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Sasha Montez. “Em Cabo Verde as pessoas não entendem o que é ser trânsgenero.”
Sociedade

Sasha Montez. “Em Cabo Verde as pessoas não entendem o que é ser trânsgenero.”

Modelo e proprietária de uma pequena empresa, Sasha Montez é figura pública e uma das mais populares transgênero de Cabo Verde, desde que há 5 anos iniciou a transição do andrógino Leno Motta para a sofisticada mulher que hoje se orgulha de ser o rosto da comunidade transgênero e respeitada enquanto tal.

Desde criança, sentia que não era um menino como os outros. Quando entrou para a escola Sasha Montez, então Heleno Mota, percebeu que não estava sozinha em se sentir diferente. No entanto, seu comportamento na escola era em tudo o esperado em um menino: jogava à bola, andava em correrias e metia-se em lutas. De volta à casa as bonecas eram seu brinquedo favorito.

"Eu fui criada dentro dos ensinamentos da Igreja. Minha mãe não gostava que eu ficasse na rua por muito tempo e sempre me pedia para ficar em casa. Eu passava o tempo a brincar com a minha irmã. Um dia, o meu pai - que não vivia connsoco - deu-me dinheiro e o que eu fiz foi comprar um monte de Barbies. Eu as escondi, mas a minha mãe acabou por as encontrar e as atirou fora. Ela sempre dizia que eu era um menino e não podia brincar com brinquedos de meninas."

A puberdade trouxe-lhe o conhecimento de que era homossexual, isto é, sentia atracção sexual por outros rapazes. A consciência da descriminação e dos preconceitos de que era alvo só a atingiria em cheio aos 16 anos, quando começou a frequentar a vida nocturna.

 "Percebi a discriminação que nós, a comunidade LGBT+, sofríamos em casas noturnas. Percebi que casais heterossexuais podiam dançar e beijar livremente, mas nós não. Numa discoteca, eles nos deixavam entrar, mas controlavam-nos. Diziam que não podiamos estar muito juntos, abraçar uns aos outros ou qualquer outra coisa mais intíma. "

Naquela época, Sasha já estava a passar pelo seu processo de transição. Ela já havia notado mudanças no seu corpo, mas ainda não se vestia “como mulher”. Sentindo-se irritada e oprimida, decidiu fazer algo para protestar contra a discriminação da discoteca: comprou uma coleção de perucas coloridas, roupas femininas ousadas e sapatos “bizarros", e assim vestida foi para a discoteca.

"Eu lembro-me que naquela época eu comecei a ter pelos faciais e decidi que não ia tirá-los, mesmo que as pessoas percebessem que eu era um rapaz vestido assim. Um dia na discoteca, eu vestida daquele modo e um senhor aproximou-se e disse-me que eu era linda. Então ele notou os meus pêlos faciais e atrapalhou-se, pediu desculpas. Mas então, passado um bocado, voltou a aproximar-se e repetiu que eu era muito bonita ".

Outro problema na discoteca surgiu quando começaram a não permitir que entrasse na toilete feminina. Na masculina já não se atrevia a entrar, intimidada. E finalmente chegou o dia em que o porteiro da discoteca decidiu barrar-lhe a entrada no espaço sem nenhuma justificativa.

"Senti-me humilhado e pedi-lhe para chamar o dono do clube. Disseram que ele não estava lá. Liguei para a polícia. Eles demoraram a chegar, mas dessa vez foram muito prestativos. Disseram ao porteiro que se ele não me permitisse entrar então todos tinham que sair e a discoteca seria fechada. Naquele momento senti como se fogos de artifício estivessem a subir ao céu. Foi a minha primeira vitória”, relembra com emoção.

“E ainda o dono apareceu e se desculpou, e disse-me que eu poderia entrar sempre. Então as coisas mudaram e a partir daí não tivemos dificuldade em entrar nas discotecas e estar lá sem sermos incomodados”.

Hoje, por opção, Sasha já não se encontra tão ativa na defesa dos direitos LGBT+, mas participa de algumas ações desenvolvidas pela comunidade, como a Praia Pride ( festiva passeata de rua).

Depois da batalha ganha, Sasha diz que começou a olhar mais para si mesma e a aceitar as transformações de seu corpo cada vez mais feminino. O desenvolvimento dos seios foi notado pela mãe.

"Não foi fácil para ela. Mas sei que a maior preocupação dela é que eu não sofra", diz , explicando que a progenitora não demorou tanto assim a aceitar a sua verdadeira identidade de gênero.

Foi nessa época que Leno Motta, como então ainda se denominava, começou a transição que o levaria a chegar a Sasha Montez. Assumiu um visual andrógino, apesar de não conhecer ainda o conceito. Foi a partir de um convite para um trabalho como modelo – que ganhou ao encher-se de coragem para ir a um casting – que ficou a saber que no mundo da moda é comum modelos andróginos, isto é com mistura de traços designados como caracteristicos de cada sexo o que dificulta a sua identificação com um dos géneros.

Foi o que Leno Motta começou a fazer. Nessa altura, com ajuda das redes sociais, começou a tornar-se muito famoso e muito assediado pelos admiradores.

Com 20 anos, já não admitia fazer trabalhos como modelo masculino. Sentia que não era ele mesmo se se vestisse como um rapaz. Havia já algum tempo que, à noite, já não se fantasiava extravagantemente e sim vestia roupas femininas com elegância e sóbria sensualidade. Entretanto, dava entrevistas a garantir que não queria tornar-se uma mulher.

“Deus fez-me homem, com corpo de homem, e tenho que morrer assim”, disse ao portal online Sapo em 2009. Na mesma entrevista admitia ser um travesti (ver caixa) embora não gostasse do termo.

A nós contou-nos que na verdade, naquela altura, sentia-se já na pele de uma mulher. E é por isso que, tempos depois, recusou o convite para estar em um videoclipe onde teria que aparecer como um rapaz que depois se transformava numa rapariga. Já não queria indenficar-se com o sexo masculino.

Nasceu então Sasha Montez. De longos cabelos ondulados, sobracelhas feitas, maquiagem discreta, assim como a bijuteria, longas unhas pintadas e bem cuidadas, e um elegante conjunto saia/casaco ao estilo executiva, foi assim que Sasha nos recebeu para a entrevista no seu escritório.

"Não tem como voltar atrás. Eu não sou mais um rapaz andrógino. Eu nem tenho roupas para isso (risos). Em Cabo Verde a maioria das pessoas não entende o que é ser trânsgenero. As pessoas só entendem gay e lésbica. Elas não alcançam o mais que há ".

Vaidosa, ela cuida muito da sua aparência bem como da sua imagem social, orgulhando-se dos convites que recebe para apresentar eventos e de ser referenciada inclusive na alta esfera institucional do país. Mesmo assim, recentemente, Sasha foi vítima de um episódio público de preconceito onde foi identificada com o nome que usava antes de adoptar a sua nova identididade de género e foi alvo de piadas e chacota. O episódio, ocorrido numa rede social, acabou por resultar numa onda de solidariedade e empatia para com ela, que optou por não reagir.

A paixão pela moda mantem-se mas, já não trabalha tanto como modelo. Entretanto, anunciou recentemente o convite para representar Cabo Verde e o continente africano no maior concurso internacional Miss Transgénero, que deverá realizar-se na Tailândia em março de 2021. O sonho de seguir uma formação de Design de Moda há muito que deu lugar a planos mais práticos: Sasha trabalhou por alguns anos numa empresa de produção audiovisual até que decidiu, há quase três anos, criar sua própria empresa. O seu empreedimento é voltado para o casting de actores e modelos para campanhas publicitárias e videoclipes, além de casting de vozes para anúncios comerciais, e ainda faz produção de moda.

Sasha assume-se mulher transgênero e nessa pele descontrói estereótipos. Sim, gosta de homens, mas diz-se longe de ser uma romântica. Por vezes o foco está totalmente voltado para o trabalho e o crescimento da sua empresa, de tal modo que passa-se muito tempo sem que tenha um relacionamento amoroso.

“Nunca me senti tão bem, tão leve. E nunca amei tanto uma mulher como me amo agora!”, escreveu recentemente.

Adoptar uma criança, mesmo que fora de Cabo Verde, faz parte dos seus planos para o futuro.

Foto: Jair Veiga 

Terminologia

Trangênero - São pessoas que têm uma identidade de gênero diferente de seu sexo atribuído. O transgênero também é um termo abrangente: além de incluir pessoas cuja identidade de gênero é o oposto do sexo atribuído (homens trans e mulheres trans), pode incluir pessoas que não são exclusivamente masculinas ou femininas (pessoas que são genderqueer, bigênero, pangênero, genderfluid ou agênero). Outras definições de transgênero também incluem pessoas que pertencem a um terceiro gênero.

Transexual - O termo "transexual" foi introduzido ao idioma inglês em 1949 por David Oliver Cauldwell e popularizado por Harry Benjamin em 1966, ao mesmo tempo que o termo "transgênero" foi cunhado e começou a ser popularizado.

Desde a década de 1990, o termo "transexual" tem sido geralmente utilizado para descrever o subconjunto de pessoas transexuais que desejam transitar permanentemente para o sexo com o qual se identificam e que para isso procuram assistência médica (por exemplo, a cirurgia de mudança de sexo). As distinções entre os termos "transgênero" e "transexual" são comumente baseadas em distinções entre gênero (psicológico, social) e sexo (físico).

Homossexual – comum aos dois gêneros, refere-se à atracção sexual por um individuo do mesmo sexo.

Discriminação

Muitas pessoas transgênero experimentam disforia de gênero (desconforto persistente com características sexuais ou marcas do género atribuído ao nascer) e alguns procuram tratamentos médicos como terapia de reposição hormonal, cirurgia de redesignação sexual ou psicoterapia. Nem todos os transgêneros desejam estes tratamentos e alguns não podem se submeter a eles por razões financeiras ou médicas.

Em Cabo Verde, segundo elementos da comunidade LGBTI que preferem o anonimato, está-se a registar entre os transgêneros o fenómeno da auto-medicação com hormonas para despoletar ou acelerar as tranformações físicas de mudança de gênero. Um fenómeno que demanda atenção já que as consequências de tais tratamentos por auto-medicação podem ser perigosas.

A maioria das pessoas transgêneros enfrenta discriminação no trabalho e ao tentar um trabalho, em serviços públicos e cuidados de saúde. Os transgêneros não são legalmente protegidos da discriminação em vários países. Brasil foi o mais recente país a aprovar, em Junho do ano passado, uma lei a criminalizar a homofobia e transfobia. Cabo Verde é um dos países onde esta lei ainda não existe. Entretanto, no ano passado o Conselho de Ministros aprovou a introdução nos postos de fronteira dos aeroportos a opção de género “não especificado” ao lado de “masculino” e “feminino”.

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Redação