Gilson Alves, uma estranha candidatura*
Ponto de Vista

Gilson Alves, uma estranha candidatura*

A campanha de Gilson Alves (que parece ser bom rapaz e tem ideias interessantes, como os demais candidatos) faz lembrar uma certa ideologia de sinistra memória que fez escola na Itália no rescaldo da Primeira Guerra Mundial. Não só no verbo mas até numa certa simbologia: jovens brandindo archotes ao ritmo de uma marcha marcial, camisolas e bandeiras negras com o slogan "Gilson Alves, poder absoluto"...

As eleições presidenciais contam, este ano, com uma candidatura surpreendente. Pela primeira vez em Cabo Verde, um candidato à mais alta magistratura milita por um regime presidencialista, bem ao estilo da Rússia, Brasil, França ou Estados-Unidos, e da maioria dos regimes totalitários em África.

Gilson Alves, jovem médico-cirurgião, ensaia assim os seus primeiros passos na política electiva com um lema de campanha inédito, "poder absoluto", tão inédito e fantasista que não está configurado no nosso sistema político-constitucional e nem parece ter alguma chace de fazer escola em Cabo Verde.

"Absoluto" é o paradoxo de Gilson Alves ao posicionar-se de antemão como um "presidente autoritário" num sistema de parlamentarismo mitigado! Com essa palavra de ordem insólita, o candidato contraria a própria Constituição, que o Presidente eleito, seja ele quem for, vai ter que jurar, respeitar e fazer respeitar por todos!

Deve o candidato Gilson saber que nem nas democracias presidencialistas pode um chefe de Estado mexer na Carta Magna, uma prerrogativa que não existe em nenhuma democracia digna desse nome. Se bem que alguns presidentes eleitos por sufrágio universal não resistam à tentação de accionar o Parlamento para alterar a Constituição, e por esta via eternizarem-se no poder, até que um golpe de Estado os mande para a cadeia ou para o cemitério! Isto é frequente em África: o caso mais recente é o da Guiné-Conakry onde Alpha Condé, aspirante à primatura ad eternum, foi afastado pelas armas e encarcerado à espera de julgamento! Podemos recuar até ao golpe de Estado de Nino Vieira em 1980, quando a primeira Constituição da Guiné-Bissau quis concentrar todos os poderes no então presidente Luis Cabral. Cabral acabou deposto e na cadeia; Nino, três vezes presidente, foi brutalmente assassinado em 2009 e acabou no cemitério antes da hora!

Por isso, não é de bom conselho mexer na democracia para satisfazer ambições pessoais absolutistas!

É óbvio que Gilson Alves, enquanto candidato, deveria sê-lo em consonância com a Constitução que temos, ou conformar-se com ela, sem por isso se inibir no seu desejo de a reformar. E, caso um dia fosse Presidente da República, propôr ao Parlamento (através dos partidos nele representados) uma revisão ou reforma constitucional para consagrar o "seu" sistema presidencialista. E como um assunto deste quilate não pode limitar-se aos partidos políticos, seria de esperar um referendo nacional, que provavelmente seria o prenúncio de uma 3a República em Cabo Verde. Essas coisas não podem ser tratadas de ânimo leve, é muita areia para a "juvita" do Gilson ou para qualquer candidato com ambições absolutistas.

A campanha de Gilson Alves faria todo o sentido num referendo com vista a plebiscitar uma nova Constituição (como fez Salazar em 1933 para instaurar o Estado Novo em Portugal). Mas convém lembrar que não estamos num referendo constitucional - estamos numa campanha presidencial!

E nesta campanha o Dr Gilson diz coisas de pasmar. Se presidente for, já se vê investido de poderes para - pasmem-se! - mandar fechar na cadeia um presidente de câmara que recusasse executar uma ordem sua!

A campanha de Gilson Alves (que parece ser bom rapaz e tem ideias interessantes, como os demais candidatos) faz lembrar uma certa ideologia de sinistra memória que fez escola na Itália no rescaldo da Primeira Guerra Mundial. Não só no verbo mas até numa certa simbologia: jovens brandindo archotes ao ritmo de uma marcha marcial, camisolas e bandeiras negras com o slogan "Gilson Alves, poder absoluto"...

Dou comigo a pensar: será inocente, toda essa simbologia evocativa de uma extrema-direita totalitária? Os "camisas negras" evocam a "marcha sobre Roma" que em 1924 deu o poder aos fascistas liderados por Mussolini. Pela força se arrogou o "Duce" o "poder absoluto", que é o que preconiza o Dr Gilson para o presidente de Cabo Verde, com primazia sobre o Parlamento e os demais órgãos de soberania.

A chama (o archote) está presente em vários emblemas da extrema-direita, nomeadamente do Reagrupamento Nacional em França (a cruz em chamas era um símbolo aterrador da Ku Klux Klan nos Estados Unidos da América).

Claro que não vamos por aí, credo em cruz! Claro que não nos deixamos levar em conjecturas divinatórias. Mas em política devemos ter cuidado com os símbolos.

Oxalá qualquer semelhança seja mera coincidência!

Mantenhas da terra-mãe, 6 de outubro 2021

*Artigo publicado pelo autor no facebook

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