Herdeiros da família Lopes Afonso acabam de apresentar ao Tribunal de São Domingos uma queixa-crime contra a Câmara Municipal local por alegada falsificação de documento público. Em causa, a “inscrição fraudulenta” e “deliberada da matriz” de um terreno em Praia Baixo que dizem lhes pertencer, e ao qual a autarquia teria atribuído em 2008, durante a presidência de Fernando Jorge Borges, “falsas confrontações” – de 200 hectares registados na Conservatória, a CM reduziu a área para 22 hectares – que a actual administração, liderada por Isaías Varela, recusa rectificar, preferindo então disputa judicial.
Maria Amélia Afonso Barros, Maria Filomena Barros Semedo e Olívio Lopes Afonso, co-herdeiros de Manuel Lopes Afonso, intentaram na passada quinta-feira, 9, uma acção judicial contra a Câmara Municipal de São Domingos porque, segundo afirmam, a autarquia “deliberada e fraudulentamente” tomou-lhes cerca de 180 hectares em Praia Baixo por meio de documentos supostamente forjados, razão pela qual pedem que a “CMSD seja condenada por crime de uso de documentos ou registo falsos previsto pelo artigo 235º do Código Penal e um crime de encobrimento agravado previsto pelo artigo 337º do CP”.
A quezília entre os herdeiros de Manuel Lopes Afonso e a CMSD vem de longe e já os levou à barra do tribunal noutras circunstâncias. Desta feita, o desentendimento tem a ver com a delimitação de uma vasta área em Praia Baixo, que os herdeiros Lopes Afonso reivindicam a sua titularidade e mostram documentos (certidão predial, com o n.º 31968/20150408, extrato da descrição nº 1470/R:/ Lv:15/ Fls: 564/V) que comprovam serem, alegadamente, donos legítimos de 200 hectares nessa localidade, mas que, segundo eles, a CMSD cortou cerca de 118 hectares.
“A propriedade 1470, encontra-se registada na Conservatória do Registo Predial da Praia desde 08 de outubro 1873, compreendendo pelo Montainho desde o Pé da Ribeira, passando o Covão até o Cume do Monte Cellado e do Cume deste Monte, tirando uma reta que vai até o Mar, seguindo sempre pelo Lombo do Monte”, explica Olívio Lopes Afonso, denunciando ao mesmo tempo que a Câmara de São Domingos, em 2008, durante a presidência de Fernando Jorge Borges, “reduziu drasticamente a área que nos pertence para apenas 20 hectares, atribuindo novas confrontações”.
Ou seja, de acordo com queixa, a CMSD ignorou as confrontações do Registo Predial de há 140 anos, “quando essas marcas ou delimitações eram feitas com a natureza, por exemplo, ribeira, estradas, montes e mar”, para poder ficar com 118 hectares da família Lopes Afonso.
“Há mais de 140 anos, os imóveis descritos nos autos já se encontravam na posse dos seus antecessores e eram objeto de propriedade particular, antes da transmissão dos mesmos aos sucessores ora proprietários. Documentos esses, conforme referido anteriormente, foram passados e reconhecidos pelas autoridades cabo-verdianas. Desde que a propriedade foi registada, sempre foi pago o imposto sobre o património e com a sucessão dos herdeiros, os Denunciantes continuaram a pagar o respetivo IUP (Imposto Único sobre o Património), agindo à vista e com conhecimento da generalidade das pessoas, sem a mínima oposição de quem quer que seja e, por isso, em termos absolutamente pacíficos, de forma continuada e sem qualquer interrupção e com a isenção e a convicção de exercer um próprio direito de propriedade sobre tais prédios”.
Mais, lê-se na queixa-crime: “Da análise da inscrição predial, não existe dúvidas nas suas descrições e nem existem duvidas que o prédio 1470 pertence aos Denunciantes, factos esses devidamente comprovado pelo Denunciado/Município de São Domingos, que através de um levantamento feito em 2015, a Câmara Municipal de São Domingos, juntou aos autos do processo de embargo de obra nova nº 10/2015 um mapa do prédio com o referido levantamento, comprovando a descrição das confrontações da propriedade 1470. No referido processo de embargo de obra nova nº 10/2015 que decorreu os seus trâmites no Tribunal da Comarca de São Domingos, o próprio Denunciado/Câmara Municipal de São Domingos, tinha descrito os limites da propriedade 1470, com as seguintes discrições: Pé da Ribeira da Praia Formosa, cume do monte Cellado e do cume do Monte Cellado uma reta que vai até ao mar”.
Falsas confrontações
“Nos Autos de providência cautelar não especificada de embargo da Obra Nova nº 10/2015, que decorreu os trâmites no Tribunal da Comarca de São Domingos, o Município de São domingos, confessou que a propriedade 1470 pertence aos ofendidos ora Denunciantes, tendo o Tribunal reconhecido os Denunciantes como legítimos proprietários do prédio”, continuam os herdeiros, lembrando ainda que essa propriedade “veio a ser confirmada a área conforme o levantamento topográfico feito pelo topógrafo credenciado na matéria e por sua vez acabou por ser confirmada pelo Instituto da Gestão Territorial – INGT e o Património do Estado”, em 2017, altura em que constataram que “na CMSD, sem autorização dos proprietários, funcionários da instituição, propositadamente, alteraram os polígonos e confrontações do prédio na certidão matricial, no sentido de reduzir a área do prédio”
“Na Câmara Municipal de São Domingos, alguém apercebeu-se que os proprietários são pessoas com fraca escolaridade e assim, deliberadamente alteraram a matriz do seu prédio dando à propriedade falsas confrontações reduzindo a área para 20 hectares. Ou seja, fraudulentamente em vez de inscreverem a propriedade com os seus 200 hectares, conforme as coordenadas e polígonos da certidão predial, puseram 22 hectares na matriz da CMSD”, denunciam.
A actual equipa camarária liderada por Isaías Varela não estava na autarquia quando tudo isto aconteceu, mas vai responder no Tribunal porque terá recusado rectificar a área do referido prédio rústico, mesmo depois de solicitar e receber todos os documentos que supostamente autenticam a posse do terreno à família Lopes Afonso. “Tendo sido solicitado a validação do levantamento topográfico, em 29 de dezembro de 2022, o INGT, veio validar o levantamento topográfico, reconhecendo os Denunciantes como proprietários da propriedade com área de cerca de 200 hectares.. O levantamento efetuado, pelas entidades do Estado certifica que os Denunciantes são legítimos proprietários do prédio 1470 com a área de 200 Hectares. A Certidão matricial 1258/0 é um documento que está adulterado com intuito de prejudicar os interesses dos denunciantes. Isto confirmou-se com a validação do levantamento topográfico homologado pelo Instituto Nacional da Gestão Terretorial- INGT”, elucida a queixa, feita por Olivio Lopes Afonso em nome dos co-herdeiros, criticando ainda o facto de “sem nenhuma fundamentação, o denunciado (CMSD) recusar cumprir com a legalidade e muitas vezes, incentivar as pessoas a construírem dentro da propriedade. Foi assim que a Camara Municipal permitiu a empresa pública Água de Rega construir a dessalinizadora em Praia Baixo”, caso este alvo de um pedido de embargo feito pelos herdeiros e que aguarda decisão do Tribunal de São Domingos.
Os herdeiros lamentam de apesar das várias tentativas e pedidos de rectificação, a autarquia sãodominguense continuar sem passar a respectiva certidão matricial, “tendo o próprio presidente da Câmara, Isaías Varela, afirmado que o Tribunal decidirá, mostrando total intransigência. Prefere uma disputa judicial”.
Aliás, depois desta queixa-crime por “uso de documentos ou registo falso” e “encobrimento agravado previsto pelo artigo”, os herdeiros de Manuel Lopes Afonso prometem avançar com uma acção principal cível, para reclamar “uma avultada indemnização por parte da CMSD de modo a compensar todos os danos e prejuízos causados aos herdeiros durante todos esses anos".
Ao Santiago Magazine, a advogada da CMSD, Janira Hopffer Almada disse que a autarquia não recebeu qualquer notificação do Tribunal sobre este assunto, mas foi dizendo que “sempre que houver dúvida legal” será esclarecida no Tribunal.
A família Lopes Afonso e a CMSD já têm um caso no Tribunal de São Domingos, este referente a um processo contra o ex-presidente da CM, Cemente Garcia, por sonegação de documentos, abuso de poder e falsidade, por na qualidade de presidente da Câmara Municipal de São Domingos, ter negado, após vários pedidos, fazer a rectificação de duas áreas de matriz referentes a prédios inscritos na Conservatória de Registo Predial, situados na freguesia de Nossa Senhora da Luz - Praia-Baixo, pertencentes a dois privados, Maria Amélia Afonso Barros e Olívio Lopes Afonso, conforme acusação número 141-2021. Garcia foi constituído arguido mas não compareceu à primeira audiência, do dia 28 de Outubro de 2022.
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