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Manuais escolares de 9º a 12º anos: entre utopia e realidade
Ponto de Vista

Manuais escolares de 9º a 12º anos: entre utopia e realidade

Muitos alunos que chegam hoje às universidades, provavelmente não tiveram contato com qualquer manual escolar há, pelo menos, três anos. Daí não se pode, do meu ponto de vista, falar de uma educação de qualidade, quando não se pretende promover uma educação que passe pela preparação do aluno, no sentido de compreender a mudança que ocorre do ensino secundário para universitário e, principalmente, quando não se lhe fornece argumentos para se mobilizar no sentido de procurar melhores manuais, melhores livros, assim como perceber de forma diferente a importância que os livros têm para os conteúdos das suas novas unidades curriculares e nos quais se espera que desenvolva as suas capacidades de pensamento crítico. Não pode ser por acaso que os professores universitários enfrentam várias resistências da parte dos alunos que não estão habituados a ler e, consequentemente, a produzir textos. Um aluno que passa três anos sem ler um manual escolar muito dificilmente desenvolverá hábito de leitura e capacidade para suscitar a reflexão crítica, por mais que o professor queira ser o principal mediador curricular.

Após a minha aposentação em maio passado, pensava em passar algum tempo longe das lides da educação e entrar em um período de letargia. Entretanto, as mais de três décadas de ligação  estabelecidas com os alunos e colegas de várias escolas públicas e de diferentes níveis de ensino desde básico, a secundário e superior e o compromisso não só do exercício da profissão, mas também como encarregado de educação fizeram-me agarrar hoje, de novo,  no teclado para deixar expresso, nessas breves linhas, uma pequena reflexão sobre o arranque do novo ano letivo, das suas peripécias mas, sobretudo, para manifestar o meu estado de alma sobre a disponibilização atempada de manuais escolares, fato inédito na atual governação.

Em sete anos deste governo, parece ser a primeira vez que os manuais escolares são disponibilizados com a desejada antecedência, fato que me enche de júbilo e expresso, aqui, publicamente, a minha conciliação, se atendermos que os recursos mais privilegiados no processo ensino-aprendizagem são, de fato, os manuais escolares.

Entrementes, sinto um misto de melancolia e desilusão quando percebo que os manuais do 9º, 10º, 11º e 12º ano não se encontram disponíveis. Situação que, de certa, irá prevalecer, como habitualmente, até ao final do ano letivo.

A este propósito, recordo-me de, em 2020, a então primeira Dama de Cabo Verde, imbuída de um elevado sentido de responsabilidade que sempre a caraterizou, ter declarada que as questões dos manuais “nunca mais se resolvem” e os autores políticos “não estão a perceber as necessidades que os jovens têm vindo a ter” ao longo do tempo e que “acentuaram muito mais” (Inforpress, 2020).

Ora, após a reação da Primeira Dama eis que apareceu, no dia 19 de novembro de 2020, em nome do Governo, o então Secretário de Estado Adjunto para a Educação, hoje, ministro da Educação, em uma conferência de Imprensa, na qual esclarecia que “a não existência de manuais do 9º ao 12º ano de escolaridade se deve à reforma curricular do ensino secundário que está por fazer, prometendo estes materiais escolares para o próximo ano”. O Secretário de Estado tinha ido mais longe ainda quando afirmou que  “os referidos manuais vão ser produzidos para o ano lectivo 2021/2022, na sequência da reforma curricular que se vai efectivar”. Entrementes, a nossa curta memória não nos fez recordar que estamos no ano letivo 2022/23 e que, no ano letivo 2021/22, o mesmo Secretário de Estado que fora promovido a Ministro da pasta não deu um pio a cerca da matéria.

A tudo isso, não podemos esquecer ainda que, em 2019, vivemos um período de pandemia em que os alunos tiveram de ficar isolados físico e socialmente em casa, com profundas mudanças na realidade educacional e, uma boa parte deles, não tiveram acesso às aulas, nem manuais para estudarem. Apenas receberam a promessa da distribuição dos televisores, das rádios e até de pilhas. Sobre isso não vou entrar em detalhes. Mas, a verdade é que nenhum estudo foi feito para se apurar os prejuízos académicos resultantes do impacto desse isolamento nas crianças, particularmente as mais vulneráveis como por exemplo meninas em situação de risco por gestação precoce, crianças que dependiam da alimentação nas cantinas escolares ou os com necessidades educativas especiais. Tudo voltou normal ao novo normal. E os resultados estão à vista dos mais atentos. Entretanto, deixo essa matéria para uma posterior análise para não fugir ao essencial de hoje.

Nesta minha pequena reflexão queria apenas lembrar ao Sr. Ministro da Educação e ao próprio Governo do meu País, que a qualidade de ensino em nenhuma parte do mundo, que eu saiba, se edificou na ausência de manuais escolares. Os nossos governantes devem ter a memória que desde os tempos coloniais a escolha do manual escolar sempre foi uma imposição, de forma obrigatória, considerando que se trata de um elemento situado entre o professor e os serviços centrais do Ministério da Educação.

Não tenho memória de nenhum professor meu que tenha iniciado as aulas sem o manual escolar. Estes chegavam, provavelmente, nos meses de maio e junho, pelos correios, ou em mãos pelas promotoras das editoras e eram distribuídos aos docentes.

Já os encarregados de educação começavam a tratar dos manuais dos filhos logo que terminasse um ano letivo. Eram feitos empréstimos aos alunos que tinham transitados de ano, compras ou qualquer outra forma de aquisição.

Todos nós da década de 60, 70 temos a recordação de, nos primeiros dias aulas, termos já manipulados os nossos manuais escolares, termos admirados as figuras, os esquemas, os diagramas e outras formas de expressões relevantes do ponto de vista comunicativo para o mundo das crianças. As crianças que iam para o Ciclo preparatório até já tinham contatos com os livros de francês. No meu caso o “Je Commence” que lia em português, dada à minha ignorância na altura e vontade de aprender as novas lições e nova língua.

Sr. Ministro, senhores governantes;

Os manuais são poderosos instrumentos de trabalho, interessam para o sucesso do processo educativo. Eles hospedam saberes básicos essenciais. Veiculam conteúdos, informações e saberes a serem transmitidos, tendo como base um currículo escolar formal. Será que as fotocópias que estão sendo distribuídas têm essas valências, por mais que sejam selecionadas e estruturadas de forma intencional?

Autores como Rego, Gomes & Balula (2010), defendem que “o manual escolar é o primeiro recurso educativo, numa sociedade em que se busca um acesso generalizado a uma educação de qualidade, sendo acessível a todos os estratos sociais, independentemente das diferenças culturais, socioeconómicas ou geográficas”. Para esses autores, esta acessibilidade, faz do manual um dos recursos mais importantes na escolarização.

Daí, caros governantes, não menosprezem a importância do manual escolar enquanto uma das principais ferramentas de apoio didático pedagógico para os professores e alunos. Todos temos a consciência da situação em que vivemos, da taxa de desemprego e do alto custo de vida da nossa população, razão pela qual aumenta a dificuldade a recursos alternativos que garantam, talvez, uma melhor qualidade de ensino como internet e a falta de recursos nas escolas públicas, como bibliotecas e mediatecas.

A alternativa encontrada pelo Estado para colmatar a falta de manuais escolares com vista a tentar cumprir o seu dever de garantir o atendimento dos estudantes no processo ensino-aprendizagem por meio de processos alternativos neste caso as fotocópias, não pode permanecer ad aeternum na vossa governação. Como se percebe que em duas legislaturas não conseguem dar um ar de graça em resolver a questão dos manuais escolares principalmente para os alunos pré-universitários e continuarem a badalar aos sete ventos que estão promovendo uma educação de qualidade? Outrossim, o recurso a fotocópias da forma como vem sendo feito, por um lado, até poderá configurar alguma ilegalidade se considerarmos os direitos de autor, para além de muitas vezes não apresentarem qualidade desejada. Outrossim, esta via deveria ser, salvo melhor entendimento, um processo suplementar de material didático-escolar e, nunca, alternativo. Por outro, todos sabem que nenhum aluno consegue manter atenção nas aulas durante 4 horas diariamente daí a necessidade de terem o manual escolar como instrumento de estudo e trabalho para apoiar a sua atividade uma vez que nenhuma fotocópia pode substituir os manuais enquanto auxílio para verificação, consolidação e ampliação de conhecimentos.

Muitos alunos que chegam hoje às universidades, provavelmente não tiveram contato com qualquer manual escolar há, pelo menos, três anos. Daí não se pode, do meu ponto de vista, falar de uma educação de qualidade, quando não se pretende promover uma educação que passe pela preparação do aluno, no sentido de compreender a mudança que ocorre do ensino secundário para universitário e, principalmente, quando não se lhe fornece argumentos para se mobilizar no sentido de procurar melhores manuais, melhores livros, assim como perceber de forma diferente a importância que os livros têm para os conteúdos das suas novas unidades curriculares e nos quais se espera que desenvolva as suas capacidades de pensamento crítico. Não pode ser por acaso que os professores universitários enfrentam várias resistências da parte dos alunos que não estão habituados a ler e, consequentemente, a produzir textos. Um aluno que passa três anos sem ler um manual escolar muito dificilmente desenvolverá hábito de leitura e capacidade para suscitar a reflexão crítica, por mais que o professor queira ser o principal mediador curricular.

Não restam dúvidas de que os professores e alunos estarão mais sintonizados no que pensam e fazem se tiverem como material curricular os manuais escolares, daí julgo ser o momento de deixarmos as narrativas de políticos protagonistas, heroicos e fascinantes que VÃO FAZER de tudo e realizarmos aquilo que constitui o essencial do interesse principal e das esperanças dos nossos jovens e da nação.

Se quisermos um ensino de qualidade e se pretendemos fomentar e fortalecer a tão propalada relação de afetividade entre estudantes e livros devemos apostar fortemente em manuais escolares que, também, constituem um meio privilegiado de ligação da família às atividades escolares.

Um bom ano letivo a tod@s!

Luís de Pina

/Professor, Aposentado/

 

 

BIBLIOGRAFIA

Rego, B., Gomes, C. A. & Balula, J. P., (2010), A avaliação e certificação de manuais escolares em Portugal: um contributo para a excelência, XI Congresso da AEPEC, Universidade de Évora.

Inforpress.cv/falta-de-manuais-do-9o-ao-12o-ano-de-escolaridade-aguarda-a-reforma-curricular-do-ensino-secundario-governo/. Acesso: 6/09/2022.

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