caso do dr. Amadeu Oliveira em que se vai a reboque, no fundo, das ilegalidades e inconstitucionalidades cometidas pelo Parlamento, e também ilegalidades e inconstitucionalidades cometidas por alguns tribunais ordinários. Decisões que visam legitimar e dar cobertura constitucional a práticas manifestamente inconstitucionais, feitas por órgãos de soberania, garantes da própria liberdade das pessoas. Isto é intolerável. É preciso dizer isto em voz alta para que os juízes se apercebam que nós não estamos a dormir e que eles não são nem semideuses, nem demiurgos, nem titulares de poderes absolutos. É preciso dizer basta, por essa conduta não ser aceitável”.
Costume contra legem
Tudo isto para concluir então que o Acórdão do TC que reconhece legitimidade à Comissão Permanente da AN para autorizar a detenção de um deputado fora de flagrante delito e sem despacho de pronúncia do juiz é… inconstitucional.
“É muito delicado um TC estar a produzir acórdãos inconstitucionais porque viola flagrantemente algumas normas da Constituição. Nomeadamente aquela que diz que os tribunais não podem aplicar normas inconstitucionais. Há um artigo da Constituição, o 211, nº3, os tribunais não podem aplicar normas contrárias à Constituição ou aos princípios nela consignados. Ora, ao aplicar o costume contra legem, isto é, contra a Constituição, para legitimar uma prática da Comissão Permanente da Assembleia Nacional, que é manifestamente inconstitucional, o TC aplica uma norma inconstitucional para legitimar uma prática inconstitucional”.
Mas mais grave, diz ainda WB, com isso também, “ao constituir o costume contra legem, em especial, como uma fonte de revisão da Constituição, o TC está a criar novas normas e processos de revisão. Ora, a Constituição tem regras muito rígidas para a sua revisão. Com essa norma, contra regem, a Comissão Permanente do Parlamento passa também a poder exercer poderes que a Constituição não lhe atribui”.
O conceituado jurista estranha o silêncio da Ordem dos Advogados e aplaude a coragem cívica do Germano Almeida e do José António dos Reis, último que escreve regularmente para o Santiago Magazine. “É por isso que, reitero, o dr. Germano Almeida tem tido uma coragem cívica e exemplar, mas também o dr. José António dos Reis, ao contrário da OACV que se tem coibido, intoleravelmente, a emitir uma opinião pública sobre esta matéria, estando ela, estatuariamente, obrigada a defender os direitos, as liberdades e as garantias dos cidadãos, e dos demais juristas que também estão calados. Eu não percebo a razão, se há algum receio de criticar os tribunais. Eu pessoalmente não tenho e como jurista cabo-verdiano, não posso ficar calado perante isto, independentemente de a pessoa em causa ser o dr. Amadeu Oliveira. É ele como podia ser qualquer outra pessoa, o sr. Joaquim da Silva, a dona Maria... Estamos diante de um cidadão que está a ter um tratamento jurisdicional inaceitável”.
TC não é Oráculo de Delfos
“Os tribunais começam a causar preocupação comunitária com a conduta que vêm tendo, ainda por cima, num caso como este em que os tribunais são chamados a assegurar os direitos, as liberdades e as garantias de um cidadão e não o fazem. Mas, como disse, o PR (José Maria Neves) fez muito bem, penso eu, com muita ponderação, chamando a atenção e convocando os cidadãos para analisarem e debaterem o problema que o acórdão suscita. Ao contrário do que se procurou argumentar, que o presidente Jorge Carlos Fonseca disse que quando um tribunal decide é acatar, e ponto final, não é bem assim. Quando um tribunal decide começa tudo de novo. Começa uma nova vida, com a aplicação das decisões que se tomam, etc. O Tribunal Constitucional não é nenhum oráculo de Delfos. As democracias já estão fragilizadas e se os tribunais contribuem ainda mais para essa fragilização, qualquer dia, temos que lutar com coisas mais complicadas ainda”, alertou.
JVL pergunta então a Wladimir Brito: “se o Acórdão do TC é inconstitucional, como diz, ele é aplicável?”
“Esta é uma outra questão que é preciso ver. Se devemos respeitar normas que desrespeitam a Constituição. Em princípio, entendo que não, e que devemos requerer a sua inconstitucionalidade para que esta seja declarada pelo tribunal, nomeadamente o constitucional”, respondeu o constitucionalista, sublinhando que cabem às entidades indicadas na Constituição fazer esse recurso. “Mas também poderia ser uma das partes no processo se tiver cumprido os requisitos consagrados. Neste caso, a parte poderia, antes do trânsito em julgado e dentro do prazo legalmente estabelecido, pedir ao TC a aclaração do acórdão”.
“Mas uma inconstitucionalidade, sendo perene, não é contestável a qualquer momento?”, questionou ainda JVL. “Esta questão é pertinente. Mas só se coloca quando a dúvida é do TC. Ora, como é a primeira vez que o TC produz um acórdão inconstitucional, abre-se agora a possibilidade de um debate com vista a encontrar uma solução”.
Sim, porque como disse WB, “trata-se de um acórdão em que o TC é chamado a se posicionar e nisso comete ele próprio uma outra inconstitucionalidade, consubstanciada no próprio acórdão”.
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