
A crise de 2008 foi muito grave. Corroeu a economia dos países industrializados e provocou a crise das dívidas soberanas, a recessão e o desemprego; foram devastadores os seus efeitos nas economias dos países menos desenvolvidos, maxime nas dos pequenos estados insulares, como Cabo Verde. Estes são muito sensíveis e vulneráveis a choques externos. Entre nós, a economia que estava a crescer em média 8% (2006-2008) refreou-se bruscamente. De 2009 a 2015, o crescimento do PIB foi em média 1%.
Pode-se dizer que a crise de 2008 assemelha-se a um cancro corrosivo que silenciosamente foi consumindo as células da economia mundial. Foram necessários tratamentos duros, incluindo quimio e radioterapia, contínuos, mas suficientemente fortes, profundos e extensos, para curar o doente. Não houve, todavia, consensos quanto às terapias, sobretudo a propósito do papel dos médicos, no caso o Estado.
Alguns economistas consideravam que o Estado devia intervir de forma anticíclica, reduzindo o saldo orçamental, aumentando o déficit e a dívida. Outros não, defendiam políticas de austeridade e fortes restrições ao déficit e ao endividamento. Era preciso por as contas do Estado em dia. Nesta margem estavam Alemanha, Reino Unido, França... a União Europeia e as instituições da Bretton Woods.
Cabo Verde assumiu, corajosamente, a primeira perspetiva. Aproveitando-se das janelas de oportunidades - estava em período de transição suave a país de rendimento médio baixo e podia endividar-se em condições muito favoráveis de concessionalidade -, aumentou o déficit e a dívida, investiu na infra-estruturação, na educação, na saúde e no combate à pobreza, às desigualdades e às dissimetrias regionais.
Já em finais de 2015, a economia começa a dar sinais de retoma.
A atual crise provocada pelo novo coronavírus é diferente. Assemelha-se a um AVC fulminante e fatal. A comoção é grande, todos concordam que os médicos (o Estado) devem intervir rápida, decisiva e profundamente.
O Congresso Americano já aprovou um pacote de 2 trilhões de dólares (cerca de 10% do PIB), para apoiar a economia. O Reino Unido, a França e outros países industrializados criaram linhas de créditos garantidos pelo Estado num valor superior a 15% do PIB. A União Europeia já dispensou os seus membros dos limites do déficit e da dívida.
Os Bancos Centrais estão a reduzir todas as taxas e a adotar moratórias no pagamento dos créditos das empresas.
Mário Dragui, antigo Presidente do Banco Central Europeu, num artigo publicado recentemente no Finantial Times (25 de Março), considera que a recessão da economia mundial, por causa do COVID 19, é inevitável, e pode transformar-se numa grande depressão.
Sugere uma ampla intervenção do Estado. “É papel do Estado utilizar o seu balanço patrimonial patrimonial para proteger os cidadãos e a economia contra choques pelos quais o setor privado não é responsável e não pode absorver”, escreve Dragui.
Propõe a mobilização de todo o sistema financeiro (mercado de títulos, bancos ...), para garantir liquidez à economia, por meio de descobertos e linhas de crédito, garantidos pelos Estados.
Finalmente, considera que os Estados devem assumir a maior parte das dívidas das empresas, que não conseguiriam sobreviver “se as dívidas para manter os empregos não forem canceladas”.
Outros economistas propõem a nacionalização de empresas essenciais ou estratégicas, para livrá-las da falência e garantir-se a retoma.
No Reino Unido, o Governo colocou sob controlo estatal a Companhia dos Caminhos de Ferro. Em Portugal pondera-se a re-estatização da TAP...
Em quase todos em todos os países foi declarado o estado de emergência. Nalguns, como na Hungria, aproveita-se para suspender a própria democracia.
Há muito tempo os Governos, em regimes democráticos, não tinham tido tantos poderes. Sistemas informáticos, a pretexto da doença, estão a ser instalados para controlar os dados dos cidadãos, limitando ainda mais os direitos, as liberdades e as garantias individuais...
Quanto aos neoliberais de serviço, não tenhamos dúvidas, serão os primeiros a adaptar-se, a mudar de narrativa, a aproveitar-se da comoção que esta dolorosa pandemia provoca.
“Os seres humanos pensam através de narrativas e não através de factos”, escreveu o historiador Yuval Noah Harari. Doravante, a narrativa é simples: neste vale de lágrimas que o Covid 19 nos deixa de herança, o Estado tem que intervir decisivamente para salvar as empresas e as pessoas. Já não contam as metas do déficit, da dívida, do crescimento, esqueçam todos os compromissos antes assumidos, agora é a vez do Estado, depois logo se verá... sempre se pode mudar de narrativa. As pessoas são o pretexto para mais e mais e cada vez intervenção do Estado, se possível sem a fiscalização do Parlamento e da Oposição Democrática.
Após a Segunda Guerra Mundial foi também assim. O Reino Unido e a França nacionalizaram as grandes empresas, pelo meio houve o Plano Marshall, os déficits e as dívidas. Depois dos anos de ouro do crescimento e da prosperidade, nos finais dos anos 70, Margaret Thatcher e Ronald Reagan mudaram a narrativa: a sociedade não existe, existe o indivíduo. O Estado deve retirar-se para dar lugar ao indivíduo, privatizando a economia. Precisa-se de menos Estado e de mais indivíduo. As pessoas assim ganharão mais, pois o seu bem estar depende das suas escolhas individuais, do seu livre arbítrio.
Foram desmantelados serviços públicos essenciais como a educação e a saúde, as infraestruturas básicas degradaram-se, a desregulação foi quase total. Constatamos, agora, os resultados: aumento do desemprego, da pobreza e das desigualdades. O nacionalismo e o populismo, em certa medida, são, também, consequências dos descontentamentos dos excluídos do progresso prometido e da globalização consumada.
O COVID 19 já está a obrigar à mudança de narrativa. E ninguém envergonhar-se-á do que teria dito ou escrito ontem.
Foi sempre assim.
Artigo publicado pelo autor no facebook
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