Presidente da Assembleia Nacional tenta cassar mandato de deputado. Magistrados chantageiam o parlamento. Deputada é ostracizada e ofendida porque chama atenção para o estado da justiça, no exercício de funções outorgadas pelo povo. Instituições democráticas em silêncio absoluto. Presidente da República, o árbitro, não vê, não ouve e não sente. Efetivamente, este país está doente.
A Bíblia Sagrada adverte que um abismo chama outro abismo e aqui em Cabo Verde este facto está sendo comprovado todos os dias, para desespero de grandes e pequenos, ricos e pobres, letrados e iletrados, dirigentes e dirigidos, como se não bastassem as secas cíclicas, a escassez de recursos naturais e a exiguidade territorial, que aprisionam sonhos, iniciativas e projetos, individuais e coletivos.
A democracia cabo-verdiana está presa. Foi sequestrada pelos seus principais agentes e instituições, a começar pelo parlamento - a casa das leis, o centro do poder político – seguindo-se o poder judicial, o governo, e adiante, sendo certo que quando se atingir a liberdade e a autoestima populares então ficará consumado o seu morticínio, que, contra gritos e suspiros da sociedade, vem sendo anunciado desde há algum tempo, em atos e omissões, por altos dignatários do poder do Estado.
Quando, em plena sessão parlamentar, uma deputada, eleita pelo povo, fala do laxismo e eventuais atos corruptos praticados pelos magistrados, com destaque para os juízes do Supremo Tribunal da Justiça, o país respira de alívio na esperança de que finalmente alguma solução para o estado da justiça seria encontrada, tanto mais que as palavras da ilustre legisladora viriam a conferir novo fôlego às inúmeras denúncias do advogado Amadeu Oliveira, divulgadas em artigos de opinião, entrevistas e queixas judiciais e que são conhecidos em todo o país e na diáspora.
Na verdade, é justo e convencional que se abrisse um amplo debate sobre a justiça, considerando a importância do parlamento enquanto órgão do poder no conserto dos grandes desafios nacionais, e logo, pedra angular no processo de construção do país democrático, justo, desenvolvido e próspero que se pretende e se vende por aí.
Entretanto, o que viria a seguir certamente nem no mais profundo delírio seria imaginado por este povo que se convencionou definir de brandos costumes.
É visível o desconforto e a descrença da sociedade cabo-verdiana em relação à qualidade da justiça que o Estado oferece.
Com efeito, se a justiça não satisfaz a demanda da sociedade que ela mesma propõe servir, então significa que alguma coisa precisa ser feita para se identificar as causas e preparar soluções, remendar roturas e unir as pontas soltas ou os extremos.
Era isso que a sociedade cabo-verdiana esperava que acontecesse logo após a intervenção da deputada do MpD pelo círculo eleitoral de São Vicente, Mircéa Delgado. Mas não! O país passou a assistir, a partir desse momento, a uma insana tentativa de diabolização e ostracização da referida deputada, tanto pela sua própria bancada e partido, como pelos magistrados.
Num primeiro momento, o vídeo da sua intervenção saiu do ar, sem qualquer explicação, seguindo-se uma longa arreata de afrontas nas redes sociais, para descredibilizar e ofuscar a importância dessas denúncias enquanto posição de uma legisladora investida de poderes conferidos pelo povo e que tocaram a coluna vertebral de todo e qualquer sistema democrático – a justiça, o poder judicial.
É certo que essas investidas não calaram a ilustre deputada. E é aqui é que apareceram os magistrados, em bloco, a defender as honras da classe, com atitudes de vitimização e lamentações de virgens ofendidas, sem, no entanto, pronunciarem uma única palavra sobre, por exemplo, os caminhos que vão escolher para melhorar as suas prestações e assim oferecer uma justiça mais célere e competente para responder à demanda social.
Durante esse período de tempo, a pressão só subia, o mal-estar entre os sujeitos em liguilha era percebida por todos, até que os juízes do STJ procuraram os órgãos de comunicação social para anunciar que vão suspender a participação em eventos oficiais enquanto se mantiver o clima de “hostilidade institucional”. Traduzido, o STJ quer que o parlamento tome uma posição em relação às declarações da deputada Mircéa Delgado, por entender que a classe foi ofendida e maltratada na sua honra.
Cabo Verde está perante uma chantagem de um órgão do poder do Estado – o poder judicial – em relação a um outro órgão do poder do Estado – o poder legislativo. Isto aqui é inédito em regimes democráticos, e mostra que, efetivamente, a democracia nacional não anda de boa saúde. Falta equilíbrio, falta respeito, falta bom senso.
Normalmente nos regimes democráticos os conflitos resolvem-se em tribunais. Aqui ninguém está acima das leis. Chantagens, vitimizações, ofensas, ostracizações não podem sobrepor-se ao poder das leis e do direito.
Recorrentemente assiste-se em Cabo Verde ao rasgar de leis por entidades que juraram cumprir com elas em todas as circunstâncias, começando pela Constituição da República para terminar nos bons costumes. É assim que se viu, nessa sessão parlamentar, o presidente da Mesa da Assembleia Nacional rasgando a Constituição da República e o regimento da casa do povo, quando decidiu cassar o mandato de um deputado.
Efetivamente, como adverte a Bíblia Sagrada, um abismo chama outro abismo. Este país está doente e perdido nos seus próprios labirintos. Há que reencontrá-lo, para resgatar e salvar o Estado de Direito.
A direção,
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