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Quando Um (Abraão) Vicente Zurra
Ponto de Vista

Quando Um (Abraão) Vicente Zurra

Quem quer tourear este simples poeta (embora em roma nascessem todos os dias imperadores, um poeta verdadeiro só nascia de mil em mil anos) tem de vir munido de mais do que pobres vergastas, mas sim da superior arma da inteligência, duma predisposição ética para o enfrentamento (daí ser a coragem, «animo», também «virtus»), duma obra que testemunhe a nossa passagem por este mundo, na precariedade da nossa condição de homens. Eis o que nos separa, vicente: enquanto tu olhas para o chão em busca das migalhas do mundo, eu olho para o alto sonhando a eternidade no seio das estrelas.

                                                 [Noli timere /Não tenha medo]

                                                  Seamus Heaney, na hora da morte

 

«Quem vive de ganhar prémios literários ou de concorrer para prémios literários pensa que a política para o livro, para a literatura deve ser promover mais prémios literários (…) é apenas a única voz a reclamar». (Declarações atribuídas pela Inforpress a abraão vicente)

Hoje é um dia jubiloso. Primeiro, porque recebi da gráfica a obra «Uma Pedra Contra o Firmamento – Arremessos de um Rezinga com o Dedo do Meio Apontado às Fuças do Mundo», um volume de cerca de seiscentas páginas, editado pela Livraria Pedro Cardoso, que colige as minhas intervenções dos últimos vinte anos. Segundo, porque surgiu-me a oportunidade de ferrar uma besta albardada, embora perigosamente sem freio, pastando no meio da cidade dos homens livres.

Por estes dias testemunhamos a mais absoluta degradação da condição política, ao ponto de alguém me confidenciar que andavam animais à solta nos média e nas redes sociais, numa tropelia inútil, numa vacuidade irredentora, expendida até à inanidade.

Não é esse o meu mundo. Num tempo marcado pela imediatez e pela suprema necedade, o impulso vitalista faz-me sempre regressar ao mundo dos livros: quer os dos outros, que me são grata luz e consoladora companhia, quer aqueles que eu próprio escrevo, na melancolia de saber que o tempo que ainda me sobra é escasso para tanto que tenho a fazer, e que se não redimem do lodaçal do mundo, dão-nos a suprema distância para a rejeição de todas as formas ou tentativas de aviltamento ou condicionamento da nossa voz livre, inteira e justa, da vil e cobarde conspurcação, sejam elas rasamente populistas, ou fundamente éticas.

Falamos de ética, pois a egolatria atormentada do vicente fá-lo tornar-se um delinquente no campo dos valores do espírito. Ao confundir o desespero com a força, a audácia com a razão, afunda-se num lodo imundo que nenhuma República de homens livres e dignos pode tolerar, e muito menos consentir.

Falo de desespero, porquanto sempre que o vicente engendra um dos seus vácuos e fajutos regabofes à volta do livro, apanha-me a surfar uma maré de proeminência ou de glória, mesmo se debaixo dos céus tudo é va[n]idade. Já sucedera em 2017, aquando da malfadada morabeza, hoje morta e enterrada, juntamente com os milhões enterrados nos bolsos fundos da portuguesa  booktailors (rebaptizada book company), quando lancei «Rua Antes do Céu» com grande estrondo mediático e de público, depois de ter assestado poderosíssimas bordoadas no lombo do vicente irredento. (Note-se que vicente é aqui usado na acepção brasileira de asno e jumento. Nenhum outro Vicente deste mundo, salvaguarde-se, será merecedor do asinino e lanudo apodo).

Aconteceu em 2019, ano do fracasso final da morabeza, em que apesar da tentativa de compra, por via indirecta (sabes do que estou a falar, vicente) e de um amanteigado convite, que teve firme e desassombrada resposta, e que tornei pública, e em que na véspera lancei três livros de uma assentada, sendo um deles «Instruções para Uso Posterior ao Naufrágio», aquele que considero apenas o meu melhor livro de sempre, até então. (Assim o considera também o Arménio Vieira [salve, meu Conde, meu camarada e meu irmão!], o mais jovem dentre os jovens).

Aconteceu agora, em que em plena guerrilha pela dignificação e respeito que nos são devidos, a nós e à nossa língua materna, e contra a humilhação infligida às nossas crianças pela Escola Portuguesa, uma instituição de cariz neocolonial, cai a pequena e corriqueira notícia da atribuição duma bolsa de criação literária em Portugal, para a execução duma obra que tem como tema a Cidade Velha.

Concedo que é demasiada má-sorte para um único vicente, ainda que façanhudo, mas aqueles que trabalham e porfiam como eu trabalho e porfio, arrancando, quando necessário, as poéticas máscaras para enfrentar as vilezas deste mundo, tais têm quase sempre a estima e as mãos do destino a ampará-los, mesmo se a perfídia, a iniquidade e a inveja vigiam de cócoras, numa perseguição desenfreada ou dissimulada, congeminando rasteiras que imaginam poder amenizar-lhes as amarguras duma existência insignificante.

Porque ousou esse suíno moral enveredar por tal caminho? Não sabia já de antemão por todos os deuses e demónios que habitam em mim, e que preciso de libertar de tempos em tempos, que iria bombardeá-lo, não com drones kamikazes, mas com uma barragem de artilharia de palavras letais para qualquer humano digno dessa condição? A única explicação racional que encontro é que o vicente padece duma peculiaridade — é masoquista.

Não sabe ele que estudei exaustivamente Carl Schmitt, a sua teoria do partisan, e por isso rejeito o estatuto de generalato nas letras, onde me querem pedestalizar e mumificar, preferindo manter-me simplesmente como um inquieto, impertinente e indomável «maquisard», que adoptou a schmittiana divisa: «não dês aos teus inimigos a possibilidade de te compreenderem», e por isso quando me imaginam num quadrante já navego por distantes galáxias?

Quem quer tourear este simples poeta (embora em roma nascessem todos os dias imperadores, um poeta verdadeiro só nascia de mil em mil anos) tem de vir munido de mais do que pobres vergastas, mas sim da superior arma da inteligência, duma predisposição ética para o enfrentamento (daí ser a coragem, «animo», também «virtus»), duma obra que testemunhe a nossa passagem por este mundo, na precariedade da nossa condição de homens.

Eis o que nos separa, vicente: enquanto tu olhas para o chão em busca das migalhas do mundo, eu olho para o alto sonhando a eternidade no seio das estrelas.

 

Sintra, 20 de outubro de 2022.

 

José Luiz Tavares nasceu no dia de Camões de 1967, no lugar de Chão Bom, Tarrafal, ilha de Santiago, Cabo Verde. Estudou literatura e filosofia em Portugal, onde vive em exílio voluntário, dedicado à sua obra.

Publicou uma quinzena de livros, desde a sua estreia em 2003, com Paraíso Apagado por um Trovão, que vem moldando o panorama poético cabo-verdiano. É o escritor mais premiado de sempre de Cabo Verde, tendo recebido, no seu país e no estrangeiro, entre outros, os seguintes prémios: Prémio Cesário Verde, Prémio Mário António de Poesia, Prémio Jorge Barbosa, Prémio Pedro Cardoso, Prémio Cidade de Ourense de Poesia, Prémio BCA/Academia Cabo-verdiana de Letras,  Prémio Vasco Graça Moura, por três vezes consecutivas recebeu o Prémio Literatura para Todos do Ministério da Educação do Brasil, foi finalista duas vezes do prémio ibero-americano Correntes d’escritas, finalista do Pen Club Português, semifinalista do Prémio Portugal Telecom de literatura e Oceanos de Língua Portuguesa.

Os seus livros integram o Plano Nacional de Leitura de Cabo Verde e Portugal. Está traduzido para inglês, francês, espanhol, italiano, alemão, mandarim (chinês), neerlandês, russo, finlandês, catalão, galês e letão. Traduziu Camões e Pessoa para cabo-verdiano. Não aceitou, até agora, nenhuma comenda ou medalha. Tem inúmeros inimigos, sobretudo não declarados, e meia-dúzia de bons amigos. Deu coices e levou. É consumidor de cerveja stout, em doses homéricas. Não é elo de nenhuma rede, social ou outra. Vive clandestino na ditadura do mundo. Deixará por epitáfio: «voltarei para vos foder a todos, cabrões».

 

 

 

 

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