Recordar o desaparecimento do falucho Belmira, 37 anos depois
Ponto de Vista

Recordar o desaparecimento do falucho Belmira, 37 anos depois


(A minha homenagem aos bravos dessa aventura)

Foi num dia como hoje, 15 de Janeiro (1981), há precisamente 37 anos, numa madrugada fria de uma quinta-feira, desaparecia no Sul da Ilha do Maio um dos mais emblemáticos navios da nossa marinha mercante que fazia mais uma viagem habitual entre a Vila de Pedra Badejo e a Vila de Porto Inglês.

Dois dias depois, o Maio recebia a triste notícia confirmada do desaparecimento do seu falucho Belmira com toda a sua tripulação e passageiros.

Não havia meios de comunicação como os que existem hoje e a notícia foi dada, pelo menos na localidade de Calheta, por um conhecido mestre canalizador que era quem dava habitualmente as piores e as boas notícias à população do interior da ilha.

Sempre quando aparecia nas localidades as pessoas ficavam um pouco assustadas com a sua presença e os comentários eram tudo menos abonatórias: ou vinha fazer algum trabalho ou trazer alguma novidade, boa ou má.

Desta vez era mesmo uma má notícia: o Belmira que tinha zarpado do porto de Pedra Badejo para o Maio há dois dias está desaparecido e até então não havia sinal da embarcação. Estava perdido nos mares.

A chegada ao Maio no dia seguinte, 16, de outro falucho - Aleluia - que tinha saído de Pedra Badejo um dia depois do Belmira para fazer o mesmo trajeto foi a confirmação de que este último tinha mesmo desaparecido porquanto os colegas tripulantes do Aleluia disseram que durante a viagem não viram o Belmira e que estavam convencidos de que o iriam encontrar fundeado na baía.

Belmira estava sob a responsabilidade do experiente capitão Sr. Tchico Tuda, para além de seis tripulantes, também eles conhecidos “homens do mar”, trazia ainda a bordo mais cinco passageiros, incluindo uma criança de cinco anos. Trazia, igualmente, um carregamento considerável de verduras e alguma mercadoria para comerciantes como era habitual nessas viagens.

Havia pouca informação à cerca do acontecimento e as autoridades locais, Capitania e Secretariado Administrativo (Câmara Municipal), limitavam-se a tranquilizar os familiares e a população. De salientar a atuação da igreja católica que teve um papel preponderante nessa história ao fazer o que era humana e espiritualmente possível nestas situações: nas celebrações de missas dominicais, e não só, o pároco rezava e visitava os familiares, pedindo-lhes para terem fé em Deus e acreditar que os desaparecidos estavam vivos e que um dia iriam aparecer e onde quer que se encontrassem estariam seguramente sãos e salvos.

Belmira esteve desaparecido durante 14 dias, altura em que a tripulação conseguiu, finalmente, avistar a terra firme ao alcançar a Ilha do Komo na Guiné-Bissau, tendo ali permanecido alguns dias para organização da viagem de regresso a Cabo Verde.

Cumpridas as formalidades legais, as autoridades locais reencaminharam todos os “sobreviventes” para o Senegal de onde dois dias depois seguiram de avião para a Ilha do Sal. No mesmo dia chegaram ao Maio, numa viagem com escala na Praia. Meses depois foi também a vez do Belmira chegar a Cabo Verde trazido por um navio cargueiro, ao que tudo indica desviado para o efeito a pedido as autoridades cabo-verdianas.

Ainda recordo-me da explosão de alegria da população quando a notícia foi dada do aparecimento do falucho e de todos os seus ocupantes sãos e salvos na Guiné-Bissau. Primeiro, através da Rádio Nacional e posteriormente através das autoridades locais.

A partir daí contavam-se os dias e as horas para a chegada à ilha os afortunados marinheiros e passageiros até que finalmente tal aconteceu para alegria de todos. Foram momentos inesquecíveis vividos naqueles dias na pacata Ilha do Maio, principalmente na Calheta, de onde era uma boa parte dos marinheiros, três ao todo: Armando de Góia, Beto de Aida e Domingo de Cândida (estes dois últimos meus vizinhos).
Todos queriam saber da boca dos protagonistas o que realmente aconteceu naquela fatídica quinta-feira do dia 15 de Janeiro quando deixaram o porto de Pedra Badejo rumo ao Maio com a previsão de chegada ao amanhecer do dia seguinte.

Segundo relataram, o navio saiu à hora programada, o tempo estava bom apesar de haver alguma bruma seca, o que era habitual naquela época do ano, mas não o suficiente que pudesse impedir aquela viagem que já os tinha levado para bem perto do Maio. “Havia cerração (bruma seca). Já tínhamos o Maio debaixo de olho e de repente começamos a ser arrastados pelo vento para o mar largo até deixarmos de ver o Porto”, dizia o Sr. Armando quando foi convidado pelo pároco para subir ao altar e dar o seu testemunho do acontecido.

Todos louvaram a atitude do capitão Tchico Tuda que sempre esteve optimista de que iam sobreviver, não fosse ele um conhecedor profundo dessas andanças. De acordo com o ex-mestre Samuka, numa declaração recente à Inforpress, “quando passaram mais de cinco dias sem ver a terra, os passageiros começaram a desanimar, mas como o capitão já conhecia a rota porque fazia viagens de longo curso, ele é que nos encorajava dizendo que iríamos encontrar terra firme e assim os dias foram passando até que fomos parar a ilha do Komo, onde encontramos pessoas um pouco diferentes de nós mas nos acolheram conforme podiam”.

A história do desaparecimento do Belmira não termina aqui e apesar de alguma apreensão sobre o que o destino ainda os reservava, há peripécias interessantes a serem contadas, nomeadamente a forma como a tripulação e os passageiros estavam a encarar esta aventura, o relacionamento entre eles, as piadas contadas ao longo dos dias em que estiveram à mercê da sorte, a água das chuvas que bebiam para matar a sede e o que tinham de comer para sobreviver.

Hoje, infelizmente, dos seis membros da tripulação desta grande aventura, quatro já não estão entre nós.

Se esta história teve final feliz, o mesmo já não se pode dizer do Belmira que acabou por apodrecer na praia de Bitxi Rotxa. Foi o fim triste de um navio mágico que ajudou famílias, comerciantes e a própria ilha na sua luta pela sobrevivência nos períodos mais difíceis da sua história. Curiosamente, o “irmão” Aleluia teve também o mesmo fim!

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