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A poupança em Santiago
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A poupança em Santiago

O Badiu (Santiaguense, entenda-se) sempre foi visto como guardador e poupador. Talvez por ter aprendido da pior forma, através da fome e opressão durante a época colonial foi visto como o exemplo de contenção na hora de tirar dinheiro. Todo e qualquer bom Badiu, era suposto ter os seus patacos debaixo de colchão, seu milho no granel e seu feijão na tulha para os tempos mais difíceis. E assim surgiu o dizer, guarda pon pa Maio, em alusão ao mês de maio, mês que se considera seco, longo e difícil, quando se quisesse referir, guardar nos tempos áureos para as intempéries.

Com a entrada da era do consumismo, o Badiu vem enfrentando sérias dificuldades no que tange a poupança: passou a comprar demais, a acumular coisas com pouco valor e a se descuidar na economia, ou, quando o faz, é com o intuito de esbanjar nas futilidades.

Para se consumir, é primeiro preciso poupar, criar uma base para tal. É necessário mudar a ideia de que só poupa aquele que tem muito. Do pouco que tivermos, se dermos uma utilização racional, seremos capazes de economizar.

É muito preocupante a situação em Santiago hoje em dia. A tendência agora é esbanjar. Muita gente a vender. Muitas vendas. Muitas compras. Pouca poupança.

Com o aumento de pessoas qualificadas à procura do primeiro emprego; a diminuição de uma alternativa de subsistência; o incremento de auto emprego e procura de vendas como alternativa, há muito mais para comprar. E o santiaguense se meteu nesta de comprar e acumular. As consequências poderão ser graves para as famílias, as comunidades e o país.

O desenvolvimento sustentável de qualquer nação passa necessariamente pelo bem-estar dos seus cidadãos, cujos indicadores mais tangíveis são a educação, a saúde, habitação e segurança. Para que possa haver boa educação, é necessário saúde. Para que haja boa saúde, é preciso boas condições de habitação, paz e harmonia sociais. Todos estes quesitos são viáveis com investimentos. Do Estado, mas também e sobretudo das famílias e das comunidades. Mas donde vem este investimento?

Tornou-se moda exigir do Estado tudo e mais qualquer coisa: casas para morar, bolsas de estudos para estudar, saúde de graça, entre outras coisas mais. É certo que o Estado tem o seu papel, mormente na criação de condições (infraestruturas, formação de quadros entre outras), mas cabe a cada cidadão também assumir com as suas responsabilidades. Como é possível, num país onde a percentagem de pobreza é elevada, atender a todos os casos em particular? Obviamente que alguns conseguem, outros não. E assim surgem as querelas, com uns se considerando preteridos em detrimento dos outros; os que alcançam se dividem dos que não conseguem, repartindo a sociedade entre os protegidos e os desprotegidos. Para minorar ou quiçá, resolver esta questão, nada melhor do que poupança. Sim, poupança do pouco que temos, em função das coisas essênciais, tais como a educação, a saúde, e a habitação.

Há exemplos clássicos de poupanças com fins diversificados que se instituíram e vingaram em Santiago, tais como o Voto ou Mitim e as mutualidades, as “totocaixas” e que muito têm ajudado as comunidades nas situações de morte, principalmente. A questão é essa: se preparamos para a morte, porque não para a vida? Se pouparmos para quando alguém morrer termos comida e bebida para oferecer, porque não pouparmos para a nossa saúde, velhice, e educação dos nossos filhos? Se juntamos dinheiro para comprar coisas do dia-a-dia, porque não economizar para estudos? Mudar os paradigmas com relação à forma de viver, necessita-se.

A nossa pirâmide de valores se encontra invertida, é urgente mudá-la. Presenciei algumas situações ilustrativas deste facto que gostaria de partilhar. Solicitava-se na Câmara nos anos 2000, 100$00 às mães para contributo nos jardins infantis. Esse dinheiro era para ajudar na aquisição do gás para confeção do lanche para as crianças. Todavia, era raro o jardim que conseguia ser sustentável neste aspeto; quase todos dependiam da Câmara Municipal para a compra do gás. As monitoras se viam a braços com a comparticipação das mães, muitas até se queixavam de que as monitoras pediam os 100$00 para uso próprio. Porém, no dia da imposição das fitas, não sei de onde o dinheiro aparecia: pagava-se na altura 2.500$00 para as festas (ou mais em alguns jardins), havia roupas novas, comida, bebidas para toda a comunidade, presentes e mais. Festa rija. A mesma mãe que não conseguiu pagar menos de 1.000$00 durante todo ano para a criança, consegue, duma assentada, pagar os 2.500$00 para a festa e fazia outras despesas aberrantes.

Instituiu-se várias festas às que já existiam aqui no interior de Santiago: imposição de fitas (durante os 12 anos de estudos, a criança põe fita umas 3 vezes, com pompas e circunstâncias), aniversários, com padrinhos e madrinhas... Sem contar com outras ocasiões que são inventadas aqui e ali. Um reparo: estas festas não são comemoradas com a família, mas sim com as pessoas de fora, familiares e amigos, e mesmo pessoas vindas de comunidades distantes.

Os batizados se tornaram festas grandes, casamentos se transformaram em festivais...são tão propalados que as pessoas conhecidas e familiares muito recuados se sentem no dever de levar a mal caso não forem convidados.

Tenho observado uma obsessão enorme em poupar para gastar pelas festas de romaria, que chegam ao cúmulo do ridículo. Pessoas que poupam quase o ano inteiro e, depois, esbanjam num ou dois dias: passando esta fase, vivendo na maior penúria. Mata-se animais, gasta-se rios de dinheiro em bebidas, comes e bebes, e depois, é aguentar. Até à próxima festa. Para a saúde e educação: que seja o estado a pagar.

Repito, estas festas estimulam os gastos supérfluos; por outro lado, proporcionam espaço para consumo de estupefacientes e situações de risco junto aos jovens tudo com esbanjamento de tudo e mais qualquer coisa. Poupa-se para gastar sem medida: porcos e bodes são engordados, dinheiro é guardado com o fito único de gastar. Pouco se pensa em coisas viáveis e que trazem benefícios para as famílias.

Na nossa freguesia, que abrange João Dias (Santa Catarina) e Saltos Abaixo e Achada Lage (Santa Cruz) contam-se cerca de 20 festas. De Dezembro a janeiro, 20 festas, cada uma com os seus minifestivais. Sem contar com as outras religiosas, tais como Natal, Ano Novo e Páscoa. E as Cinzas, que sendo um dia de jejum e abstinência, se tornou em mais um dia de comezainas!

Não sou contra as festas. Até vou para algumas. Mas é preciso repensar o modelo das festas e mudar algumas coisas. Alguns argumentam que é uma oportunidade de por a economia a funcionar. Concordo em parte. Circula muito dinheiro. Compra-se muito. Vende-se muito. Todavia, trata-se de algo pouco duradouro e que de forma nenhuma contribui para poupança e, consequentemente está longe de ser a favor do desenvolvimento.

Tive uma conversa com uma pessoa que sofria de um pé. Estava mesmo mal. Perguntei porque não ia ao hospital, ela disse que não ia porque a primeira coisa que faziam era pedir-lhe dinheiro. Que não estava disposta a pagar os seus 100$00 de cada vez que ia ao hospital, pois os médicos estavam la para tratar e não para cobrar.

Noutro dia tive um bate-boca com um encarregado de educação que reclamava de nunca ter recebido nada, que o seu filho estudou mas que foi ele a custear. Perguntei quanto pagava por mês, respondeu indignado que tinha pago 500$00 na matrícula, e que lhe exigiram mais 1.000$00 (para o ano todo). Feitas as contas, ele estava a pagar o máximo de 150$00 por mês. Mas, acha demais, pois compete ao Estado custear, não a ele.

Caso seja alguém que não possa, até entende-se; no caso específico, trata-se de quem consegue, que simplesmente quer se demitir das suas responsabilidades porque considera que deve ser o Estado a assumir as despesas da educação! Mas para as festas e outras coisas, não há problema!

Gasta-se muito em construções de casas enormes, que muitas vezes nunca são acabadas e por conseguinte ficam por habitar, e mora-se muito mal; a título de exemplo, a casa de banho, hoje uma das partes fundamentais da casa, é relegada ao último plano por muitos (enquanto houver Kobon e rol de mar…); quando é construída, fica fechada a sete chaves, ou anda no bolso da dona de casa para ser aberta às visitas ou usada em ocasiões especiais (neste caso para poupar a agua e não sujar o chão, que ironia!). As crianças são ensinadas a ir ao kobon, rol di mar ou meio das plantas. Adquire-se muitos consumíveis para a casa que não são usados: roupas, loiças, televisores, mobiliário…); há uma grande disputa em quem tem mais, com um acúmulo de lixo, comparável aos países dito desenvolvidos.

Há muitas casas portas fechadas, alguns carros topo de gama na garagem!

Temos muitos problemas de subsistência para resolver mas também esbanjamos muito do que não temos em coisas supérfluas. A nossa tendência é esquecer a poupança, algo que sempre nos caracterizou.

Há um tempo atrás, tivemos a visita da gestora de uma das seguradoras do país, que nos apresentou produtos que se encontram disponíveis. Fiquei surpresa pela quantidade que fornecem e pela inovação. Eu pessoalmente tive uma certa desconfiança mas depois de ouvir a explanação achei plausível, vi que é algo que deve ser divulgado e incentivado junto às pessoas, no sentido de começarem a ser mais responsáveis com relação áquilo que têm de fazer e dar um bom uso ao dinheiro. Isso resolveria muitos problemas de assistencialismo, muito arraigado na nossa gente e contribuiria para criar uma bolsa financeira com benefícios palpáveis para a Economia do país. Não sou Economista, mas parece-me que, a poupança nestes moldes só trará benefícios. Dinheiro acumulado, mais dinheiro para empréstimos, mais pessoas com acesso, mais poder de compra. Enfim, benefícios para todos.

Em termos de legislação temos avanços, que permitem a certas instituições, neste caso os bancos e as seguradoras, arrecadar as receitas através de poupanças, falta contudo a disseminação duma forma consciente junto às nossas populações, no sentido de, paulatinamente trocarem o esbanjamento por economia. Estou a referir concretamente aos produtos apresentados pela Garantia (penso que a ÍMPAR também-peço desculpas de só apresentar uma seguradora, desconheço a outra, não estou fazendo campanha a favor de nenhuma), que, não sendo exorbitantes, poderão ajudar neste processo: o seguro de vida, o seguro escolar, a poupança para os estudos, o seguro de morte, doença, entre outros produtos. Cada um destes produtos será deduzido de acordo com as possibilidades de cada indivíduo, levando em consideração o seu rendimento.

Começar a mudar a mentalidade no sentido de não gastarmos tudo o que temos, de dar bom uso do dinheiro e a levar uma vida mais consentânea com a nossa realidade, deve ser a tarefa de nós todos. Incentivar a poupança e estimular o uso racional dos bens, dever ser uma prioridade, nas famílias, nas escolas e nas comunidades.

Mudar os paradigmas das festas em Santiago, fazendo uma combinação entre o tradicional e o moderno, com o verdadeiro sentido das festas de romaria (festas de rua) traria muitas vantagens às famílias.

Urge devolver ao badiu  o seu título de poupador e ajudar os santiaguenses no processo de desenvolvimento, pois, só comprar, não traz benefícios. Manusear dinheiro, especialmente para aqueles que o conseguem no sistema txapu na mo é bastante traiçoeiro: se não se souber dar uso racional, corre-se o risco de ter alguma coisa hoje e amanhã nada. Todos precisamos de orientação em como podemos poupar. Por favor quem de direito, deixem dicas. Tenho dito!

Calheta, Agosto de 2017.

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