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Lugar mais perigoso para uma mulher não é um beco escuro ou um campo de batalha, é a própria casa
Entrevista

Lugar mais perigoso para uma mulher não é um beco escuro ou um campo de batalha, é a própria casa

Neste mês em que as atenções estão sobremaneira centradas na mulher, o ICIEG lembra que o lar continua a ser o lugar mais perigoso para elas, em Cabo Verde e no resto do mundo. No nosso país, só no ano passado sete perderam a vida às mãos de seus companheiros ou ex-companheiros íntimos. A guerra contra este mal pode ser vencida, mas o esforço de toda a sociedade tem de ser contínuo e a longo prazo, diz o ICIEG, pela voz de Rosana Almeida, Kátia Marques e Isis LaBrunie,  neste exclusivo ao Santiago Magazine. 

Santiago Magazine - O número de mulheres que foram vítimas de femicídio em 2018 é inferior ou superior ao dos anos anteriores? 

Isis Labrunie (IL) – No ano 2017 contamos cinco casos de femicídio, já em 2018 foram 7 casos. Portanto, se compararmos um ano com o outro, podemos dizer que teve um aumento. Mas mais interessante do que comparar um ano com o outro é analisar a tendência. Por exemplo, no ano 2006, houve 5 casos de femicídio, um ano especialmente alto, e foi antes da aprovação da lei VBG. Depois da aprovação da lei houve um decréscimo de casos de femicídio e uns anos depois estamos a verificar um aumento. 

Embora o aumento de 2017 para 2018 não seja expressivo em termos numéricos, o que isso significa? 

IL - Para falar bem da tendência do femicídio talvez seja preciso primeiro explicar o que é femicídio. Quando falamos de femicídio estamos a referir a mulheres assassinadas pelo facto de serem mulheres, num contexto de VBG e machista. Femicídio e assassinato de mulheres não são a mesma coisa. Se olharmos para 2018, em Cabo Verde, segundo dados da Polícia, 10 mulheres foram assassinadas e pelo menos sete podemos enquadrar como femicídio. Essas sete mulheres foram assassinadas pelos companheiros ou pelos ex-companheiros íntimos. Ou seja, das mulheres mortas em Cabo Verde 70% foi morta pelos companheiros íntimos ou ex-companheiros. É uma tendência mundial e há um relatório da ONU, lançado no final de 2018, que aponta que o lugar mais perigoso para uma mulher não é um beco escuro ou um campo de batalha, é a própria casa. Esse estudo diz que mais da metade dos homicídios do género feminino são cometidos por íntimos ou familiares. O que significa isso? Primeiro, o espaço doméstico não é tão seguro como se pensa. Precisamos conversar sobre o que acontece no espaço doméstico, que muitas vezes é visto como problema de cada um e de cada uma, quando na realidade não é bem assim. Temos de desmistificar esta noção do espaço doméstico como um espaço neutro. Também significa que temos que continuar este caminho que estamos fazendo – ainda temos um bom caminho pela frente – para alcançar a igualdade. Tem gente que me diz que o machismo não existe, que é uma invenção. A minha resposta é que basta olhar para os dados para ver claramente que o machismo iexiste. 

Em Cabo Verde os autores do crime de femicídio são companheiros íntimos ou ex-companheiros, mas em outros países, o próprio pai, os irmãos, os tios são muitas vezes o assassino. No nosso país não há registo de casos de femicídio cometidos por parentes homens? 

IL - Existe claramente em Cabo Verde essa tendência de os companheiros ou ex-companheiros íntimos serem os assassinos. Também é verdade que a problematização dessa questão debaixo do termo femicídio é relativamente nova. Então, podemos analisar o ano que passou e concluir que precisamos ter uma atenção cuidadosa, que já está a acontecer, durante um período mais longo para podermos entender melhor a questão. A Lei VBG não se limita às relações íntimas dos casais, existe VBG fora do âmbito das relações amorosas, sem dúvida. 

Mas há em Cabo Verde VBG praticada por pais, irmãos, tios?

IL - Não posso falar do femicídio nessa linha, pois não temos dados sobre isso. Mas, sem dúvida, acontecem em Cabo Verde muitas manifestações de VBG que não estão limitadas às relações entre casais. 

E o que se pode fazer para evitar que a VBG chegue ao ponto de perda de vidas humanas?

IL - Para combater a máxima manifestação da VBG, temos que dar respostas à VBG. Temos que continuar o trabalho que está a ser feito, de sensibilização, pois isso é importante tanto para se conseguir uma mudança de mentalidade para se poder alcançar a igualdade, como também para dar a conhecer a lei, fomentar a denúncia, pois temos que lembrar que a maioria dos casos de VBG não são denunciados, e grande parte das vítimas de femicídio não fizeram qualquer denúncia. Mas também podemos dizer precisamos ir além do que já está a ser feito. Neste sentido, considero que uma das principais medidas a ser trabalhadas são as medidas de protecção das vítimas, que é necessário reforçar. 

Afirmou que algumas (ou a maioria) das vítimas de femicídio nunca apresentaram queixa. Quererá isto dizer que o femicídio pode acontecer sem que antes tenha havido qualquer manifestação de VBG? 

IL - O femicídio não é um caso que acontece isoladamente. Femicídio é um acontecimento que ocorre depois de o ciclo de violência ser repetido várias vezes. Mas também é verdade que a maioria das vítimas nunca pensa que isso vai acontecer com elas. Há até mulheres que reconhecem que estão vivendo uma situação de violência, mas nunca admitem que podem vir a ser parte de uma estatística de assassinato. Isso é uma questão que temos que trabalhar, esse preconceito que temos sobre o homem que mata mulheres. É visto como o bicho-papão, mas depois vemos que essa imagem não se encaixa com a realidade. 

As mulheres acreditam nas promessas do agressor de que vai mudar o seu comportamento? 

IL - Sem dúvida. Existe um pouco a ideia de que as mulheres que aguentam a violência são burras, mas isso não é verdade. Elas não se apaixonam nem têm dependência de um homem que as maltrata, que as agride, elas gostam é da pessoa que as faz sentir queridas, especiais. Depois de um ciclo de violência vem geralmente a etapa da “lua de mel”, na qual o agressor diz que está arrependido (e provavelmente está arrependido), lamenta o que aconteceu, é muito atencioso, faz promessas de que isso não vai voltar a acontecer, e a mulher que ama o companheiro acredita, e isso a expõe a um risco imenso. 

Sabemos que o femicídio deixa órfãos. Como são ajudados os filhos das vítimas mortais?

IL - Em 2018, 12 crianças órfãos como consequência dos casos de femicídio. É uma tragédia social em todos os sentidos. Esses órfãos têm acesso às mesmas medidas de protecção social que os demais menores em situação precária no país. Temos que lembrar que o femicídio não está ainda tipificado em Cabo Verde, não há nenhuma menção a isso em nenhuma lei, nem na lei VBG, o que dificulta a criação e a orçamentação das medidas especiais de acompanhamento e intervenção social, que são necessárias, sem dúvida. Os centros de apoio às vítimas, os chamados CAV, têm dado apoio às famílias das vítimas assassinadas, mas é urgente o reconhecimento legislativo e legal do fenómeno, assim como a criação e orçamentação de medidas de reparação e medidas de apoio para as vítimas indirectas, que são, neste caso, as crianças. 

Quais são as expectativas do ICIEG quanto à hipótese de Cabo Verde vir a ter uma lei que reconhece o femicídio como crime?

IL -  Cabo Verde vai ter uma lei, a questão é quando. O lado positivo de todo este panorama que estamos vivendo, e que é negativo, é que tem gerado uma atenção da sociedade civil e também dos políticos e dos órgãos de decisão e espero, quer como Isis quer como técnica do ICIEG, que sejam criadas as condições necessárias para que isso vá para a frente, rapidamente, porque precisamos da tipificação para proteger as vítimas indirectas, fazer estudos, ter um protocolo, um seguimento estatístico, e esperamos que seja da forma mais acelerada possível. 

As crianças que vêem as mães morrerem às mãos do próprio pai são separadas dos pais? Além desta, que outras medidas são possível tomar? 

IL - No caso de um femicídio, enquanto o agressor está na cadeia o contacto com os filhos é restrito e limitado pelos motivos óbvios, mas tudo o que diz respeito a tutela e custódia dessas crianças tem de ser decidido por um juiz. 

Imaginando que o juiz não decide pelo afastamento completo do pai desses seus filhos, essas crianças, especialmente as meninas, correm risco de também serem mortas? 

IL - Essas crianças, sem dúvida, estão em situação de risco, talvez não tanto de serem mortas, mas, como disse antes, o femicídio não é uma situação isolada, é a consequência última da repetição de um ciclo de violência, e as crianças que são testemunhas dessas situações, mesmo que não venham a ser vítimas de femicídio, acabam por sofrer severas consequências psicológicas, e nesse sentido, as crianças que vivem perto de VBG, principalmente se vivem com o agressor, estão em risco. 

Que medidas concretas Cabo Verde já adoptou para prevenir a VBG e o femicídio? 

Rosana Almeida (RA) - Quando a situação for de risco, depois de um atendimento psicológico que se faz às famílias, se o agressor está na cadeia, e se a mãe morreu ou não tem condições, há uma articulação estreita com várias entidades e instituições, nomeadamente o ICCA, que faz o acompanhamento, e algumas dessas crianças vão para os centros de emergência infantil. Quanto às medidas de protecção, nós nos articulamos com a Direcção Geral de Inclusão Social e atribui-se cestas básicas e há uma série de outros mecanismos que utilizamos para garantir que as crianças têm a assistência necessária e para que a família possa proporcionar-lhes uma vida. Também trabalhamos para que a criança não continue a ser vítima por vários outros motivos. Ser vítima de VBG tem já consequências psicológicas fortes, então, numa articulação com os nossos parceiros – OMCV, ICCA, Morabi, entre outros - vamos tentando dar respostas às vítimas, mulheres e crianças. 

IL - Trabalhamos em muitas linhas. Por um lado, apostamos na informação e na sensibilização, trabalhando com as escolas, os professores e a sociedade em geral, com a PN, técnicos de saúde, centros de apoio às vítimas, a rede Sol, promovendo actividades culturais promotoras de igualdade. No ano passado por exemplo, o ICIEG lançou um curso de contos de igualdade, que foi um êxito. Também trabalhamos através do teatro do oprimido; também promovemos a protecção das vítimas, que também é muito importante, com as casas de abrigo e as casas de passagem e através dessa rede de apoio social, que é a rede Sol, que também é muito importante, assim como as ONG e instituições que são parceiras do ICIEG, e a Ordem dos Advogados de Cabo Verde, que tem um acordo connosco e fornece um advogado para fazer acompanhamento dos casos, o que podemos enquadrar dentro do que é protecção das vítimas. Outro eixo importante deste trabalho é a reabilitação dos agressores, que está vinculada à reinserção social e o Laço Branco trabalha com os agressores  para evitar a reincidência e também a reprodução e a retransmissão desses valores que são transmitidos a toda a sociedade e em particular às crianças, aos filhos desses casais. 

RA - Neste combate elegemos parceiros prioritários. Para combater os estereótipos de género trabalhamos intensamente com a Associação de Homens contra a Violência Baseada no Género – o Laço Branco, com quem saímos o ano inteiro no terreno pra falar sobre novas formas de masculinidade, porque, infelizmente, somos uma sociedade estereotipada, patriarcal e é preciso promover uma verdadeira mudança de mentalidade, que passa por uma abordagem com homens, sobretudo, para falar sobre o que fazer para melhorar o seu comportamento perante a família, para uma cultura de mais tolerância e para promoção de igualdade em Cabo Verde. Essa parceria com o Laço Branco tem sido bem sucedida. Também é importante a aposta que estamos a fazer na formação de líderes comunitários, e só este ano formamos mais de 300 líderes comunitários porque, dada a limitação financeira do ICOEG, o importante é focar em agentes que conseguem chegar às comunidades para impactar e mudar mentalidades. Com a Cooperação Espanhola estivemos no terremo e formamos líderes comunitários e foi impressionante o engajamento e o trabalho que estes líderes estão a fazer no terreno para diminuir a VBG. 

Sabemos que a mudança de mentalidades é um processo demorado, leva gerações a produzir bons efeitos, o que implica que não se pode baixar a guarda. Há que estar permanentemente, não é?

Kátia Marques (KM) - A VBG tem bases de construção social do género, isso quer dizer que temos de começar a trabalhar desde cedo. Às vezes ouvimos pessoas a dizer “com os adultos já não tem jeito”, mas não é assim. O trabalho deve ser contínuo, persistente, se formos baixar a guarda na segunda ou terceira acção não conseguimos atingir os objectivos. A mudança de mentalidade, de atitudes e de comportamentos leva o seu tempo, bastante tempo. Por isso, é mais fácil trabalhar com crianças, que ainda estão na fase de construção da personalidade, dos conceitos, mas neste caso também tem que ser um processo continuado, e aqui é preciso trabalhar com quem as ensina, os professores. 

O que está a ser feito para evitar a reincidência dos agressores. Que tipo de trabalho/abordagem é feito nestes casos? 

IL - O trabalho de reabilitação tem sido feito através de grupos, com resultados muito positivos; são grupos de agressores que têm um período de trabalho de alguns meses, onde eles têm espaço para poder falar com completa sinceridade, e se questionar também, porque muitas vezes o trabalho interpares funciona muito bem, pois permite se questionar sem ser atacado

RA - Temos uma parceria muito estreita com o Ministério da Justiça, e também com o Laço Branco. A transversalidade do tema exige que cada um faça a sua parte. O combate à VBG não se consegue ser articulação policial, Ministério Público, Ministério da Saúde. Não adianta o ICIEG fazer o seu trabalho, se a vítima vai ao hospital e não é bem atendida e o auto não chega à Polícia, e a Polícia não dá respostas e não vai à Procuradoria e a Procuradoria não responde. Portanto, temos vários parceiros. O Ministério da Justiça tem sido um parceiro-chave nessa política de reinserção dos arguidos porque a nossa aposta recai sobretudo na prevenção. A aposta é sensibilizar, seguir para evitar reincidências e acompanhar o arguido depois do seu reingresso na famíli.

Existe sempre o risco de reincidência, ou seja, de a vítima voltar a ser agredida? 

KM - Sim, há casos de vítimas que saíram de uma relação abusiva, em que o agressor foi condenado, e inicia uma outra relação também abusiva. E há vítimas que foram agredidas várias vezes pelo mesmo agressor. 

IL - Nesta questão, a tendência natural é a reincidência. Porque o que está na base dessa violência são as hierarquias de poder que existem, e a tendência natural de qualquer sistema é a reprodução até que aconteça algo que corte, que modifique esse sistema. E como a Kátia disse, a reincidência não acontece só de um dos lados, pode ser dos dois lados, tanto do agressor como da vítima, mas a culpa nunca é da vítima, mas também é verdade que temos que analisar qual é a dinâmica da problemática para podermos dar respostas adequadas.

Quer dizer então que o trabalho de evitar a reincidência abarca também as vítimas? 

IL - Sim, mas são trabalhos diferenciados. Trabalhamos com os arguidos e também com as vítimas, por isso é tão importante o acompanhamento psicológico para garantir o bem-estar delas naquele momento e também para os anos que virão, é fundamental. Ou seja, o público-alvo é diferente, as problemáticas são diferentes, portanto, devem ser trabalhadas com muito cuidado, a receita que funciona com um grupo não pode ser aplicada em outro grupo e esperar os mesmos resultados, há que adaptar. 

KM – O programa tem 12 sessões, cada sessão com o seu tempo, portanto, é só segui-lo. No caso das vítimas, cada uma delas tem um plano individual de tratamento e seguimento, personalizado de acordo com as necessidades de cada uma. Assim trabalhamos questões como auto-estima, empoderamento, educação, género, VBG. 

Os homens compõem a maioria dos agressores em casos de VBG. O que leva os homens a enveredar por esse caminho, agredir até matar? As causas são de origem cultural ou psicológica? 

IL - O que leva um homem a agredir uma mulher até matá-la é o mesmo motivo que o leva a agredir sem matar. Isso tem, sem dúvida, a ver com a cultura, especificamente com a cultura machista, o patriarcado, e também com a forma como educamos os homens e as mulheres, os estereótipos e os papéis de género. Os meninos são educados para não saber gerir as emoções e as meninas são educadas para não colocar limites ou até para não reconhecer a violência. Também ter a ver com a própria ideia do amor que nós temos e reproduzimos através dos filmes, das telenovelas e da comunicação social, em geral, por exemplo a ideia dos ciúmes e da possessividade como provas de amor, essa noção do amor incondicional, que tudo aguenta leva a uma naturalização e a uma normalização da violência. Temos que entender que o homem que mata a sua mulher não é necessariamente um psicopata, pelo contrário, normalmente é um homem bem integrado e respeitado na comunidade. Temos que desmistificar essa ideia de que o agressor é um desequilibrado, mas vê-lo como ele é, uma pessoa educada num sistema machista e violento. E muitas mulheres, não sabendo que vivem situações de violência, pensam que aquilo não vai acontecer com ela. Mas a VBG tem também uma componente psicológica. 

Os media são importantes neste processo de mudança de mentalidades sobre o que é amor. Muitas canções que passam na rádio, por exemplo, transmitem a ideia de fatalidade, por exemplo, “eu fui feito só para ti e tu foste feita só para mim”. O que alguém vai pensar quando ouve isso repetidamente: és tu ou mais ninguém? 

IL - Claro!! 

Como combater isso? 

IL - As manifestações culturais espelham, reproduzem a sociedade na qual aparecem. Como é que podemos mudar o conteúdo das letras das músicas? Talvez não devíamos mudar as letras, mas a sociedade que não só produz, como consome esse tipo de letra. Bem, na verdade, as manifestações culturais sempre foram bastante machistas, não é coisa nova, não é coisa das novas gerações. 

RA - Mas há um lado bom de uso da música para transmitir ideias. Assim como são feitas e produzidas porque as pessoas gostam de ouvi-las, como diz a Isis, hoje também temos rappers, por exemplo, que têm bastante aceitação social, que estão a trabalhar nessa mudança de mentalidades. Vemos o Hélio Batalha que está a trabalhar para agir sobre a grande massa contra a VBG. Agora, precisamos também que os órgãos de comunicação social tenham uma sensibilidade apurada para promover a tolerância e comecem a filtrar e fazer o seu papel de construtores de uma cultura da paz. A comunicação social, a entidade reguladora do sector, a publicidade, muita coisa precisa ser trabalhada. O lado bom de tudo isto é que já uma consciencialização, as pessoas já falam do assunto sem complexos, já um despertar. As mulheres começam a perder medo de denunciar, e os homens também, pois também recebemos homens. O bom de Cabo Verde é que estamos a ter a noção e a sentir que a questão da igualdade já entrou e já começa a entrar na agenda pública. Para nós, ICIEG, isto é uma indicação de que estamos num caminho que a curto, médio e longo prazo pode nos conduzir a um mínimo de resultados que esta sociedade precisa e espera. 

IL - Falávamos há pouco das causas da VBG. Queria adicionar sobre isso que os factores psicológicos também são importantes, principalmente quando falamos dos casos de femicídio e sobretudo daqueles que são premeditados.Um elemento que temos que considerar é o desespero. Porque não pode ser coincidência que grande parte dos femicídios ocorra depois de acontecer a separação entre um casal, quando o agressor está desesperado e acha que vai perder a companheira para sempre. A relação de dependência emocional existe não só da vítima com o agressor, é também do agressor com a vítima, num contexto em que o outro sente medo de perder a sua metade, a sua alma gémea, conceitos esses que criámos para definir o que é o amor e que acabam por justificar um amor possessivo, doentio, a ideia de que não pode deixar escapar a outra pessoa porque estará deixando fugir uma parte do seu ser. 

Também há ainda a ideia de que um homem não admite ser preterido por outro ou simples ser deixado…

IL - Isso tem a ver com a construção da masculinidade. Por isso também muitos femicídios são seguidos de suicídio, o que para mim é um acto de desespero, de uma pessoa que erroneamente acha que não tem alternativa. Erroneamente, porque é claro que existem alternativas, mas para essa pessoa não é tão claro assim. Por isso temos que ensinar os homens a gerir as suas emoções, mostrar-lhes quais são as saídas para a frustração, além da violência. É certo que as vítimas de VBG/femicídio são as mulheres, mas temos que trabalhar esta questão abarcando não só as mulheres. Temos que dedicar atenção igual ou, quem sabe, ainda maior aos homens. 

Há outras formas de VBG. Pode nos falar sobre isso? 

IL - A lei que temos em Cabo Verde contempla cinco formas de VBG: a física, a psicológica, a sexual, a patrimonial, que tem a ver com o lado financeiro e que é menos fácil de reconhecer, e o assédio sexual. Mas existem outras e que podemos ver em Cabo Verde de forma clara, que são a violência através das TIC, que, em alguns países chamam já de “violência telemática”, que tem manifestações diferentes, tais como vídeos íntimos divulgados na net para humilhar a sexualidade feminina, o controlo das redes sociais, a violência simbólica (piadas e comentários machistas e homofóbicos), violência institucional (o homem que dá queixa de VBG é emotivo de chacota, um casal que é mandado para casa para resolver o problema). Estes três tipos de violência não estão tipificados na nossa lei. Assim, olhando para a nossa lei, vemos que está limitada, temos uma noção bastante restringida do que é o assédio sexual. A lei cabo-verdiana de VBG aborda o assédio sexual particularmente no espaço de trabalho e no espaço educativo, sempre numa relação de hierarquia, mas acho que qualquer pessoa com quem você pára para conversar sobre assédio é capaz de dizer não só que acontece nesses dois espaços mas também acontece em outros contextos, nomeadamente em relações horizontais. O nosso código penal terá de acompanhar essa evolução. 

Há também casos de VBG que culminaram na morte de companheiros ou ex-companheiros íntimos. Temos registo de casos do tipo em Cabo Verde? 

IL -  Sim. Temos registo de casos, mas não nos últimos anos. É uma questão que teve atenção social, mulheres que mataram os maridos, mas depois, no âmbito da investigação do que aconteceu, se deu conta de que a maioria eram vítima de longa data de VBG e que um dia chegaram ao limite e partiram para a agressão e, ainda mais, agressões muito violentos, cujo objectivo era mesmo provocar a morte do companheiro, mas como resultado dessa violência continuada de que eram vítimas. 

Houve uma época em que a maioria das mulheres que estava presa nas cadeias de Cabo Verde por assassinato tinha sido vítimas de VBG. Pergunto: nesses casos, não se considerou que mataram em legítima defesa? 

IL - A lei VBG inclui um artigo que fala dessa questão (a legitima defesa) como atenuante da pena. De facto, são poucos os países onde a legítima defesa não leva a que não haja consequência judicial. Na maioria dos países, aplica-se uma pena, mas há atenuantes, as circunstâncias que explicam a situação, e são e devem ser levados em conta, mesmo que a violência não tenha acontecido no momento em que se cometeu o assassinato do agressor. 

Quem é vitima de VBG, as mulheres em particular, correm um risco maior de se tornarem elas próprias de praticarem VBG? 

RA - Não há dados que comprovam isso, pelo menos em Cabo Verde. Aliás, o foco é prevenir, sensibilizar. O cavalo de batalha deve ser as respostas que damos ao femicídio, e que é o Sistema de Avaliação de Risco, que é algo extremamente importante …. É a resposta institucional que se dá ao femicídio. Em que consiste esse Sistema de Avaliação de Risco? Para evitar e prevenir existe uma articulação com parceiros essenciais que têm estado nesta luta com o ICIEG. A partir do momento em que a vítima vai à Polícia, presta depoimento e o agente que lá está, que já tem formação na área e, portanto, está em condições de atender a vítima, consegue determinar pelas respostas que a vítima dá qual é o nível de risco em que esta está. Há quatro níveis de risco: médio, alto, extremo e iminente. Iminente é o nível máximo. Se o polícia detectar que no depoimento que a vítima corre sérios riscos, o procedimento automaticamente deve ser de acordo com o nível de risco, e é obrigado a acompanhar a vítima e a acompanhar o agressor.

IL - Na hora de dar combate ao femicídio cada actor tem o seu papel. A sociedade civil tem um papel claro, o de não tolerar a VBG, e o serviço público, que deve também ter um papel claro. E neste caso, o processo de entrada das vítimas na protecção do serviço público através da denúncia, e nesse momento é aplicado o módulo de avaliação de risco, pelo qual as vítimas são classificadas de acordo com o nível de risco que pode ser diagnosticado naquele momento e uma das grandes novidades é que a partir dessa avaliação de risco é activada uma série de medidas de protecção, que variam de acordo com o risco particular de cada vítima, mas que são ferramentas fundamentais na hora de proteger as vítimas. É fundamental que as vítimas denunciem, mas também é fundamental que a sociedade denuncie, e a partir desse momento o sector público tem de intervir e isso passa por fazer o diagnóstico correcto, como também pôr medidas que têm respostas. 

IL - Também é feito o acompanhamento dos filhos. 

Diria que as respostas têm chegado rapidamente? 

RA - Já temos uma casa de passagem, na ilha de Santiago, mas, é óbvio, não podemos dizer onde é, também temos um centro de acolhimento de vítimas de VBG na ilha do Fogo, e há mais parcerias que estão a chegar, e mais parcerias que estamos a pôr de pé, temos 23 centros de atendimento às vítimas em todos os concelhos, porque a municipalização do serviço é essencial dá resposta com técnicos especializados, tanto nível psicológico, como jurídico e social. 

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SOBRE O AUTOR

Teresa Fortes