O Dr. Ulisses Correia e Silva, Primeiro Ministro, é pessoa que me merece o máximo respeito pessoal, o que não significa que deva abdicar de criticar, no âmbito destes textos, atos relevantes que, como edil, ele tenha praticado.
Mas começarei por frisar que cada instituição tem a sua missão específica e não compete a nenhuma imiscuir-se na outra, julgando os seus atos, senão quando, sendo entidades inspetivas, essa seja, por sua vez, sua missão.
Quando a conservatória do registo predial declara hoje a área de abrangência física dum prédio – seja aqui o caso do 5.780, alargado fraudulentamente em 1954 – e quando o beneficiário começa a gerir o produto da fraude, criando compromissos diversos que envolvem muita gente, ele acaba por criar situações consumadas que ninguém pode ignorar e deixar de levar em conta.
Dizendo doutro modo, nós todos, cidadãos e autoridades, somos tributários de erros e fraudes cometidos no funcionamento das instituições, contra os quais não é possível um combate individual, avulso, criador de instabilidade.
Neste nosso caso, a situação global deve ser contestada junto dos tribunais e das próprias conservatórias (quando possível aí), nos termos da lei. O que pode trazer algumas dores, mas deve acontecer em nome dos princípios, pois de contrário campeiam e dominam os corruptos.
A contestação não deve limitar-se ao lado criminal, antes deve abranger a reivindicação do que é do Estado e não do particular. Cabe ao Estado agir sempre em defesa do que lhe pertence, e isso seja quem for – por mais “amigo” que seja – o desviador do bem público.
Nos casos que vimos apresentando o leitor irá pouco a pouco apercebendo-se de estratégias típicas de envolvimento do poder público por parte dos usurpadores e especuladores de terrenos, algumas delas bem espelhadas neste texto.
Pois bem:
Em 31 de Março de 2014 o então Presidente da Câmara Municipal da Praia, Dr. Ulisses Correia e Silva e o Dr. Arnaldo Silva (vulgo “Naná”), encontrando-se a sós, assinaram, num papel vulgar, um “Memorandum de Entendimento”.
Naná assinou-o alegadamente em representação de Fernando Sousa (FS), mas como este tinha falecido em 2013 (logo, como advogado, Naná sabia que não o podia representar) e como nesse memorandum foi prevista a abertura duma conta conjunta entre as partes e não vejo como abrir conta entre uma Câmara Municipal e um defunto, usarei daqui em diante a expressão FS/NANÁ. Até porque, diga-se, desde sempre foi claro que Naná nunca agiu só como representante de FS, mas também de seus próprios interesses, pessoais ou de grupo.
Esse documento diz, em resumo, o seguinte, no que aqui interessa:
a) FS/NANÁ venderia à Câmara da Praia, por escritura pública a celebrar no mesmo dia do memorandum, a propriedade dos terrenos do prédio 5.780 (o leitor já sabe: o tal arrematado e depois “retificado” em fraude para área multi-múltipla do “Plateau” da cidade);
b) A CMP venderia, ao preço de tabela praticado, os lotes ainda não vendidos, os lotes a serem criados, se fosse o caso, os lotes em processo de regularização e os lotes recuperados (....);
c) O produto das vendas seria depositado numa conta conjunta, a repartir entre as partes a 50% - 50% no fim do mês;
d) A CMP comprometia-se a ceder a uma pessoa indicada por FS/NANÁ um lote de terreno com área a ser determinada dentro do antigo “Curral do Concelho, ao lado da atual Biblioteca Nacional” para a construção dum prédio de escritórios, como forma de compensação por um terreno de FS/NANÁ com que a Câmara teria entrado para o capital da “ELECTRA.
Era um negócio sem nenhum entendimento possível. Venda não era: vender o prédio 5.780 seria medir o chão que ainda sobrasse dele e fixar um preço, a pagar à uma ou em prestações; e o comprador (Município) faria o que entendesse com o comprado e “zgobêdjaria” (desenrascar-se-ia) para pagar, ou ir pagando o preço.
Como é sabido, o preço é elemento fundamental de qualquer venda. Ora, se fosse venda, qual seria o preço nesse caso? O que a Câmra Municipal viesse a estabelecer nas tabelas que aprovasse, ou 50% dele? E quanto ao imposto único sobre o património – IUP –, que é sempre devido quando ocorre uma venda de imóvel? A CMP prescindiria desse imposto?
Mas não era nada disso, apesar de o memorandum prever a escritura de compra e venda para o mesmo dia (uma urgência impossível, muito típica da estratégia dos usurpadores)!
Seria um espécie de sociedade informal entre as duas partes em que a Câmara Municipal, como prestadora de serviços ao serviço de FS/NANÁ, iria vendendo avulsamente lotes criados e a criar ou a recuperar dentro do prédio 5.780 (considerado de FS/NANÁ, mas na verdade maioritariamente pertencente à própria Câmara) a preços que a compradora Câmara Municipal viesse a estabelecer.
Ou seja, uma prestação de serviço pela CMP a FS/NANÁ, mediante comissão de 50%.
Pergunto-me se foi isso que levou à instalação duma imobiliária dentro do edifício da CMP (mudou-se há alguns meses para o “Alto da Glória”), cujas relações com a CMP e com FS/NANÁ ninguém me soube explicar. Dizem que é assunto reservado.
Com o negócio da alínea d) entra-se na escuridão e no mistério: a CMP cederia um terreno (pressupõe-se que da própria Câmara) a uma pessoa que FS/NANÁ indicaria, para compensar um terreno de FS/NANÁ com o qual a CMP tinha entrado abusivamente para o capital da ELECTRA. Pergunto se seria do tipo - “olhe, cavalheiro, o Sr. FS/NANÁ incumbiu esta Câmara de lhe entregar este terreno”; ou se haveria alguma formalidade mais!
Mas primeiro FS/NANÁ teria de indicar a área pretendida e também a localização exata. E poderia ou não a CMP dizer-lhe: “olhe, FS/NANÁ, você está a exagerar um bocadinho. O seu terreno com que a Câmara entrou para a ELETRA valia muito menos, pela área e localização!”.
Mais: parece que no local que Naná viesse a indicar já estaria previamente autorizado, de olhos fechados, edifício de escritórios. Pobre cidade!
Os dois terrenos são identificados vagamente, como conviria a FS/NANÁ, sem indicar número de registo predial nem localização exata.
Procurei saber qual teria sido o terreno roubado a FS/NANÁ e digo aqui que se é mesmo o que me indicaram, foi um terreno pertencente ao Estado. Fica-se sem saber com que base, senão talvez por Naná o ter enganado de que se tratava de terreno dentro do 5.780, o edil concluíu que a CMP se tinha realmente apoderado do terreno alheio.
Quanto ao dito “Curral do Concelho, ao lado da atual Biblioteca Nacional”, trata-se do antigamente conhecido por “Curral de Burro”, realmente da Câmara Municipal.
Oiça-se uma breve história a propósito:
Em 10/10/2012 o NANÁ, aludindo-se ao Curral de Burro, num escrito dirigido ao Vereador do Urbanismo, dizia (transcrevo): “A CMP tem informação de que o terreno no Taiti onde está construída a Biblioteca e o Auditório Nacional pode ser municipal? Só se for pela indicação dos senhores Vieira Lopes, Rui Araujo e (.....), que são as únicas três pessoas com esta posição, por razões que se conhecem!... ".
Ponderável razão leva-me a omitir na transcrição o terceiro nome, que só por si poria a nú a indecência subjacente a uma clara tentativa de tráfico de influência por parte do Naná. O objetivo era pôr fora da jogada três pessoas, a primeira das quais já foi posta em esfera mais pura, fora destas baixezas terrenas.
Mas afinal... afinal... afinal em 2014 FS/NANÁ muda de posição e agora aceita, no memorandum, que a Câmara é dona do Curral de Burro e pode cedê-lo em compensação. Naná deu as mãos à palmatória, sem pedir desculpas a ninguém! Mas preparou uma palmatória de papelão, com uma nota preta na face que lhe cairia sobre a mão aberta. Veja-se:
O Curral de Burro, fosse de quem fosse, iria para pessoa a ser indicada por FS/NANÁ. Pessoa que o receberia a que preço? E quem haveria de receber esse preço? Dá para adivinhar?!
Um negócio, no seu todo, obscuro como breu e danado de confuso! Até certo ponto compreendo o Senhor Presidente da Câmara, obrigado a gerir a cidade, que estava perante alguém detentor de registos e tinha à sua frente um “ilustre” advogado, que fora Bastonário da Ordem dos Advogados e toda uma situação consumada.
Mas convenhamos! O Estado ou os municípios não podem aceitar assessorias de partes contrárias em contratos ou acordos – mesmo que essas partes se apresentem como parceiras, como tem acontecido.
Num Estado de Direito o Governante, central ou municipal, não pode deixar de ouvir pareceres jurídicos, no mínimo para se proteger juridicamente!
Nem me preocupa se o jurista é da cor partidária do governo ou da edilidade, ou de cor oposta, pois o jurista, ou o técnico sério, qualquer que ele seja, não torce, na Administração, a verdade técnica, jurídica ou outra, a favor de falsidades.
Há um ditado que diz: “Na arca aberta o justo peca e o ladrão faz a festa”..
O nosso Estado e muitos municípios, as nossas instituições, a começar pelas conservatórias do registo predial, são autênticas arcas abertas. Por fraquezas institucionais às vezes compreensíveis, por desleixos (dada a falta duma cultura de responsbilidade no país) e também porque a corrupção vai golopando e abrindo tudo.
Mas tudo isso é propiciado pela absurda filosofia do Estado que não intervém, fomentada exatamente pelos que abrem as portas e entram na coisa pública, privatizando-a, num país em que a pobreza real cresce dia por dia.
Porém, o ladrão que encontrou a porta aberta e foi entrando, não pode desculpar-se com a negligência do dono da casa, nem envolver este para se absolver.
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