O caso dos desaparecimentos de pessoas. E assim começa a xenofobia…
Ponto de Vista

O caso dos desaparecimentos de pessoas. E assim começa a xenofobia…

Coincidentemente estava eu a chegar em casa com os olhos postos no meu tablet a ver um vídeo que um amigo meu enviou-me sobre o alegado “flagrante” a um grupo de três chineses na Achadinha a “raptar crianças” quando abri a TV e ainda fui a tempo de ver o depoimento da sua Eminência o Cardeal Dom Arlindo Furtado e a reportagem de Valdemar Pires sobre o caso referido.

Há vários dias já que venho ouvindo todo o tipo de rumores e teorias sobre os casos, já são cinco desparecidos, quatro desses sendo crianças, em pouco mais de seis meses se não estou em erro.

A reportagem do Valdemar que esteve muito bem, diga-se de passagem, veio a confirmar um fenômeno para o qual venho chamando a atenção no meu circulo de amizades e debates, para uma perigosa propensão ao caminho fácil e irresponsável de uma população assustada e confusa da culpabilização do “outro” e que muitas vezes é uma receita explosiva para o xenofobismo.

Desta feita, os “suspeitos do costume”, “Mandjakus e “Badiús” foram preteridos a favor dos “chineses”. Brincadeiras à parte, pois o tema é sério, desde uns tempos para cá que “tudo passou a ser culpa dos chineses. Tudo porque há alguns meses atrás alguns membros dessa comunidade foram pegos a “furtar” umas quantas cabras.

E quase todos os dias circulam boatos e pretensas denúncias sobre chineses que tentam burlar as autoridades fiscalizadoras na venda de alimentos ou outros artigos de ou notícias, como a última de apreensão de máquinas de jogos introduzidos ilegalmente no país por… chineses.

Sem querer defender e nem acusar ninguém, a minha preocupação tem a ver com um padrão que evidencia um certo descontrole coletivo da população e que pode vir a originar uma grande tragédia ainda com consequências imprevisíveis, uma receita perigosa para a xenofobia!

Já imaginaram se aquele aglomerado de pessoas que estavam no local ontem a cercar o carro do alegado “suspeito” partisse para ignorância maior e ferisse o visado?! Estaríamos neste momento, certamente, à beira de um provável incidente diplomático grave com uma das grandes potencias do mundo e dos nossos maiores parceiros de sempre. O mesmo se aplica em relação a outras comunidades estrangeiras nas Ilhas. E justo nós, um país de emigrantes e que deveria saber mais do que ninguém como é viver longe de casa e de como é importante sermos bem-recebidos “na casa dos outros”…

Um “suspeito”, como viria a mostrar a referida reportagem de Valdemar Pires, cujos únicos crimes cometidos foi, primeiro, ser chinês e depois ter o seu carro avariado no meio da estrada… Esteve bem o jornalista a esclarecer o fato e a pôr alguma água na fervura. Esteve melhor ainda ao não cair na fácil tentação de dar voz e palavra a uma multidão embriagada numa histeria coletiva, evitando males maiores.

Tão bem não esteve a sua eminência o Cardeal Dom Arlindo Furtado, figura que muito aprecio e admiro, que sem querer poderá ter ajudado a manter os holofotes sobre as comunidades estrangeiras. É claro que o Cardeal não o disse por estas palavras, mas quando alerta para o cuidado que devem ter os pais (aqui bem) e o sucede com um exercício sobre possíveis razões com base em exemplos de “países” onde crianças serão raptadas “para tráfico de órgãos” e outros motivos, incluindo para uso em “rituais de feitiçaria” não estaria ele, inadvertidamente, creio, a reforçar a referida tese?

Longe de mim querer dar respostas, que nem a polícia tem neste momento, sobre o que poderá ter acontecido com essas pobres crianças e à mãe também desaparecida. Porém, os crimes mais horrendos que tenho visto e ouvido por aqui foram cometidos pelos próprios cabo-verdianos. Ou já ninguém se lembra do Zé Catana ou do jovem “serial killer” na ilha do Sal, em 2007, se não estou em erro, história que cobri enquanto jornalista do A Semana, que matou duas crianças e que possivelmente teria feito mais duas vítimas em outras ilhas onde passou?

E os dois jovens que violaram e assassinaram brutalmente as duas turistas italianas, eram estrangeiros?

Porém, verdade seja dita, este comportamento quase que generalizado deve-se a alguma ineficácia, não querendo desrespeitar as nossas forças de segurança, da PN e também de outras autoridades do Estado, e do qual se exigia maior prontidão e medidas para acalmar e educar a população sobre que precauções tomar para evitar mais situações idênticas. Basta ver um possível padrão desses desaparecimentos em bairros periféricos onde normalmente estarão mais desprotegidas essas crianças.

Simples medidas que só agora começam a ser tomadas, como divulgação nas redes sociais, na comunicação social e nas ruas das fotos e cartazes dos desparecidos e a disponibilização de um número grátis para denúncia, assim como o cerrar das fronteiras marítimas, áreas e vigília das nossas costas. Como é possível, a julgar pelas notícias, que só agora se terá criado a tal comissão de investigação e só agora se pensa em solicitar apoio de polícias internacionais para ajudar a investigar?

E as ossadas encontradas recentemente numa achada da capital, e que poderá ou não ser chave na resolução de pelo menos um desses mistérios, cuja identidade, se não me engano, ainda não foi divulgada e que só contribui para deixar mais inquietas as pessoas e fomentar as “riolas” que o povo tanto gosta e que só irão prejudicar as investigações.

É chegada a hora de todos os cabo-verdianos se juntarem, não só para rezar pelos desparecidos e famílias, mas também contribuírem como puderem, com seriedade, para que se possam obter as respostas necessárias quanto antes e sossegar todo um país que sofre neste momento. Mais, responsabilidade, mais empatia e respeito sobretudo por essas crianças, mas também pelas mães, pais e familiares que são massacrados a cada falsa denúncia e alarme e mais respeito pela polícia que, para além de desperdiçar recursos e energia nesses casos, perdem tempos preciosos que poderão significar a diferença entre um final feliz e um infindável sofrimento.

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