Poder Local em Cabo Verde: navegando entre a descentralização, desenvolvimento local e o paternalismo político
Ponto de Vista

Poder Local em Cabo Verde: navegando entre a descentralização, desenvolvimento local e o paternalismo político

A tentativa de fazer a governação local a depender-se de táticas políticas paternalistas e oportunistas, onde impera o sentimento de vingança de um partido que ganha ou perde as eleições, contribui única e exclusivamente para o menosprezo dos órgãos do poder local, relegados à periferia do poder a uma situação de dependência e de mendicância permanente, e sem capacidades para responder às demandas impostas pelos munícipes e promover um verdadeiro desenvolvimento sustentável, de baixo para cima nos seus territórios. E a pergunta que nos deve inquietar a todos é: por que razão os órgãos de governação local, estatutariamente independentes, com os seus líderes democraticamente eleitos, mesmo que seja pela diferença de 1 voto, aceitam esse destrato institucional?

Após quase 35 anos da sua instauração, valeu a pena o municipalismo em Cabo Verde?

As reformas institucionais que conduziram à implantação do municipalismo em Cabo Verde tiveram lugar nos finais dos anos 80, através da Lei nº 47/III/89 que definiu as bases das autarquias locais, e a Lei nº 48/III/89, que regulou as eleições autárquicas. Contudo, as primeiras eleições autárquicas só vieram a ter lugar em dezembro de 1991, já num quadro institucional reformulado (O Decreto-lei nº 121/91, de 20.09), fruto da mudança de regime político em 1990, e da realização das primeiras eleições multipartidárias em janeiro de 1991, que conduziu o Movimento para a Democracia ao poder. A reformulação do quadro jurídico das autarquias locais, veio a ser posteriormente consolidada com a aprovação dos Estatutos dos Municípios em 1995, reforçando assim o princípio da descentralização do poder, e imprimindo uma nova dinâmica ao processo da descentralização da administração pública. O princípio da descentralização assentava-se, como ainda acontece hoje, em dois pilares fundamentais: autonomia política, e a autonomia financeira dos municípios, conferindo às Câmaras Municipais a capacidade política e financeira para promoverem o desenvolvimento no seu território jurisdicional. Contudo, atendendo à evolução e dinâmica do mercado político Cabo-verdiano, hoje muito competitivo em que os atores políticos entranham-se cada vez mais num jogo de soma nula, procurando maximizar os seus ganhos em detrimento de infortúnios de outros, a pergunta que nos inquieta é se a tão propalada e almejada autonomia, o princípio basilar da descentralização como requisito para promover o desenvolvimento local, é hoje uma realidade vivenciada no país, portanto uma aposta ganha, ou simplesmente uma ilusão política?  

Nos últimos 20 anos, a relação entre os órgãos do poder local e o governo central tem sido marcada por frequentes episódios de crispação política, quanto não de “conflitos permanentes” entre os líderes autárquicos e o governo central. Tem-se assistido de forma recorrente a trocas de acusações de parte a parte, incidindo-se sobre questões diversas que vão desde transferência e gestão de fundos, licenciamento de construções, gestão de propriedades (terrenos principalmente), realizações de obras públicas pelo governo que supostamente seriam da competência municipal, etc. A lista de motivos de discórdia é de facto longa. Quem não se lembra da polémica em torno da gestão do fundo do ambiente, em que o então presidente da Associação Nacional dos Municípios, encenando um espetáculo público, convocou a imprensa para anunciar ao país que ia apresentar uma queixa-crime contra o então ministro do Ambiente, Habitação e Ordenamento do Território, Antero Veiga, acusando-o de má gestão do Fundo do Ambiente, uma vez que, segundo ele, as câmaras municipais vinham sendo preteridas no emprego do Fundo do Ambiente, em benefício de outras organizações. Quem presenciou aquela cena, de entre várias cogitações, sobressaia uma: caramba! O Estado a processar-se a si mesmo.

Nas eleições autárquicas de 2016, o presidente do MPD e Primeiro-ministro Ulisses Correia e Silva, aproveitando da sua popularidade e do ambiente político favorável fruto da vitória esmagadora que tivera nas eleições legislativas em março do mesmo ano, liderou a campanha de uma forma fulminante, aparecendo lado a lado dos seus candidatos em todos os municípios do país, nos outdoors, spots publicitários e nas ações de terreno, sob o slogan “djuntu nos é mas forti”. Esta estratégia de Marketing político rendeu frutos para si e o seu partido, visto que o MPD ganhou de forma convincente as eleições em 19 dos 22 municípios. O novel Primeiro-ministro prometeu governar próximo às autarquias, construindo um governo “amigo e parceiro do poder local”, lema esse que lhe rendeu aplausos calorosos, inclusive dos autarcas minoritários do partido da oposição (PAICV).

Contudo, enquanto os autarcas aplaudiram a “amizade” anunciada, alguns críticos viram nesse discurso o prenúncio de uma eventual retração da autonomia política e financeira dos municípios, face à “governamentalização” do exercício do poder local, a fortalecer-se com base numa relação paternalista entre governo e Câmaras municipais. Isto porque, argumentam, se o relacionamento entre os órgãos municipais e o governo central passasse a depender-se da “boa vontade” ou de uma pretensa amizade de um “governo amigo”, e não do primado da lei, o que se esperava era claramente uma certa “menorização” da figura do “líder” local e o enfraquecimento do papel das Câmaras Municipais enquanto instituições políticas autónomas. Substituir os estatutos dos municípios, a lei de financiamento municipal e outros institutos jurídicos que regulam o exercício do poder local por uma pretensa amizade, só podia augurar maus sinais para o fortalecimento da democracia e desenvolvimento local. Por que razão sujeitar o relacionamento governo-autarquias a hipotéticas “amizades” e declarações de amor, e a jogos político-partidários, e não estritamente às normas institucionais constitucionalmente sancionadas?

O relacionamento amistoso, entretanto, ambíguo, entre o poder central e local em Cabo Verde, onde táticas político-partidária se confundem com regras institucionais, cristalizou-se na operacionalização do Programa de Requalificação, Reabilitação e Acessibilidade (PRRA). Em meados de 2017, o governo desenhou e deu início à implementação do PRRA, um programa inovador, contudo inquietante, na medida em que se confundia os papeis dos atores envolvidos: o governo e os municípios. O governo pensou o PRRA, mobilizou financiamentos e delegou a implementação dos projetos às Câmaras Municipais. Aparentemente este mecanismo colaborativo entre os dois níveis de governo seria normal, e é de se encorajar no quadro da governança pública. Contudo, o que provoca inquietação, foi o facto de as Câmaras municipais terem de ajustar os seus planos de atividades quase que exclusivamente a um único programa do governo, PRRA, abdicando-se, em grande medida, da sua criatividade e inovação governativa, de geração de ideias, projetos, e de mobilização de recursos para impulsionar o desenvolvimento dos seus municípios, defendendo e exercendo desse modo a sua autonomia política e financeira.

E as obras do PRRA executadas nos municípios, são realizações do governo ou das Câmaras municipais? Pois, como alguém comentou, as manobras da assunção da “paternidade” dessas obras são deveras intrigantes. O ato público de inauguração de uma obra do PRRA, seja de que dimensão ou qualidade for, é sempre palco para o ilustre sr. Primeiro-ministro e comitiva, ou um ilustre ministro e comitiva desfilarem-se e sentirem-se agraciados pelo povo. A inauguração é deveras um momento de comemoração e de show off. Nada a opor-se. Afinal de contas, são obras financiadas pelo governo, e quem financia deve ser o convidado de honra para estar com povo beneficiário. Tudo isso é perfeitamente compreensível. Entretanto, as inaugurações, apesar de desejadas, nem sempre são momentos de festejos para todos, em igual medida. Pois, aqui também amizade determina a distribuição dos convites.  

Assiste-se várias vezes a cenas caricatas em que, o ato de inauguração de uma obra pública, num “município amigo”, a ser chefiado por um membro do governo, o presidente da Câmara e toda a comitiva são sempre convidados em tempo e hora para estarem presentes. Pois, assim deve ser porque são os “amigos” que se organizam para juntos mostrarem obras. Verifica-se a mesma prática em relação à inauguração das obras do PRRA realizadas pelas Câmaras “amigas do governo”. Contudo, quando se trata num município “não amigo”, onde os autarcas são da oposição, a situação é bem diferente. Estes, ou não são convidados para estarem presentes nos atos de inauguração, ou são convidados tardiamente para serem meros telespetadores, sem direito a discursos, quanto menos verem os seus nomes nas placas “… inaugurado pelo Dr.…”. Pelo contrário, num “município amigo”, a placa exibe os nomes do ilustre membro do governo e do Sr. presidente da Câmara para que os presentes possam ver com os seus próprios olhos que os amigos estão a trabalhar. Num município onde o “inimigo” governa, a placa exibe apenas o nome do governante, passando a ideia de que “nós estamos a trabalhar” e eles não. Pois, é importante mostrar quem está a trabalhar, e quem deve continuar a merecer a confiança para continuar a trabalhar. 

Até 2020, o discurso da amizade vincou e prevaleceu-se. Contudo, a queda de algumas lideranças camarárias “amigas” do governo nas eleições autárquicas de 2020, forçou a mudança desse discurso, não só na sua “forma”, como também no “conteúdo”. Ataques e contra-ataques entre o governo e algumas câmaras municipais, sobretudo a da Praia, tornaram-se assuntos recorrentes na esfera política cabo-verdiana. De repente foi desencadeada uma onda de auditorias e ações judiciais visando algumas Câmaras, com contornos pouco claros, levando muitos a questionarem o pilar amizade em que se sustentava as relações entre as autarquias e o governo central. Mais tarde, com a vitória retumbante do PAICV nas eleições autárquicas de 2024, o “governo amigo dos municípios” desvaneceu-se e o pilar da amizade quase que se desmoronou por completo. Prova disso, é o posicionamento de uma deputada, que no calor de um debate no parlamento afirma que “os presidentes de câmaras devem trabalhar para mostrar trabalho, e não esperarem pelo governo”. Esta afirmação mereceu-lhe vivos aplausos dos colegas de bancada, não pelo mérito do seu conteúdo, mas sim pelo seu destinatário. Pois, novos contextos, novas verdades, e novos discursos!

A tentativa de fazer a governação local a depender-se de táticas políticas paternalistas e oportunistas, onde impera o sentimento de vingança de um partido que ganha ou perde as eleições, contribui única e exclusivamente para o menosprezo dos órgãos do poder local, relegados à periferia do poder a uma situação de dependência e de mendicância permanente, e sem capacidades para responder às demandas impostas pelos munícipes e promover um verdadeiro desenvolvimento sustentável, de baixo para cima nos seus territórios. E a pergunta que nos deve inquietar a todos é: por que razão os órgãos de governação local, estatutariamente independentes, com os seus líderes democraticamente eleitos, mesmo que seja pela diferença de 1 voto, aceitam esse destrato institucional?

E nesse jogo de “nós vs. eles”, da tentativa permanente de aniquilamento político do outro, quer seja o “outro” um fulano ou uma instituição como é o caso em análise, a pergunta que fica é “quem ganha?” Não os municípios, e nem os munícipes. Quando pessoas e figuras políticas que representam uma instituição, e governam em nome do Estado, e em Cabo Verde o Estado é Uno, não conseguem dialogar e acordarem-se sobre assuntos importantes do próprio Estado, prover o bem comum e resolver de forma eficiente os problemas coletivos, como são o saneamento, a habitação, os transportes, etc., que confiança elas inspiram no cidadão comum? Que valores transmitem aos jovens e futuros governantes?

Concluindo, os cidadãos elegem os seus representantes que, eventualmente formam o governo central, assim como os seus governantes e representantes locais.  Se assim o fazem, sabem também distinguir os seus trabalhos, reconhecer, premiar e castigá-los na hora de fazer o balanço.  Portanto, vale a pena o “jogo da amizade” para satisfazer interesses políticos particulares no relacionamento governo municípios? E a prevalecer esse jogo, VALE A PENA O MUNICIPALISMO EM CABO VERDE?

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