A Sokols 2017 é e vai ser sempre uma espécie de “watch dogs” da acção governativa, assegura Salvador Mascarenhas, porta-voz da associação, que, em entrevista ao Santiago Magazine, enaltece a participação dos sanvicentinos na manifestação de 5 de Julho último ao mesmo tempo que acusa, mais uma vez, o actual e os anteriores governos de um excessivo centralismo, que, aos poucos, está a “matar” S. Vicente e demais ilhas do país.
Santiago Magazine - Como avalia a adesão da população de São Vicente à manifestação que a Sokols 2017 realizou no passado dia 5 de Julho? Ultrapassou a vossa expectativa ou ficou aquém?
Salvador Mascarenhas - Foi uma adesão estrondosa, ultrapassou as nossas expectativas. Tínhamos como meta atingir o mesmo número de manifestantes que reunimos em 2017 e a manifestação “Por Soncent, Quem Cala Consente” foi a maior de sempre, calculamos que participaram entre 12 a 15 mil pessoas. Isso demonstra que o grau de desagrado das pessoas para com o centralismo e bloqueio das ilhas tem aumentado, que já não embarcam nas falsas promessas. É de realçar que houve uma grande campanha contra a manifestação pela situação, promovendo um grandioso baile até às tantas da madrugada, produzido pela Câmara Municipal de São Vicente, que devia ser a primeira na linha de defesa dos interesses da ilha, além de torneios de futebol com almoços gratuitos (iniciativa da JPD), passeios para praias com feijoada, matanças de tchuk no momento da manifestação. E ainda a habitual campanha de desinformação com boatos de que a manifestação tinha sido cancelada ou que se tinha alterado a hora e o local de concentração, bem como deslocação de ministros, fazendo promessas e apresentando projetos de última hora para S. Vicente e a já muito batida e desacreditada acusação de que estamos a mando da oposição, com a inacreditável publicação na página oficial da JPD de uma montagem em que alegavam que a Sokols está ao serviço do PAICV. As pessoas mostraram-se mais engajadas e mais conscientes nesta manifestação do que na de 2017, onde se exprimia a intensa reclamação da má governação dos 15 anos do PAICV e um sério aviso ao governo que começava logo a falhar nas suas promessas. Agora em 2019, quando se grita “Autonomia Já!” sente-se que é uma ideia apreendida e vista como uma solução para o problema do centralismo pela população.
Baptizaram a manifestação com o título "Por São Vicente, quem cala consente". Querem com isto dizer que quem não esteve com a Sokols é porque apoia as políticas do Governo, ou a ausência delas, para com S. Vicente?
O mote “Por S.Vicente, Quem Cala Consente” é um apelo contra o imobilismo e a conformação de que a degradação da ilha é um facto consumado, e veio a demonstrar que a população é madura o suficiente para exercer a sua cidadania activa, respondendo em massa à convocação de se manifestar pela sua ilha e pela região Norte, pois tivemos manifestantes de Santo Antão e de S. Nicolau, que são ilhas irmãs e que sofrem pelo mesmo motivo, que acreditam que podemos mudar e que a alternativa deve emergir da própria sociedade civil independente. Uma grande participação da juventude contraria a ideia de que os mais novos só pensam em festas, o que nos dá uma grande esperança nas gerações que despontam.
Acredita que as vossas manifestações, ou as de qualquer outra organização civil da sociedade civil, poderão levar o actual Governo de Cabo Verde a alterar as suas políticas, nomeadamente as que afectam S. Vicente?
Após algumas manifestações não esperamos grandes alterações da governação para com a ilha. Um claro objetivo nosso é demonstrar que as pessoas já não toleram mais esta forma de dirigir o país e que sairão à rua mais vezes se for necessário. A única saída é a alteração do sistema e sabemos que a melhor opção é pela via política. Por isso a manifestação também vem dar ânimo à sociedade civil para que se organize em grupos independentes para se candidatarem aos órgãos do poder, alterando o paradigma, infelizmente, medíocre e inquinado das atuais formações partidárias, que não têm projetos para o país e muito menos para S. Vicente e a Região Norte, mas apostam na sua reeleição para perpetuarem a alimentação das suas agendas pessoais, partidárias e das suas clientelas, resultantes dos apoios nas campanhas eleitorais.
Alguma vez sentiram-se coagidos ou sofreram ameaças, ainda que veladas, para não saírem à rua?
Temos de reconhecer que houve uma natural evolução na democracia cabo-verdiana, também resultante da influência das redes sociais e do contacto com outras realidades. Isso provocou esse lógico amadurecimento dos cidadãos, que agora exigem tomar parte nas decisões importantes nas suas vidas, e naturalmente o desejo de mais autonomia num pais arquipelágico. As coações que sentimos não passam de algumas ameaças através de mensagens anónimas e de alguns afiliados que são pressionados pelas chefias em organismos estatais para que não participem abertamente, alegando razões institucionais, mas que felizmente não beliscam a nossa vontade porque é uma questão de sobrevivência; como dizemos “ô nô ta vrá ô nô ta ruvrá” (ou viramos ou reviramos).
Durante a campanha para as eleições legislativas de 2016, uma das principais bandeiras do MPD foi a promessa da regionalização, mas a lei não conseguiu passar no Parlamento. Como interpreta este desaire?
A promessa do MPD foi de mais autonomia e que a ilha seria uma experiência piloto de regionalização, e claro que nós todos pensávamos numa regionalização com verdadeira descentralização, o que não tem nada a ver com o projeto apresentado no parlamento. A proposta de regionalização administrativa é um verdadeiro embuste, pois, aumentaria as despesas num pais pobre e insular e manteria o sistema centralizado, criando “jobs for the boys” e até, possivelmente, cristalizaria o status quo, sob a alegação de que o país estaria já regionalizado, bloqueando a verdadeira descentralização que passa pela autonomia das ilhas. Isso significa também autonomia a nível fiscal, que nos permitiria, por exemplo, baixar o IVA e reter parte dos impostos em S. Vicente, promover o investimento externo directamente, principalmente da diáspora esquecida, decidir os projetos e as prioridades para a Ilha e construir uma maior cooperação comercial e política na região norte para gerir o sector dos transportes com mais eficácia e funcionalidade. Aliás, esta é uma das maiores provas da incompetência e do amadorismo dos sucessivos governos de Cabo Verde até esta parte. Toda a nossa ideia assenta-se num pais com verdadeira meritocracia, transparência governativa, justiça (fundamental e pedra basilar de qualquer sociedade) e solidário, sendo a educação, saúde e habitação sectores fundamentais para que Cabo Verde seja um país desenvolvido.
Que avaliação a Sokols faz das medidas que o Governo tem adotado ou pretende adotar em S. Vicente, nomeadamente a transformação do Porto Grande num “hub”, a instalação do Ministério da Economia Marítima no Mindelo. São meros paliativos ou são medidas de facto importantes para mudar para melhor a situação de S. Vicente?
Uma maioria esmagadora dos sanvicentinos têm a consciência de que os diferentes governos (PAICV e MPD) jamais tiveram um plano para desenvolverem S. Vicente, mas sim projetos avulsos (alguns até fantasiosos e vazios), não cumpridos, para “tranquilizar” a população e adormecê-la, enquanto a massa crítica é comprada pelo sistema, emigra ou foge para a capital, tornando menos contestatária a ilha e obrigando as pessoas a um registo de resignação e sobrevivência. O hub marítimo do Mindelo é uma falácia, basta olhar para o desenho das atuais linhas marítimas da Transinsular, ela própria sediada na capital, para nos apercebermos de que, na realidade, o hub marítimo que há muito passou para o porto da Praia, perdendo o país porque desperdiçamos um dos melhores portos naturais do mundo, que já foi até cobiçado pelas grandes potências mundiais durante a segunda guerra mundial. A vinda do Ministério dos Transportes e Economia Marítima para a ilha, com base numa ideia de descentralização, ironicamente coincidiu com o próprio bloqueio dos transportes, por isso não passa de um elefante branco, tanto na sua ação como no volume reduzido de funcionários. Esta situação de bloqueio dos transportes tem graves reflexos na economia mindelense, que assenta no comércio e serviços. Unidades hoteleiras da Boa Vista, que antes faziam compras em S. Vicente, já não a fazem por deficiência de transportes de e para a ilha do Porto Grande, redirecionando para a capital. Unidades de saúde privadas que recebiam pacientes de várias ilhas viram reduzida a sua clientela das outras ilhas porque esta têm muito mais facilidade em ir à Praia. O preço abusivo dos transportes aéreos, tanto da TAP como da Binter, além de reduzir a mobilidade dos cidadãos e dos emigrantes, fazem com que gastos que poderiam ter sido feitos na ilha sejam desviados para o transporte. E a ocupação hoteleira reduziu, a indústria de camarões está seriamente em perigo, a indústria de ovos tem dificuldades para colocar os seus produtos nas outras ilhas, as fábricas de componentes enfrentam dificuldades para receber e exportar peças, e as lojas queixam-se do preço exorbitante dos bilhetes somado ao custo alfandegário elevado e à capacidade de transporte de carga pela TAP versus CV Airlines. Tudo isto tem um reflexo altamente negativo na rentabilidade dos negócios e consequentemente no emprego e a nível salarial.
O centralismo do Governo é a única e exclusiva razão do marasmo económico em que S. Vicente se encontra?
O centralismo é a principal causa do marasmo económico, pois coloca todos os meios de geração de riqueza na capital, como os ministérios, os institutos e órgãos reguladores, num pais pobre e arquipelágico, criando a brutal e destruidora assimetria regional de que muito se fala mas nada se faz de facto para alterar esse estado de coisas. Levando em conta a abordagem que o governo faz da problemática da assimetria regional e da sua vontade de descentralização, como anunciam a construção de uma mega sala de conferências na capital e centralização dos serviços de saúde com a construção de um hospital central de Cabo Verde, centralizando os serviços de saúde, sabendo que já há uma descentralização neste sector (Norte e Sul)? O desejável era descentralizar mais a saúde pelas outras ilhas, por exemplo a construção de um hospital na Boa Vista, que tanto precisa. Praia já é capital e tem todas as vantagens já descritas de sediar mais de 80% de todas as estruturas governativas do Estado de Cabo Verde, com todas as consequências económicas, e no entanto os centralistas continuam a querer que a capital seja a capital de tudo, como por exemplo na construção do campus universitário, que se fosse construído no Mindelo poderia alavancar a economia da região e sermos a capital académica como acontece em todos os países desenvolvidos, como a Holanda, onde temos uma capital politica, outra financeira, outra cultural, etc. Assim, jamais caminharemos para um Cabo Verde harmonioso, equilibrado e justo, e isso seria um win-win para todo o país. A própria cidade da Praia, devido ao êxodo das outras ilhas para o centro tem graves problemas urbanos nas suas franjas. Jamais acusamos o povo irmão de Santiago de alguma culpa porque não seria lógico, mas sim o bando de sugadores, que arrisco a chamar de quadrilha porque têm uma atitude criminosa para o país, mantendo politicas centralizadoras que destroem a vida de muita gente, e isso é transversal aos dois partidos, havendo, é claro, honrosas exceções de militantes de ambos, que até apoiam as nossas justas reivindicações. Somado a isso tudo, a má gestão da governação local, que não defende os interesses da ilha.
Há movimentos cívicos que se transformam em partidos e concorrem a eleições, entrando assim para a política partidária. Isso pode vir a acontecer com a Sokols 2017?
A Sokols 2017 assume-se como um barómetro da governação, mesmo estatutariamente, blindando a sua participação na vida político-partidária. Queremos continuar como vigilantes (watch dogs) e como facilitadores e estimuladores da cidadania ativa. Mesmo se um grupo independente de cidadãos for eleito e que tenha os nossos mesmo ideais, não escapará a nossa vigilância escrutinadora, porque o poder corrompe absolutamente. Sonhamos com um Novo Cabo Verde, harmonioso, equilibrado, justo e descentralizado, onde impere a luta contra a corrupção, a meritocracia, a transparência governativa, a solidariedade e o aumento da participação dos cidadãos no governo da coisa pública.
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