O caso Amílcar Cabral. Apontamentos críticos a propósito do princípio e do projecto da unidade Guiné-Cabo Verde - Quinta Parte
Ponto de Vista

O caso Amílcar Cabral. Apontamentos críticos a propósito do princípio e do projecto da unidade Guiné-Cabo Verde - Quinta Parte

Como se depreende dos documentos do PAIGC (sobretudo dos emanados do seu III Congresso, de 1977) e dos pareceres de Manuel Duarte e Renato Cardoso sobre esta matéria (publicados postumamente, como já referido, em Cabo-Verdianidade e Africanidade, e Outros Textos, de Manuel Duarte), o modelo da unidade orgânica, o qual, tal como se previa na primeira Constituição de Cabo Verde (de Setembro de 1980), deveria ser aprovado formalmente em consulta popular, permaneceu incerto, acabando por se transformar num tabu, antes de se desmoronar completamente com o golpe de estado de 14 de Novembro de 1980, perpetrado contra Luís Cabral por Nino Vieira, a sequente criação do PAICV (Partido Africano da Independência de Cabo Verde) a 20 de Janeiro de 1981 e o desaparecimento/dissolução/extinção do PAIGC como partido bi-nacional e força política dirigente dos Estados e das sociedades da Guiné-Bissau e de Cabo Verde, ficando o desaparecimento/dissolução/extinção do antigo partido bi-nacional e a transformação do seu ramo insular em partido nacional caboverdiano dotado de todos os recursos, poderes e prerrogativas de força política dirigente da sociedade e do Estado de Cabo Verde que outrora tinham sido outorgados ao antigo PAIGC devidamente ratificados e consagrados pela revisão de Fevereiro de 1981 da Constituição caboverdiana de Setembro de 1980, na mesma sessão legislativa da Assembleia Nacional Popular na qual a mesma Constituição de Setembro de 1980 entrou e se manteve em vigor, ainda que por muito escassas horas.

QUINTA PARTE

V

A EMERGÊNCIA DOS ESTADOS INDEPENDENTES E SOBERANOS DA GUINÉ-BISSAU E DE CABO VERDE E A INAUGURAÇÃO DA FASE PÓS-COLONIAL DA APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA UNIDADE GUINÉ-CABO VERDE - LIDERANÇA POLÍTICO-PARTIDÁRIA BI-NACIONAL E VICISSITUDES PÓS-COLONIAIS DO PROJECTO DE UNIÃO ORGÂNICA DOS DOIS PAÍSES OESTE-AFRICANOS

1. Conquistadas as independências políticas e as soberanias nacionais e internacionais dos Estados da Guiné e de Cabo Verde, inicia-se uma segunda fase no entendimento e na implementação do princípio da unidade Guiné-Cabo Verde por parte dos bi-nacionalistas e patriotas caboverdianos e bissau-guineenses comprometidos com o PAIGC e alcandorados ao poder político no quadro de um regime de partido único bi-nacional.

Institucionalmente inaugurada com a proclamação da República de Cabo Verde, a 5 de Julho de 1975, essa fase indicia-se simbolicamente com o assassinato de Amílcar Cabral (como se referiu, motivado, directa e imediatamente, nas suas origens familiares e na sua identidade cultural  caboverdianas, apesar da sua naturalidade guineense, do seu notável contributo para a libertação do povo da terra onde nasceu e graças a cuja luta heróica ganhou notoriedade internacional, bem como da sua posterior identificação com a comunidade política emergente com a guerra de libertação nacional e que ele próprio denominou e qualificou como nação africana forjada na luta e da consequente emergência da sua bi-nacionalidade política a consubstanciar-se e sintetizar-se em tempos vindouros numa única pátria africana progressista e solidária, a futura e eventualmente denominada República Unida da Guiné e de Cabo Verde (denominação essa constante de um ante-projecto de Constituição de um eventual novo país- a Guiné e Cabo Verde-, lido pelo autor do presente ensaio nos idos fins dos anos setenta, dos seus tempos liceais).   

2. Nessa fase pós-colonial e após os indícios da exigência e da necessidade da aceleração do processo de unificação orgânica dos dois países sinalizados na resolução saída da reunião do Comité Executivo da Luta (CEL) de 25 de Maio de 1975 (isto é, quarenta e um dias antes da proclamação da independência política de Cabo Verde), o princípio da unidade Guiné-Cabo Verde foi sendo remetido a um duplo e dúbio estatuto:

i) De fundamento ideológico e legitimador do PAIGC, doravante jurídico-constitucionalmente instituído pela LOPE (Lei de Organização Política do Estado),  de 5 de Julho de 1975, como força política dirigente da sociedade caboverdiana, isto é, como centro político de um regime autoritário de partido único, estatuto supra-constitucional do PAIGC que fora já  consagrado para a República da Guiné-Bissau na sua  Constituição de 24 de Setembro  de 1973 e  é posteriormente sancionado e relegitimado pelos artigos 3º e 4º da Constituição de Cabo Verde de Setembro de 1980 (a primeira do arquipélago africano independente), os quais passam a regular e tornam extensivo ao Estado esse mesmo estatuto de omnipotência e monopólio político-partidários e são consolidados com novas leis eleitorais que estabelecem a competência exclusiva do  PAIGC  para a apresentação de listas de candidatos a deputados para a Assembleia Nacional Popular (ANP), mesmo quando essas mesmas listas sejam integradas por membros das organizações sociais  e de massas (como a JAAC-CV (organização de massas da juventude), a OMCV (organização de massas das mulheres) ou a UNTC-CS (organização de massas dos trabalhadores) ou por cidadãos independentes (como aconteceu nas eleições legislativas de 1985, nas quais as assembleias cidadãs de apreciação tinham a prerrogativa de retirar nomes e propor novos nomes para as listas partidárias, sendo deste modo e mediante este procedimento que Carlos Veiga, então militante de base do partido único,  pôde integrar as listas do PAICV para o círculo eleitoral da Praia em substituição de Carlos Burgo, dirgente sectorial na cidade da Praia do mesmo partido único, mas não se aceitou a proposta no sentido de Eurico Correia Monteiro também integrar a mesma lista partidária como cidadão independente, presumindo-se que tal reacção teria sido adveniente da circunstância de o mesmo jurista ter sido considerado um crítico do regime político de partido único vigente, demais conotado com a antiga fracção trotskysta do ramo caboverdiano do PAIGC e na altura dos acontecimentos com  os oposicionistas Círculos Cabo-Verdianos para a Democracia -CCPD-, actuantes na clandestinidade tanto no país como em Portugal).  

Sublinhe-se que o estatuto bi-nacional de monopólio político-partidário do PAIGC se apoiou largamente na disseminação da crença, segundo a qual o princípio da unidade Guiné-Cabo Verde seria indiscutível em si mesmo, porque concebido pelo génio singular e insubstituível de Cabral e comprovado na praxis histórica da luta anti-colonial como indispensável e imprescindível para a conquista da independência política e da soberania nacional e internacional  da Guiné-Bissau, mas sobretudo e especialmente para a obtenção das até então impensáveis independência política e soberania nacional e internacional de Cabo Verde, e, assim, para a criação nos dois países de alternativas africanas às dependências colonial e neo-colonial.

ii) De pública profissão de fé no princípio da unidade Guiné-Cabo Verde e no projecto de união orgânica entre os dois países africanos concomitantemente com a ansiosa e pragmática expectativa quanto à sua implementação prática.

No período que se seguiu à proclamação da independência política da Guiné-Bissau a 24 de  Setembro de 1973 e ao seu posterior reconhecimento por parte da ex-potência colonial a 10 de Setembro de 1974, bem como à instituição nas ilhas, em fins de Dezembro de 1974, do Governo de Transição do Estado de Cabo Verde e, depois, à proclamação da independência política e da soberania nacional e internacional plena desse mesmo Estado de Cabo Verde, procedeu-se prioritariamente à edificação ou à reconstituição dos alicerces das instituições nacionais no quadro de um regime de partido único bem assim à adopção de medidas urgentes para a satisfação das necessidades básicas e mais prementes das populações.

Neste contexto social e político, de euforia popular de feição nacionalista-patriótica e democrático-revolucionária dos caboverdianos e do seu engajamento de corpo inteiro na chamada saga heróica da reconstrução nacional do país, a prevista união orgânica entre as Repúblicas irmãs da Guiné-Bissau e de Cabo Verde, embora abordada com alguma veemência retórica reflectida na indisfarçável urgência da sua implementação plasmada no Comunicado do Conselho Executivo da Luta (CEL) do PAIGC, de 25 de Maio de 1975, e apesar de tida como vocação histórica do povo das ilhas no Texto da Proclamação Solene da Independência Política de Cabo Verde lido por Abílio Duarte, a 5 de Julho de 1975, no Estádio da Várzea da cidade da Praia, foi sendo sucessivamente adiada ou, até, postergada para um futuro cada vez mais nebuloso e longínquo.

A extensão para as condições dos tempos pós-coloniais da aparente sacralização do princípio da unidade Guiné-Cabo Verde por parte de Amílcar Cabral e da sua intolerante dogmatização política por parte dos seus émulos e seguidores partidários demonstrar-se-ia como diferente nos seus efeitos político-estratégicos e foi, por isso, vista como dúbia, senão intolerável, do ponto de vista social e político-cultural, por parte de franjas importantes da sociedade caboverdiana, sobretudo as emigradas, fortemente assediadas pelas forças remanescentes da UPICV e da UDC, parcialmente reorganizadas no âmbito da UCID (União Cabo-Verdiana Independente e Democrática), fundada na Holanda a 13 de Maio de 1978 e dirigida, numa sua primeira fase, pelo último governador colonial, nomeado pelo General  Spínola, o caboverdiano engenheiro Sérgio Duarte Fonseca. Argumentava-se tanto nos bastidores do nacionalismo revolucionário caboverdiano, como no seio da oposição ilegalizada, que outras correlações de forças socio-políticas e novas esperanças e perspectivas vieram abrir-se no processo da construção do progresso e da indagação dos caminhos para um desenvolvimento efectivo e auto-sustentado, sobretudo no que se refere a Cabo Verde.

Na verdade, puderam fazer a sua irrupção, relativamente exitosa porque coroada de algum sucesso durante um certo período de tempo, na história do povo das ilhas novos instrumentos e procedimentos de legitimação política e novos processos de engendramento do crescimento económico-social com vista ao desenvolvimento geral do país, com destaque para as retóricas da edificação no solo das ilhas de uma economia nacional independente resultantes da estratégia político-económica deliberada pelo único Congresso do PAIGC realizado no período posterior à independência política das ilhas sahelianas, o célebre III Congresso, de 1977, para ser aplicada nos dois países governados por esse partido bi-nacional.

Em Cabo Verde, as retóricas acima referidas e a estratégia político-económica na qual se sustentavam seriam objecto de tentativas várias de implementação por via da construção e/ou melhoria de algumas infra-estruturas rodoviárias, portuárias e aeroportuárias, do estabelecimento de empresas públicas nos domínios do controle do comércio externo e do abastecimento das populações com produtos básicos, dos transportes marítimos e rodoviários, das telecomunicações, das indústrias têxteis e alimentares (com vista sobretudo à substituição das importações). Todavia, a sua implementação aliava-se sempre à prática da reciclagem da ajuda externa e das remessas de emigrantes (tida então, nas palavras de José Carlos dos Anjos, como a expressão máxima da sagacidade dos dirigentes político-partidários e governamentais do país) e, sublinhe-se, seria fortemente limitada por uma ambiência geral marcada pela recorrência de secas cíclicas e pela consequente necessidade do recurso permanente a programas de emergência financiados pela comunidade internacional para a salvação colectiva, a par de alguns tentâmes no sentido da melhor exploração da posição geo-económica do país, tentâmes esses que, mais tarde, se concretizariam nas políticas do desenvolvimento tripolar do país-arquipélago centrado  na cidade da Praia e nas ilhas de S. Vicente e do Sal  e culminariam, já nos fins dos anos oitenta do século XX (em 1988) e ainda em plena vigência do regime de partido único, na liberalização da parte económica da Constituição Política da República, de Setembro/Fevereiro  de 1980, com a abertura ao capital privado e ao investimento externo de sectores estratégicos da economia até então absolutamente reservados ao Estado  e na adopção da política de extroversão económica do país.

Cabe destacar neste contexto o mais imponente e sacralizado de todos os mecanismos político-institucionais nascidos com o 5 de Julho de 1975: um Estado-nação, o Estado nacional dos caboverdianos, jurídico-constitucional e formalmente assente na vontade e na soberania populares  e na unidade dos órgãos do poder do Estado legitimamente constituídos.

Sem prejuízo da reiteração da sua profissão de fé no princípio cabralista de unidade Guiné-Cabo Verde e no projecto paigcista pós-colonial de união orgânica entre os dois países, o jurista Manuel Duarte, depois Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, na altura denominado Conselho Nacional de Justiça, encarregar-se-ia de fundamentar em estudo jurídico-político (agora constante do livro póstumo Cabo-Verdianidade e Africanidade, e Outros Textos) as perspectivas e os constrangimentos inerentes à associação política entre dois Estados-nação culturalmente distintos e geograficamente distantes, para mais constituídos em entidades independentes e soberanas em tempos históricos diferentes, ainda que assentes numa mesma génese libertária e lideradas pelo mesmo partido-movimento de libertação bi-nacional, agora no poder em toda a extensão dos dois países,  e inseridos numa mesma época de ruptura anti-colonial, aliás, marcada por algum atraso em relação aos demais países vizinhos.

Já no Texto da Proclamação Solene da Independência de Cabo Verde, e não obstante aí se pugnar por “um destino africano, livremente escolhido pelo povo de Cabo Verde” bem assim, e tal como anteriormente referido, pela “sua vocação histórica para estabelecer”, após consulta popular, “laços de unidade com a República irmã da Guiné-Bissau”, o povo de Cabo Verde é exaltado como nação dotada de identidade cultural própria, forjada durante um processo histórico multissecular marcado por múltiplos actos de resistência e por revoltas de diversa índole, incluindo a cogitada mas malograda hipótese de enveredamento pela luta político-armada no arquipélago afro-atlântico.

Essa óptica de  auscultação diferenciada dos fenómenos societários nos dois países, tradicional e recorrente nas análises de Amílcar Cabral, ficou reforçada nas resoluções emanadas do III Congresso do PAIGC, de 1977, o qual se encarregaria de inequivocamente ratificar e politicamente consagrar os subsídios teóricos fornecidos por Manuel Duarte (e também por Renato Cardoso, como se verifica num dos textos da sua co-autoria publicado no livro Cabo-Verdianidade e Africanidade, e Outros Textos).

Nesses documentos, o PAIGC afirma ter adaptado a chamada concepção dinâmica do princípio da unidade Guiné/Cabo Verde às condições pós-coloniais dos dois países levados à independência política sob a sua liderança e sob  o signo e a consigna da unidade e luta de guineenses e  caboverdianos. Nos termos dessa mesma  concepção dinâmica do princípio da unidade Guiné/Cabo Verde, os dois povos passaram a ser inequivocamente considerados como constituídos em Estados-nação politicamente independentes e soberanos e culturalmente distintos, ainda que irmanados pela história, pelo sofrimento e pela busca de um destino africano partilhado. A par do afastamento geográfico, do reconhecido défice de conhecimento recíproco entre os dois povos (sobretudo do caboverdiano das ilhas em relação ao bissau-guineense, num tempo em que se desconhecia de todo a emigração bissau-guineense em direcção às ilhas de Cabo Verde, como viria a ocorrer a partir dos anos oitenta do século XX e conheceria uma grande  aceleração a partir  dos fins dos anos noventa desse mesmo século), da praticamente nula integração económica e socio-cultural entre os dois países, passaram tais considerandos nacionais, de fortes implicações soberanistas, a ser entendidos como pressupostos indeclináveis para a indagação e a problematização pós-coloniais da questão da unidade Guiné-Cabo Verde e para a configuração do futuro rosto das instituições conjuntas que eventualmente pudessem ser estabelecidas entre os dois países.

Ainda que pugnando, do ponto de vista da retórica político-ideológica, pelo contínuo engajamento dos dois povos no processo de edificação de uma futura pátria africana una e progressista num presente histórico marcado por um quadro político fraterno e solidário, primacialmente consubstanciado no autoritarismo revolucionário de um partido-movimento de libertação bi-nacional, o PAIGC, erigido em partido único nos dois países oeste-africanos, ambos alegadamente  embrenhados na heróica epopeia pós-colonial da reconstrução nacional, a qual é ademais inserida como uma componente essencial na construção de um modelo socializante  de sociedade bem assim de um regime e de um sistema políticos de democracia nacional revolucionária, consideravam os teóricos do PAIGC que o processo de unificação orgânica dos dois países deveria ser gradual, progressivo e devidamente alicerçado na construção das indispensáveis bases económicas e técnico-materiais com vista ao seu cabal e irreversível sucesso. Estas bases económicas e técnico-materiais eram assim consideradas como indispensáveis para uma paulatina e segura integração económica entre os dois países bem como para a criação das condições para uma maior aproximação humana e um maior inter-conhecimento entre os dois povos, processo esse que deveria ser acelerado mediante um crescente e necessário intercâmbio, inclusive cultural, entre os mesmos. Seriam essas condições objectivas e subjectivas que deveriam sedimentar o auto-convencimento dos cidadãos e das populações dos dois países do bem fundado e dos benefícios práticos advenientes da unidade na sua futura configuração numa união orgânica, considerada a forma privilegiada da ulterior integração política dos dois países mas sem que se tivesse procedido a  uma qualquer caracterização política e jurídico-constitucional dessa mesma união orgânica.  

Sintetizando, ajuizava-se que a união orgânica dos dois países que desse gradual processo de aproximação e de integração pudesse emergir só seria possível a médio e/ou longo prazo.

3. De grande relevância foi outrossim a paulatina autonomização dos ramos nacionais do PAIGC, tornada especialmente irreversível com a implantação desse partido no período pós-25 de Abril de 1974  em todo o território insular caboverdiano  e com a consolidação dessa implantação no período pós-colonial com a sua transformação em movimento de libertação no poder bi-nacional, por isso dotado dos recursos materiais, humanos e simbólicos que lhe advinham do seu estatuto político-jurídico e factual de força política dirigente da sociedade e do Estado  enquanto partido único.

Tal facto acarretou duas consequências de monta:

a) O aumento da propensão soberanista dos ramos nacionais do PAIGC e, consequentemente, dos Estados-nação que dirigiam, com o progressivo esvaziamento dos órgãos supra-nacionais do PAIGC (Conselho Superior de Luta, Comité Executivo de Luta, Comissão Permanente,  Secretário-Geral, Secretário-Geral Adjunto e Secretariado Executivo) de efectiva capacidade decisória no plano supra-nacional, mesmo com a formal  e nominal manutenção das suas atribuições e competências estatutárias. Dessa factualidade resultou o correlativo enfraquecimento das principais estruturas institucionais de salvaguarda e de garantia do princípio da unidade num quadro formal de regime de partido único bi-nacional. Sintoma dessa tendência foi a denominação PAIGC/CV, corrente no período pós-abertura de 1990, para (des)qualificar o ramo caboverdiano do Partido Africano da Independência da Guiné e de Cabo Verde. Ainda que essa mesma denominação pudesse também ser entendida como um estratagema de combate ao nacionalismo revolucionário integrante da ideologia e da prática políticas do PAIGC, considerado pelos inimigos e adversários tradicionais do cabralismo como estando ainda presente na teoria e na praxis do PAICV, partido que, aliás, após a cisão com o ramo bissau-guineense do PAIGC, se considerava e se proclamava como herdeiro caboverdiano legítimo e credenciado do passado de luta e do legado político-ideológico do PAIGC e do pensamento doutrinário de Amílcar Cabral.

b) A progressiva implantação dos combatentes caboverdianos (chamados, na altura, Grupo de Conacri, e, mais tarde e impropriamente, Grupo de Cuba pelos seus rivais oriundos da luta clandestina anti-colonial levada a cabo no solo das ilhas e em Portugal) e o aprofundamento dos seus conhecimentos em relação às mentalidades e idiossincrasias do povo das ilhas, do qual viveu fisicamente afastado durante a luta político-militar e diplomática levada a cabo a partir da Guiné-Bissau,  da Guiné-Conacri e de vários lugares exteriores ao Império Colonial Português.

Como assinala Humberto Cardoso no livro O Partido Único em Cabo Verde - Um Assalto à Esperança, esses conhecimentos demonstraram-se como fundamentais nas estratégias de busca de renovação no terreno restrito das ilhas, sobretudo no período pós-14 de Novembro de 1980, de uma controversa legitimidade histórica, eventualmente adquirida no campo da luta político-militar nas terras-longe das duas Guinés, e sujeita a rápidos processos de desgaste nas condições autoritárias, ainda que assaz mitigadas, do exercício do poder político num regime de partido único. A concretização dessas estratégias de legitimação política foi sobremaneira dificultada devido não só às divergências intra-partidárias e às sequentes purgas e dissidências trotskysta, maoísta  e outras dos antigos militantes da clandestinidade (com destaque para a de Jorge Querido, logo no imediato pós-25 de Abril, e a trotskysta de Março/Abril de 1979, sendo que as eventuais dissidências maoístas ocorreram de forma individualizada e de forma paulatina e durante um longo período de tempo), como também ao seu estabelecimento e à sua indagação num país muito aberto ao Ocidente político e cultural por mor da sua identidade crioula e à localização geográfica peri-africana e afro-atlântica e ao seu modelo democrático pluralista e dele economicamente muito dependente, em razão das comunidades caboverdianas radicadas em muitos países dessa mesma área cultural e geo-estratégica.

Na nossa opinião, acrescia sobremaneira no sentido da sua legitimação aos olhos das populações caboverdianas, o engajamento dos combatentes da liberdade da Pátria, agora como dirigentes e representantes do Estado independente e soberano caboverdiano, na luta pela captação de recursos externos e sua posterior reciclagem e redistribuição internas com o fito da sobrevivência do país bem a par da melhoria das condições de vida das suas camadas mais humildes e vulneráveis, nos planos da nutrição, da saúde, da educação, da cultura e, mais genericamente, da dignidade da pessoa humana.

Neste quadro e para além da função de legitimação acima referida, parece incontornável para a compreensão da subsistência no período pós-independência das instituições incorporadoras do projecto da unidade Guiné/Cabo Verde, o papel que implicou a existência na Guiné-Bissau de uma comunidade de origem caboverdiana e de um regime político, o de Luís Cabral, o qual parecia rever-se completamente no autoritarismo bi-nacionalista revolucionário e no princípio da unidade Guiné-Cabo Verde, pois que neles se inspirava, se renovava e procurava legitimar-se quase que quotidianamente. A unidade Guiné-Cabo Verde parecia significar no plano interno da sociedade bissau-guineense a unidade política de teor nacionalista e feições democrático-revolucionárias  entre todos os seus grupos étnicos negro-africanos, crioulos e outros (por exemplo, os chamados sirianos, de integrantes da comunidade siro-libanesa), sob uma incontornável hegemonia social da minoria étnico-nacional crioula, nativa da Guiné e integrante dos chamados destribalizados mas maioritariamente de origem caboverdiana. Teria sido uma fracção dessa minoria étnico-nacional crioula de origem caboverdiana a principal interessada na manutenção do princípio da unidade Guiné-Cabo Verde e na sua maior institucionalização nas condições pós-coloniais de existência do país africano continental-insular.

4. Neste contexto pós-colonial, que também era de indagação e de busca de caminhos, a programada unidade orgânica entre os dois países foi sendo reiteradamente proclamada, mas sucessivamente adiada.

No plano das relações entre os dois países, a implementação do princípio da unidade Guiné/Cabo Verde ficou-se pela realização de escassas e periclitantes medidas, a maioria com forte carácter simbólico e muito distantes de uma qualquer união orgânica entre os dois países. 

São os casos das seguintes medidas:

a) A existência formal do PAIGC como única organização política bi-nacional comum aos dois países e, consequente e correlativamente, uma  cada vez mais difusa supra-nacionalidade do mesmo partido-movimento de libertação bi-nacional. Todavia, eram por demais reais o funcionamento prático e a existência efectiva dos ramos nacionais do PAIGC em cada um dos dois Estados-nações pois que erigido em movimento de libertação bi-nacional no poder, considerado jurídico-constitucionalmente como a principal instituição de cada uma das Repúblicas irmãs enquanto partido único dotado de recursos humanos, materiais e financeiros e de poderes, atributos e competências supra-constitucionais de monopólio do poder político em ambos e em cada um dois países independentes e soberanos e, asim, transfigurado de forma eufemística na figura jurídico-constitucional de força  política dirigente do Estado e da sociedade.   

 b) O estatuto de igualdade civil e política dos cidadãos dos dois países numa época em que eram raros os guineenses que frequentavam as ilhas caboverdianas e nelas residiam, mas era consistente e influente em vários domínios o papel da comunidade caboverdiana ou de origem caboverdiana radicada na Guiné-Bissau.

c) A institucionalização de algumas estruturas estatais bi-nacionais, como o Conselho da Unidade (de natureza inter-parlamentar) e a Conferência Intergovernamental, a Comissão de Defesa e Segurança, de carácter partidário, supra-estadual e supra-nacional e que superintendia nas questões das forças armadas nominalmente comuns, as FARP (Forças Armadas Revolucionárias do Povo), e outras formas assaz fluídas de cooperação intergovernamental, notoriamente distantes de formas mais avançadas e convincentes de integração económica ou, ainda menos, política, isto é, de união orgânica entre os dois países.

 

d) A criação de algumas empresas mistas, sobretudo no domínio dos transportes marítimos, como foi o caso da NAGUICAVE.

e) A adopção no Primeiro Colóquio Linguístico sobre a Escrita do Crioulo (mais conhecido e celebrizado como Colóquio do Mindelo de 1979) de um alfabeto de base fonético-fonológica fortemente influenciado pelo Alfabeto Fonético Africano e que, como constatado na altura por Mário Pinto de Andrade, deveria ter em conta, e teve efectivamente em conta, as flagrantes semelhanças linguísticas entre os crioulos de Cabo Verde e da Guiné-Bissau e a premência da adopção de normas comuns para a escrita de ambos.

Como se depreende dos documentos do PAIGC (sobretudo dos emanados do seu III Congresso, de 1977) e dos pareceres de Manuel Duarte e Renato Cardoso sobre esta matéria (publicados postumamente, como já referido, em Cabo-Verdianidade e Africanidade, e Outros Textos, de Manuel Duarte), o modelo da unidade orgânica, o qual, tal como se previa na primeira Constituição de Cabo Verde (de Setembro de 1980), deveria ser aprovado formalmente em consulta popular, permaneceu incerto, acabando por se transformar num tabu, antes de se desmoronar completamente com o golpe de estado de 14 de Novembro de 1980, perpetrado contra Luís Cabral por Nino Vieira, a sequente criação do PAICV (Partido Africano da Independência de Cabo Verde) a 20 de Janeiro de 1981 e o desaparecimento/dissolução/extinção do PAIGC como partido bi-nacional e força política dirigente dos Estados e das sociedades da Guiné-Bissau e de Cabo Verde, ficando o desaparecimento/dissolução/extinção do antigo partido bi-nacional e a transformação do seu ramo insular em partido nacional caboverdiano dotado de todos os recursos, poderes e prerrogativas de força política dirigente da sociedade e do Estado de Cabo Verde que outrora tinham sido outorgados ao antigo PAIGC devidamente ratificados e consagrados pela revisão de Fevereiro de 1981 da Constituição caboverdiana de Setembro de 1980, na mesma sessão legislativa da Assembleia Nacional Popular na qual a mesma Constituição de Setembro de 1980 entrou e se manteve em vigor, ainda que por muito escassas horas.

De todo o modo e independentemente da subsistência da boa-fé dos protagonistas bissau-guineenses e caboverdianos, em especial na sequência dos eventos relacionados com o assassinato de Amílcar Cabral e com o golpe de Estado de 14 de Novembro de 1980, liderado por João Bernardo (Nino) Vieira, constata-se com alguma clareza que a eventual união orgânica entre a Guiné-Bissau e Cabo Verde foi sempre rodeada de muitos mistérios e de algumas mistificações, a que não escaparam nem os mais consistentes teóricos, nem tão pouco os mais altos dirigentes políticos do PAIGC.

 

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