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A Última Fronteira - PARTE I
Ponto de Vista

A Última Fronteira - PARTE I

Se, como Narciso, nos encantamos com o reflexo de nossos sonhos na água, foi para descobrir que essa mesma água, fluida e implacável, também guardava o segredo de nossa perenidade. Na juventude que ousa, na beleza intocada do idealismo, e na persistência de um projeto que, mesmo parecendo falhar, deixou uma marca indelével na história de Santiago. Nossa vitória, então, não foi a realização imediata dos sonhos que acalentamos, mas o legado que permanece gravado na pedra, nas almas e nas águas eternas da ilha. Haveremos de voltar para continuar a vos contar mais sobre o nosso legado. ALTAS VIVE.

Éramos obscuridades na noite, não em batalha com o resto do mundo, mas imersos em um desejo latente que se concebera em nós. Já havíamos enterrado nossos lamentos no pélago das lágrimas. A fome, velha companheira, nos visitava não pela ausência de pão, mas pelo vazio que transcendia a coragem. Com a chegada dos sapos na cidade, adquirimos uma certa fluência para o contrabando da leitura do futuro, mas, uma vez que os sipaios partiram e a prisão foi fechada, não aprendemos a lamber o excretor do senhor Colono, contudo andamos só. Abundância à mesa, por vezes, não compreendíamos que nossas apetências superavam a própria mesa. Nossos corpos despertavam com uma sede insaciável e bocas que nunca se cansavam de clamar um firmamento com dentes, ou, por vezes, fecundadoras de promissoras aspirações.

Não faltavam víveres, tampouco ânimo; mesmo aqueles desprovidos de moeda nas mãos podiam banquetear-se à vontade. Conquanto, a verdadeira fome, aquela que corrói as entranhas da alma, persistia. Palavras tombavam de nossos lábios e faltava-nos a arte de pesca-los de volta, nomes esqueciam-se de si mesmos, e das profundezas do pensamento, como rochedos desmoronando, caíam ideias despedaçadas, enquanto o certo e o errado se debatiam no chão imundo da incerteza.

Ao redigir estas palavras, lembro-me de um poema de José Luiz Tavares, cuja mais recente obra presenteou nossa comunidade com a presença de um homem distinto. Ele foi descrito por um crítico como alguém que não é arrogante, mas transparente—uma observação que, embora ele não busque defesa, reflete o mínimo que se pode esperar de alguém que compartilhou o mesmo banco e palco. Um verdadeiro poeta, respondia outro, convenceu-se de que a humildade não se proclama, mas se pratica, e que a felicidade do homem não se diz, mas se sente pelo aroma. Assim, mesmo quando sua presença não é universalmente desejada, ele é dotado de glórias tangíveis e, por ser o mais laureado desta terra, enfrenta com uma força feroz e autêntica os vestígios de um passado que ainda resiste.

Seu poema, profundo e evocativo, capturou um sentimento que reverbera com nossa própria jornada. Eramos três e tornamo-nos uma ideia, os alteanos. Ele nos lembra que, embora o tempo tenha mudado nossos rostos, nossos espíritos permanecem entrelaçados com metáforas e imagens poéticas. O poema, com sua elegância e profundidade, diz:

“Era já outono em teu rosto.

Embora nos recôncavos do coração

Fulgores de verão a pino;

Ou eram ramos de verde pinho

Colhidos num poema de diniz?”

Estas palavras revelam a evolução que vivenciamos, de um tempo de verdor e esperança para um outono de amadurecimento e ponderação. Nossos rostos, que antes exprimiam o vigor da juvenilidade, agora carregam as marcas de um tempo amadurado, transformado em metáforas e poemas metamorfoseados.

Nunca nos ensinaram a amparar as partes de nós que, frágeis, estavam destinadas a quebrar. Assim, seguimos, caminhando por dentro de nossos próprios abismos, buscando contornar o inominável. Por dentro, um sofrimento agudo nos espreitava a cada passo, como um predador silencioso, e manter a cabeça erguida tornou-se a única resistência—não contra a exaustão que nos consumia, mas contra a ruína inevitável que nos aguardava. Viver bem, parece, é evitar que nos desgastemos por completo antes da morte—mas que importa a saúde de um cadáver? Quem faz história inevitavelmente se quebra, porque para transcender o tempo, é necessário danificar a capa que nos aferrolha.

Assim como um raio de sol que penetra as montanhas sagradas do cincorá até monte karasku, kanba munti kobada, aprendemos com os tchetchenos a curar os males da alma com a lâmina da resistência. Foi nesse rude despertar da consciência que selamos nossas bocas e escancaramos os olhos, temendo que cada palavra proferida pudesse nos desmantelar. E nesse tempo, em cada momento, faço de tudo para agarrar as ideias que, como poeira, escapam. A cada respiração, percebo que o maior protesto e o mais sagrado de um homem, é a sua própria respiração, seu fôlego indomável, o único grito que não pode ser preso e silenciado.

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Nos tempos de Azágua, o primeiro a saudar a alvorada é o sapo tarrafalense que nasce com a chegada do tombamento das aguas, uma criatura arcaica, cuja voz grave rasga o silêncio do mundo antes mesmo que os bidões sejam abertos para armazenar o milho. Esses sapos, habitantes das águas que inundam o tanque central do nosso torão, são os arautos do alvorecer, e suas vozes, como cânticos proféticos, reverberam nas paredes da manhã, consagrando o nascimento de um novo dia. O tanque, coração pulsante da aldeia, é o ponto de encontro entre a natureza e o homem, uma confluência telúrica onde a fama do sapo transforma o amanhecer em um rito consagrado.

No meio dessa aurora de repercussões primitivas, os homens despertam com o vigor ancestral, entoando cânticos que atravessaram as épocas, uma reminiscência viva das tradições que José Luiz Tavares, o vate de Cabo Verde, descreve como "a alma embalada pelo rumor dos ventos antigos e o lamento das pedras".

Na alvorada, a vida renasce com uma energia quase dionisíaca, um ciclo ininterrupto de renovação que, tal qual o eterno movimento das marés, nos recorda a cadência implacável da terra e do tempo, esses pescadores antes filhos do velho Damaja e hoje homens nos olhos de Beto Broda. A cada manhã, a aldeia renasce, e com ela, o cântico ancestral dos homens com calças até butxu e dos sapos com boca sima kokeru, um canto ao eterno retorno, onde o trabalho, a terra e o espírito se cruzam numa dança universal e sem fim.

No remoto ano de 2010, vi-me iniciado nos mistérios daqueles que, com o tempo, viriam a ser os cofundadores de uma das mais elevadas obras literárias de Santiago. Nessa era, a modesta biblioteca municipal, então apenas um refúgio esparsamente frequentado, ergue-se como um vigor solitário de resistência cultural, oferecendo aos poucos que ali chegavam um vislumbre do poder transfigurador da leitura. Ali, naquele relicário profano, o conhecimento era cultuado com delicadeza, e o espírito da cultura local, ainda em sua forma embrionária, iniciava um tímido desabrochar.

Mas, mais do que as palavras impressas que repousavam nas estantes, era o canto dos pássaros ao redor da biblioteca que verdadeiramente capturava o espírito dos passantes, antes ali grandes feiras de segunda e quintas feiras de sukupira. Aqueles pássaros, em seu voo sem rédeas, traziam consigo o prenúncio de um futuro que, embora brumoso, começava a ser pressentido, como se a natureza, em uma comunhão silenciosa com nossos esforços, anunciasse tempos vindouros de grandeza. Havia ali uma repercussão entre o humano e o natural que evocava as palavras de Amílcar Cabral, o ilustre líder guineense, para quem "as culturas populares são formas de resistência". E assim, mesmo no canto de um pássaro, sentíamos a germinação silenciosa de uma revolução iminente.

Em nossas incursões pelos subúrbios e ribeiras, víamos, com os olhos abertos pela experiência, uma vastidão de mentes ávidas por conhecimento, mas ainda envoltas nas sombras da ignorância. Uma ignorância oposta, pois conviviam com ela a curiosidade irrefreável e o desejo ardente de compreender o mundo. Nessas comunidades, desprovidas das benesses da educação formal, habitavam "intelectuais naturais", os "pensadores das margens", como diria o venerado Mia Couto. Eram mentes profundas, cujas reflexões não se ancoravam em textos acadêmicos, mas em gestos, olhares, e palavras de rara precisão, portadoras da sabedoria milenar que brota da terra e da experiência.

Naqueles tempos, embalados pelo fervor dos idealistas, acreditávamos com inabalável convicção que uma política de acesso à leitura poderia transformar essas mentes indômitas e, quem sabe, desvelar talentos ocultos no âmago de nossa terra. Decidimos, com a teimosia própria dos iluminados, levar livros e conhecimento àqueles rincões esquecidos, certos de que até o solo mais árido pode, um dia, florescer. Enfrentamos as intempéries, as chuvas diluviais nos nossos olhos, que inundavam ruas e a fúria do sol rígido, que queimava não só a pele, mas a própria fibra do espírito. Contudo, jamais nos desviamos de nosso destino. Lançávamo-nos, como diria José Luiz Tavares, "contra a implacabilidade do destino insular", cientes de que o caminho era áspero, mas necessário.

No curso dessa jornada, muitas vezes éramos vistos como loucos, guiados por uma obsessão quixotesca que poucos compreendiam, mas a mim as vezes era mais a Kafka e Fyodor Dostoiévski. As águas que transbordavam pelas ruas tornaram-se um símbolo vivo — não apenas das dificuldades físicas que nos assolavam, mas das barreiras internas que carregávamos como fardos invisíveis. Essas águas, com sua força incontrolável, eram metáforas de nossas próprias limitações. Na introspeção, descobríamos que os maiores obstáculos não residiam nas condições externas, mas na incapacidade de confrontar nossas próprias fraquezas. Como os sapos que saltavam indiferentes à leitura e ao pensamento, também nós, por vezes, nos encontrávamos presos num ciclo de esforço infrutífero, revivendo o mito de Sísifo em nossas próprias vidas.

Somente tarde compreendemos que algumas batalhas estavam inexoravelmente perdidas. A revista Podogó, outrora um farol de esperança cultural, sucumbiu ao desinteresse que a cercava. Os nomes de peso que a compuseram — Alexandre Semedo, Mário Lúcio, Manuel Tavares e Carlos Santos, José Luiz Tavares —, afastaram-se, o próprio tempo muda tudo e as próprias vontades e coisas se perdem, uns se tornaram grandes e outros ficaram como deuses cansados de um panteão esquecido. Mas, se a revista pereceu, as sementes que esses homens plantaram espalharam-se por outros campos, e em solo fértil, germinaram com vigor. Provaram assim que a grandeza, ainda que não reconhecida de imediato, sempre encontrará onde florescer, perpetuando-se nas mentes de futuras gerações.

Nesse período, travávamos uma batalha que não se limitava à apatia cultural, mas que se estendia ao próprio tecido do tempo, cuja passagem parecia conspirar contra nossos anseios. Como bem pontuou Frantz Fanon, "cada geração deve, em relativa opacidade, descobrir sua missão, cumpri-la ou traí-la." Nós, em nossa fervorosa juventude, acreditávamos estar cumprindo essa missão — moldando consciências, transformando ideias e levando a luz da leitura aos confins do nosso torão. No entanto, ao fim dessa cruzada, compreendemos com angústia que, na ânsia de salvar o mundo, ainda não havíamos aprendido a resgatar a nós mesmos das profundezas de nossas fragilidades.

O grupo que formamos era pequeno, mas dotado de uma força que excedia o número. Éramos seis: eu, Anilton Levy, Elves Cardoso, Isaías Lopes, e mais alguns visionários cuja chama interior refletia o desejo de mudar a realidade que nos cercava. Nossa intenção ia além das barreiras externas; tratava-se de desbravar o abismo que existia dentro de nós. Pois logo entendemos que, para operar qualquer transformação duradoura no outro, era preciso, antes de tudo, transmutar a nós mesmos. E foi nas paisagens mais recônditas da ilha que encontramos o espelho para nossas almas: o isolamento contemplativo e a beleza indômita do cenário refletiam o desejo de grandeza que almejávamos. Ao mesmo tempo, confrontávamos as críticas de vozes que, sem jamais pisar no solo áspero da realidade, se erguiam com o peso da ignorância. Nessa fricção, amadurecemos.

Lembrando os versos de Rainer Maria Rilke — "a verdadeira arte é a persistência silenciosa da alma" —, encontramos a resiliência necessária para persistir. Mesmo quando tudo à nossa volta parecia desmoronar, compreendemos que a verdadeira grandeza não reside na vitória instantânea, mas na obstinação de prosseguir, de avançar, quando os olhos de todos se desviam. Assim, com o passar do tempo, nossa aparente derrota revelou-se uma vitória oculta, como o fardo de Sísifo, cuja ascensão ininterrupta nos elevou a alturas que, somente agora, somos capazes de enxergar.

Se, como Narciso, nos encantamos com o reflexo de nossos sonhos na água, foi para descobrir que essa mesma água, fluida e implacável, também guardava o segredo de nossa perenidade. Na juventude que ousa, na beleza intocada do idealismo, e na persistência de um projeto que, mesmo parecendo falhar, deixou uma marca indelével na história de Santiago. Nossa vitória, então, não foi a realização imediata dos sonhos que acalentamos, mas o legado que permanece gravado na pedra, nas almas e nas águas eternas da ilha.

Haveremos de voltar para continuar a vos contar mais sobre o nosso legado. ALTAS VIVE.

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