O interesse em trabalhar este tema vem despertar em nós o que estudamos anteriormente sobre o Bairrismo, com ênfase em fatores como fluxos migratórios, políticos, a diáspora, entre outros e agora cruzado com o tempo em pandemia tem uma certa representação «egoísta», sem ser depreciativa. A questão do “bairrismo” é uma representação subjetiva quando criada por razões políticas ou administrativas.
O COVID- 19 que assola Cabo Verde há 4 meses manifesta-se nas regiões insulares[1] de forma diversificada, numas mais do que noutras, nuns concelhos mais do que noutros.
De Boavista a Santiago, São Vicente, Sal, Santo Antão e São Nicolau, tivemos e continuamos a ter casos positivos, embora não haja ainda um crescimento brusco segundo as autoridades sanitárias.
Mas a nossa intenção não é falar da situação sanitária do COVID-19, uma vez que somos leigos nessa matéria.
Servimo-nos apenas aqui do Censo para ilustrar o panorama Caboverdeano por analogia com o resto de África e através do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) nestes últimos tempos para abordar o aparecimento de manifestações sui-generis em Cabo Verde, mais precisamente em Santiago (Praia) e São Vicente (Mindelo).
Do Boletim do Centro de Controlo e Prevenção de Doenças da União Africana (África CDC) de 08.07 afigura-se o seguinte cenário:
Cabo Verde aparece com 1.499 infetados nesta data, numa população de cerca de 560.000 habitantes (2,68%), ou seja o terceiro país lusófono mais afectado.
Sobre a progressão da doença no continente africano, há a adiantar que, segundo dados do África CDC, a 11.07, o continente registava 522.104 casos acumulados de infeção pelo novo coronavírus, dos quais resultaram 12.206 mortes, o que representa uma taxa de letalidade de 2,3%.
"Desde a semana passada, houve um aumento de 24% de novos casos, o que significa cerca de 100 mil novos casos e uma média de 14 mil casos por dia comparando com a média diária de 11 mil casos na semana passada".
África do Sul (42%), Egito (15%), Nigéria (6%), Gana (4%) e Argélia (3%) são responsáveis por 71% de todos os casos registados em África.
De acordo com o África CDC, foram feitos no continente 5,7 milhões de testes, 8,6% dos quais deram positivo. Cerca de 80% dos testes foram realizados em apenas 11 países: África do Sul, Marrocos, Egito, Gana, Etiópia, Uganda, Quénia, Maurícias, Ruanda, Nigéria e Senegal.
Segue um modelo de protocolo da OMS para Cabo Verde feito no início da pandemia e no Estado de Emergência sendo o panorama este:
Se as medidas foram cumpridas pelos habitantes é o que analisaremos adiante, para Praia e Mindelo.
Pretendemos assim demonstrar, em parte com estes dados como se comportam os habitantes em Cabo Verde, em tempo de pandemia, com hábitos de vida, maneiras de estar e sentir diferentes e que cumprem-se num espaço, seja na cidade (Praia e Mindelo), no campo ou mais especificamente no bairro.
Na cidade da Praia temos núcleos de pessoas de várias ilhas. Praia tem-se tornado uma cidade muito mais cosmopolita, a todos os níveis, e houve como uma “erosão” das outras ilhas em direção a Santiago, faltava até mão-de-obra em certas ilhas porque as pessoas procuravam melhor vida, sobretudo na Praia.
É evidente que todo este crescimento da cidade da Praia agudizou as manifestações bairristas com Mindelo, porquê? Como sabemos, Mindelo é a única cidade que poderia competir com a cidade da Praia, pois Mindelo já teve o seu crescimento, teve contacto com outras culturas, se calhar, primeiro que as outras ilhas.
Mindelo sente-se «abandonada à sua sorte» pela concentração em massa na Praia, motivo que nos leva a pensar em medidas políticas pouco abonatórias para esta ilha. A protecção acerrada ao seu bairro, à sua cidade pode determinar expressões do fenómeno do bairrismo com uma direção recíproca e temporária.
O bairrismo em Cabo Verde parece-nos ambíguo pois que, se esporadicamente, faz parte de discursos, sobretudo políticos e parece estar mais acesso em alturas de maiores fluxos migratórios deparamo-nos nesta altura de pandemia do COVID-19 ao fenómeno com sinais que se referem à defesa de interesses do bairro ou de sua terra tanto por atitudes de defesa exacerbada de suas alegadas virtudes ou, por analogia, da terra natal de alguém. O termo geralmente possui uma conotação negativa, pois ao bairrismo está vinculada uma visão estreita de mundo que menospreza tudo aquilo que vem de fora. Raramente o bairrismo é encarado como uma atitude positiva, de amor e orgulho por uma região, pelo fato de ferir a paz entre os povos das mais diversas regiões[2].
Na Praia e no Mindelo neste tempo de COVID-19, de forma rara, o bairrismo numa cidade e noutra, é encarado com uma atitude positiva, de amor, orgulho e protecção dos seus bairros. Não é a toa que Praia exaltou para si a localização de maneira insistente dos bairros com casos positivos, como uma forma de prevenção, proteção do COVID-19 e Mindelo sempre defendeu que os casos positivos que teve, poucos que têm sido, são importados.
Aqui fazemos um parêntese para falar sobre Praia e Mindelo em termos de Índice de Desenvolvimento Humano, pois há características próprias sobre o comportamento nesta pandemia em relação à saúde, escolarização e PIB.
Mapa do Índice de Desenvolvimento Humano – 2019 com dados concernentes a 2018
Mapa-múndi representando as quatro categorias do Índice de Desenvolvimento Humano, baseado no relatório publicado em 09 de dezembro de 2019, com dados referentes a 2018.] 0,800 – 1,000 (muito alto) 0,700 – 0,799 (alto) 0,555 – 0,699 (médio) 0,350 – 0,554 (baixo) Sem dados
O Índice de Desenvolvimento Humano, que integra o Relatório de Desenvolvimento Humano de 2019, analisou os progressos de 189 países em matéria de desenvolvimento humano, centrando-se este ano nas desigualdades.
Cabo Verde subiu do lugar 128 para o 126, São Tomé e Príncipe passou do 138 para 137 e Timor-Leste manteve-se no lugar 131.
Segundo os dados, Portugal, o único lusófono no grupo de países de desenvolvimento muito alto, manteve-se na posição 40, enquanto o Brasil, considerado de desenvolvimento alto, caiu um lugar, de 78 para 79.
Angola, que integra com Cabo Verde, Timor-Leste, São Tomé e Príncipe e Guiné Equatorial o conjunto de países de desenvolvimento humano médio, foi o lusófono que mais caiu na avaliação, passando da posição 147 para a 149.
Também a Guiné Equatorial desceu da posição 143 para a 144.
Guiné-Bissau e Moçambique mantiveram-se nos últimos lugares da lista dos países com baixo desenvolvimento humano com a Guiné-Bissau a descer da posição 177 para a 178 e Moçambique a permanecer na posição 180, sendo o 9º pior país do índice.
Com uma pontuação de 0.647, Cabo Verde está acima da média do grupo de países de desenvolvimento humano médio e dos países da África Subsariana, mas abaixo do valor médio dos estados insulares em desenvolvimento.
Ao comentar os números do Índice, em relação ao ano passado, observa-se um “ligeiro progresso do país", particularmente devido ao "aumento dos anos de escolarização por habitante”.
No IDH de 2019 defende-se que «aquilo a que assistimos atualmente é a crista de uma onda de desigualdade. O que se segue depende das opções tomadas. Do mesmo modo que a desigualdade começa à nascença, define a liberdade e as oportunidades de crianças, adultos e idosos e estende-se à geração seguinte, também as políticas de prevenção das desigualdades podem acompanhar o ciclo de vida…».
Uma medida simples, composta pelo desenvolvimento humano, seria necessária para convencer a opinião pública, os académicos e as autoridades políticas de que podem e devem avaliar o desenvolvimento não só pelos avanços económicos, mas também pelas melhorias no bem-estar humano.
· Uma vida longa e saudável: Expectativa de vida ao nascer
· O acesso ao conhecimento:
· Um padrão de vida decente: PIB (PPC) per capita
A desigualdade em Cabo Verde é bem visível e podemos analisar tendo em consideração os índices de pobreza no meio rural e urbano. Tentamos assim ilustrar as dimensões que medem o IDH no nosso país.
Geograficamente, observa-se que a pobreza absoluta, em 2015[3], é mais acentuada no meio rural, onde é notória uma diminuição da população, em consequência do êxodo para o meio urbano, ao longo dos anos. Atualmente, a população no meio rural representa 35,7% da população total, e quase metade da sua população residente (88.524) é considerada como pobre, o que equivale a uma incidência da pobreza na ordem dos 48,5%. Os pobres do meio rural representam 49,2% do total dos pobres, a nível nacional. No meio urbano, a incidência da pobreza fixa-se em 27,8% e atinge cerca de 91.384 pessoas e instala-se na maioria nos bairros periféricos.
Como é que as medidas de prevenção sanitária poderão ser cumpridas por habitantes pobres com rendimentos baixos e que precisam ganhar o pão de cada dia fora de casa enquanto todo o sistema falava para no fkanacasa? Os números falam por si e a atenção em tempos de Estado de emergência deve-se em parte há distribuição das cestas básicas, rendimento mínimo possível pela ajuda do governo sim e a internacional mas de toda a maneira desigual. Aqui a questão está em compreender que as atitudes manifestadas pelos habitantes, pobres, no meio urbano e rural, são ainda de sobrevivência mesmo que no meio rural haja indivíduos com ligação à exploração agrícola que é deficiente por causa da falta de água. Já para não falar deste líquido precioso que em tempos de pandemia é perentório para a higienização das mãos. Como fica a situação em casas sem água corrente, ou com limite «na apanha de água» do chafariz? São alguns dos aspectos que interferem no comportamento do indivíduo envolvido num ambiente que não está ainda preparado para situações como esta pandemia. O IDH dá-nos dados dessas desigualdades bem como os resultados estatísticos da pobreza monetária em Cabo Verde.
É de notar que não se trata nesta pandemia dos casos positivos e óbitos em Cabo Verde analisado de forma unidimensional. Na Europa e Américas temos casos progressivos do novo coronavírus e falamos de países desenvolvidos ou muito desenvolvidos. A análise tem que ser multifactorial! A nível dos protocolos da OMS, da eficácia do sistema de saúde, da propagação do vírus e respectiva capacidade de resposta, a nível demográfico, a nível intersectorial, a nível de IDH, a nível do limiar da pobreza, entre outros.
No nosso país a grande maioria dos agregados pobres (72,3%) reside em alojamentos próprios, mas que apresentam alguns problemas de habitabilidade tais como de infiltração de água no teto (64,1%) e nas paredes (61,7%), apodrecimento nas janelas (38,7%), alojamentos localizados em ruas não pavimentadas (58,8%). Embora não sejam pobres monetariamente, pode concluir-se que uma percentagem significativa dos agregados não pobres vive ainda, igualmente, em habitações que apresentam alguns constrangimentos de habitabilidade, tais como infiltração no teto e nas paredes.
Na Praia somos confrontados com barracas de cartão ou de latão sem condições de habitabilidade que além de ferir o ordenamento territorial, que fica aquém de quem de direito, torna-se um risco para os que moram nelas. Estes estão mais expostos ao barulho de vizinhos ou da rua, à poluição, sujidade e mau cheiro e a problemas de crime, vandalismo e violência. Em bairros nestas condições como mitigar o COVID-19? O crescimento de casos positivos na Praia dependerá somente deste estado de coisas? Facilita sim, mas o comportamento dos habitantes é deveras importante.
Pelo que se pode apurar, um mosaico de culturas africanas e europeias, com todo o seu passado mítico, histórico e religioso, serviu para moldar o ethos e a idiossincrasia dos caboverdeanos e para enformar a sua própria identidade e os seus traços culturais.
Santiago, uma região rural e urbana. Quando dos fluxos migratórios internos, denota-se uma diferença própria entre o rural e o citadino, é um espaço estranho, não dominável, com um tratamento diferenciado, inicialmente, por algumas razões que apontamos de seguida:
a) Hábitos no santiaguense, que se chocam entre uma vivência rural que, segundo um estudo de terreno de Fontes[4], é ‘reservado’ e ‘desconfiado’; ‘estão a aprender a misturar-se’; ‘observadores críticos’; ‘predominantemente rurais’; ‘franco’; ‘leal’; ‘direto’; e ‘impulsivo’ e vivência urbana, com características de ´aberto’; ‘não são tão leais’, ‘alegre’; ‘gosta de festas’; ‘urbano’; ‘impulsivo’; ‘pouco diretos’; ‘gostam de troçar’, ‘consegue relacionamento fácil, mas superficial’.
i) e que provavelmente se compreendem nos seus comportamentos, no modus vivendis que se choca com o outro e isso leva por vezes ao confronto, à falsa liberdade[5] e suas consequências. Evidente que como abordamos anteriormente há fatores de raiz do próprio sistema em que vive.
ii) Além disso, há toda uma construção no imaginário sobre ele mesmo. Este imaginário está-se a atribuir àquele que vem de fora, como sendo rústico, rude, com maus modos, ou com relativos maus modos, e que urge urbanizar.
iii) O termo urbanização tem uma conotação e civismo, vem de urbe, como se o espaço urbano fosse o espaço da civilização, então isso “sente-se”. Sente-se isso na relação, não apenas entre indivíduos, grupos, inter-bairros, mas também em gerações, sobretudo nas mais velhas que são endógenas do espaço.
Quanto aos serviços de saúde, cerca de 16% dos não pobres e 15% dos pobres classificam de mau estes serviços e cerca de 10% dos pobres declara que não tem acesso a eles. Embora se destaca o esforço das autoridades sanitárias no combate da COVID-19, lá onde tem sido possível, por enquanto e tratando-se de um vírus invisível e novo.
Relativamente à educação, independentemente do estatuto na pobreza, é considerada boa.
Nos primeiros anos de escolaridade, mesmo os pobres conseguem garantir o acesso à escolaridade das crianças que, a nível nacional, é obrigatória e gratuita.
O acesso ao conhecimento é garantido a quase todos os indivíduos em idade escolar.
Em tempos de pandemia a solução foi aprender em casa através da televisão, rádio ou textos distribuídos pelos professores aos alunos que não tinham acesso aos outros equipamentos.
Um parêntese aqui para dizer que Cabo verde optou pelo ensino à distância, como fizeram vários outros países, sendo um novo desafio para os professores e alunos.
O teletrabalho, o aparecimento da webnair nesta altura ou o próprio Zoom, veio facilitar a dinâmica de encontros, workshops, conferências ou entrevistas de forma protegida e com um bom uso das novas tecnologias de comunicação. As TIC´s sem dúvida foram a melhor aposta em tempos de COVID-19 que permitiram a contínua comunicação e informação sobre o trabalho, de forma geral, em tempos de pandemia.
O Produto Interno Bruto per capita representa a soma de todos os bens e serviços finais e segundo o jornal «Expresso das ilhas» do dia 17.07, «…o PIB nacional registou uma variação homóloga de 5,8% entre 1 de Janeiro e 31 de Março…» e a partir de Abril desceu de forma brusca pelas razões conhecidas.
A economia é orientada para os serviços, sendo que o comércio, o transporte, o turismo[6] e os serviços públicos representam cerca de 3/4 do PIB, apesar de quase 70% da população viver na zona rural. Cerca de 73% dos alimentos têm que ser importados.
Defendemos o citado de seguida «por vezes é necessário existir algum localismo para que exista a conservação dos costumes e a preservação dos espaços e das gentes locais. Gentes que, muitas vezes, se vêm expulsas das suas raízes pela força do turismo e dos interesses económicos, que tanto podem ter de bom como de mau, se não existir um equilíbrio.»
Todas estas dimensões nos dão conta que o bem-estar da população tem melhorado gradualmente, mas falta muito trabalho para que todos tenham uma vida decente. E não tendo segurança sanitária é deveras complicado lidar com a pandemia do coronavírus, no sentido de preveni-la e mitigá-la até ao aparecimento de uma vacina.
Na Praia, a capital, em que o cenário é de uma urbe desordenada, sem controlo, onde ainda há muito a fazer sobre o saneamento básico, e quando a grande preocupação, em Cabo Verde não se cinge à produção, mas sim à assistência, que passa pelos problemas sociais, que uma cidade como a Praia tem, além dos problemas que a coexistência de populações com modos de vida diferentes (urbano e rural e de outros povos), processam relações sociais diversificadas, consequências de uma estrutura social também diferente, assimetrias de ordenamento territorial, o não acesso a boas condições de habitabilidade e por boas condições sanitárias.
São Vicente é, hoje em dia, uma ilha com capital humano com boas condições a nível da saúde e ambiente arquitetónico urbano, embora e frisamos, ainda teime condições de boa habitabilidade para todos os sanvicentinos, que são caracterizados como: ‘extrovertido’; ´discute mais do que age’; ‘basofo’; ‘flexível’. alegre’; ‘divertido/brincalhão’; ‘extrovertido’, ‘aberto’ e ‘egoísta’, segundo Fontes[7].
São as duas ilhas que citamos nesta análise em tempos de pandemia tentando levantar o véu de determinantes para justificar manifestações de proteção do seu bairro do inimigo invisível, sinais de atitudes positivas para com o seu território quando em crise, em «guerra».
O interesse em trabalhar este tema vem despertar em nós o que estudamos anteriormente sobre o Bairrismo, com ênfase em fatores como fluxos migratórios, políticos, a diáspora, entre outros e agora cruzado com o tempo em pandemia tem uma certa representação «egoísta», sem ser depreciativa.
A questão do “bairrismo” é uma representação subjetiva quando criada por razões políticas ou administrativas. Falaremos a seguir na abordagem sobre o Estatuto Especial da Cidade da Praia que foi chumbado pela 4ª vez pelos Deputados da Nação, na sua maioria.
Cidade da Praia
Poucos são os temas no contexto político nacional que têm causado uma discussão bipolarizada como a do Estatuto Especial da Cidade da Praia. Parece não existir um meio-termo, ou se «é absolutamente a favor» como o governo, o partido no poder, a Câmara Municipal da Praia e algumas associações, ou «absolutamente contra» como cidadãos que vêem na aprovação deste Estatuto Especial um aprofundar do centralismo da capital em prejuízo das outras ilhas e até mesmo do resto de Santiago.
Em 2007 a proposta do EEP referia-se à atribuição de estatutos dessa natureza que prende-se, por via de regra, com determinados fatores, designadamente, a dimensão territorial, a densidade populacional, as migrações internas, sem contar ainda com a premência dos problemas específicos nos domínios do ordenamento do território e saneamento básico, atento ainda a circunstância de as cidades capitais serem, como acontece com a Cidade da Praia, a um tempo, sede dos principais órgãos de soberania. Este estatuto apostava, na altura, na desconcentração dos poderes e prestação dos serviços municipais o mais próximo possível dos munícipes.
Um político, ex-governante disse há poucos dias que “o facto dos concelhos do interior de Santiago e das outras ilhas estarem a migrar para a Praia é consequência dos desequilíbrios em que tudo ou quase tudo está concentrado na Praia….”.
O Estatuto especial é administrativo e não político, como deixam transparecer as várias manifestações de cunho bairrista por parte dos dirigentes, dos deputados da Nação. Uma forma de pensar que, deixa a descoberto sentimentos bairristas tanto daqueles que criticam o centralismo da Praia-Capital, como daqueles que defende o oposto.
A questão, no fundo, passa por saber quem é mais bairrista quando o assunto é o desenvolvimento de Cabo Verde.
Num momento como o que vivemos hoje com a pandemia do COVID-19 e Cabo Verde com um IDH médio, ainda somos confrontados com fragilidades de vária ordem e na Praia esse cenário, como já mencionamos, é visível, pelo que os seus impactos e riscos na propagação do vírus (a crescendo) dependem de uma segurança sanitária de qualidade. Essa aposta está ligada à prevenção sobretudo lá onde é preciso, com um bom ordenamento territorial, saneamento básico, etc. E quem mais do que Praia, a capital, pelas suas características próprias internas chamar para si o EE, num tempo mais do que necessário, para se organizar estruturalmente, com um financiamento próprio[8] e tentar claro, com mais desenvolvimento, mitigar o vírus do COVID-19? Pensamos assim, pois o desaparecimento da pandemia no mundo não tem dia, nem hora. Convivemos com o coronavírus e as medidas têm que ser tomadas com ele, queiramos ou não.
O autarca da Praia actual, reforça que “já foi aprovada a Zona Económica Especial para São Vicente. …, convém que o desenvolvimento seja equilibrado em todas as ilhas, é muito importante, mas a Cidade da Praia é diferente de todas por ser capital” e «que a aprovação do Estatuto Especial da Cidade da Praia está nas mãos dos deputados da nação e que não se entende todo este arrastamento para a aprovação de uma lei constitucional.»
Esta leitura leva a interrogar-nos o porquê desta situação?
Primeiro, voltados para uma pequena abordagem historicizante e como afirma Furtado «a construção do Estado, demanda uma quantidade significativa de dirigentes recrutados primeiro, entre os que participaram na luta armada, sobretudo para os grandes cargos e, segundo, entre os que já vinham exercendo actividades na Administração Pública Colonial. Uma terceira categoria viria a ser recrutada mais tarde, com o regresso dos primeiros universitários formados, após a escolaridade»[9].
A saber que este último segmento de classe detinha um certo poder económico, comparado com o resto da população em Cabo Verde. Alguns dos seus membros são proprietários de terras ou de pequenas unidades industriais e sobretudo comerciantes nas ilhas de Barlavento.
O seu nível de escolaridade facultou-lhe o desempenho de funções auxiliares na máquina administrativa colonial o que permitiu-lhe acumular os conhecimentos necessários para fazer funcionar a burocracia estatal. Esta proximidade e este saber fazer vai revelar-se como fatores determinantes no momento de assumir o poder.
No segundo caso, o facto de haver mais elementos do Governo do MPD de origem santiaguense, parece-nos, estar relacionada com o sentimento de reverter a situação anterior, isto é, incluir mais elementos de Santiago no elenco governamental. Tem a ver também com a maior oferta de bolsas de estudos, nesta ilha, o que dava oportunidade a mais formações académicas e após o regresso dos quadros a uma maior facilidade de ocuparem altos cargos na ilha, onde está a capital – Praia – e funciona todo o aparelho administrativo e político.
Com um elenco governamental do PAICV, eleito em 2001, e com a sua primeira remodelação em Março de 2002, num total de 16 governantes, incluindo Secretários de Estado, temos 7 elementos de origem santiaguense e três de origem sanvicentina. Há ainda a acrescentar, que nesta remodelação, nota-se a entrada de alguns elementos de outras origens, como é o caso da ilha do Fogo. Não nos pudemos esquecer que, como referido, encontramo-nos na ilha onde está a capital de Cabo Verde, onde além de existir o maior número de população, funciona toda a máquina administrativa e política do arquipélago.
Neste novo elenco governamental do MPD, desde 2016, temos 7 governantes de Santiago, 2 do Sal, 2 de SV, 2 de SN, 1 de SA e uma Cubana e Cabo-verdiana, excluindo os Secretários de Estado. Esta maioria de elementos de origem de Santiago deve-se a vários fatores, entre eles, a escolha do Primeiro-Ministro (de Santiago) por quadros da sua confiança pois já tinha conhecimento do trabalho destes e do número de deputados na Assembleia.
O partido liderado por Ulisses Correia e Silva venceu com maioria absoluta, elegendo 40 deputados, acima dos 29 do PAICV e dos 3 da UCID.
Pela tabela em cima observamos que os deputados pelos círculos de SV e Santiago são os mais expressivos. E deparamo-nos em Santiago Norte e Sul, respectivamente, com 8 e 11 deputados do PAICV e 14 do MpD. Para SV temos 5 do PAICV e 4 do MpD.
Fazemos aqui uma leitura sobre os indicadores mais marcantes na formação destas duas ilhas, que pela sua importância, permitiram, no caso, o habitante da ilha de Santiago ou de São Vicente “desencadearem” a sua competição sobre o outro e compreender as relações sociais que se formam por representações mentais da história dos dois habitantes.
Foram as elites santiaguenses que se opuseram com mais força ao projecto de transferência da capital, pois para alguns sobrevalorizou-se atributos feitos à ilha de São Vicente em detrimento aos “handicaps” (sobretudo a insulabridade) que constituíam um exagero por parte dos apologistas da transferência.
Ou seja, sabe-se que no espaço em que se instala a capital, novas oportunidades de emprego são criadas, especialmente a nível administrativo, cria-se uma grande procura de bens e serviços (habitação, comunicação, transportes, alimentação, entre outros).
Por todas estas vantagens a ilha de Santiago reivindica para ela, a capital, temendo vir a perdê-la para a povoação do Mindelo. Mas por outro lado, as ilhas menos próximas da capital, como SV sentem-se penalizadas pela difícil inacessibilidade à capital.
Parece-nos que este fator criou, e ainda cria nas relações entre estas duas regiões, algumas crispações, não só pelo facto apontado neste ponto, mas pelo que já foi referido nos pontos anteriores, sobre o meio rural e urbano, por exemplo.
Estas crispações, muitas vezes manifestas, outras vezes latentes, resultam de todo um percurso histórico, económico e sociocultural, que deixaram marcas nesta sociedade, penalizando uns mais que outros, conforme, a estrutura social, e que se traduzem, em manifestações bairristas, nestas duas ilhas.
São Vicente desenvolveu-se à base do carvão do Porto Grande, à base dos ingleses, a elite “copiada” pela segunda classe, na forma de querer viver, de querer estar, ser, vestir, comer e uma terceira classe, o povo.
Nessa altura São Vicente apresentava melhores condições urbanas que a Praia.
São Vicente foi durante algum tempo melhor cidade em termos de infraestruturas, de categorização como cidade do que a própria Praia.
Este fenómeno, implica um olhar mais europeu, do que o olhar do conjunto do arquipélago, por parte de SV. Embora consigam descrever toda a realidade caboverdeana, na vivência, na sua representação quotidiana definem uma identidade própria, que é tomada pela população como a real.
Damo-nos conta, que neste momento, do ponto de vista das relações sociais o bairrismo tende a agudizar-se em tempos de COVID-19 e dentro deste na discussão do EEP, ou seja do ponto de vista político tende a aumentar também, na base de instituições jurídicas e políticas, bem como os modos de pensar e as respectivas ideologias ao estruturar a sociedade caboverdeana.
[2] Wikipédia
[3] Instituto Nacional de Estatística Perfil da Pobreza Absoluta em Cabo Verde. Evolução da Pobreza Monetária Absoluta 2001/02, 2007 e 2015, publicado em 2018
[4] O Bairrismo em Cabo Verde: Santiago e São Vicente, 2007
[5] Característica de todo o mundo, como Europa e Américas
[6] Este sector foi sempre o mais desenvolvido e neste tempo de pandemia foi o que sofreu mais em termos económicos e parece-nos que servirá de exemplo para que se pense agora em diante na aposta de outros sectores nem que seja de forma transversal.
[7] idem
[8] Sem detrimento do funcionamento dos outros municípios.
[9] FURTADO, Claúdio, “Génese e (Re)produção da Classe Dirigente em Cabo Verde, 1997, Praia, Instituto Cabo-Verdiano do Livro e do Disco, pp. 147.
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