"A segurança entendida como ordem pública e esforço comum na proteção física e da liberdade e propriedade da comunidade e de cada um dos seus membros foi, historicamente, a razão determinante da organização dos agregados humanos em Estado. O Estado não pode, pois, demitir-se dessa sua obrigação essencial de garantir segurança física e liberdade aos cidadãos residentes e às demais entidades instaladas no seu território".
In Programa do Governo IX Legislatura, 2016-2021
Já não dá para disfarçar mais e já não se trata de mera percepção - a insegurança grassa e o país começa a entrar em pânico. É claro que a onda de crimes com morte que vem amedrontando os cabo-verdianos tem acontecido sobretudo na Praia e um pouco pelo interior de Santiago, não afectando directamente as outras ilhas com tamanho impacto que a capital. Mas, vamos convir, Santiago tem mais de metade da população nacional e a Praia acolhe um quarto dos cabo-verdianos de todas as ilhas, logo, qualquer notícia de assassinato ou atentado terá, obviamente, repercussão negativa junto de famílias no Barlavento, Sotavento e Diáspora, além dos efeitos nefastos para o turismo. Demora-se a se perceber isso, para nosso desgosto.
Ora bem, o Governo fala em "pico de criminalidade", pondo convenientemente um limite máximo ao que já vimos. Mas o que o país está a testemunhar é uma escalada de homicídios invulgares, que, além de aumentarem as estatísticas, vêm redefinir a tipologia do crime em Cabo Verde. Se a evolução, de resto, já visível, do modus operandi e a brutalidade com que se mata neste arquipélago inquietam o mais comum dos cabo-verdianos, que dizer quando agentes da segurança pública se tornam vilões com armas em punho e os símbolos da República sobre os ombros?
O sistema parece que entrou em autofagia, com a Administração Interna a autodestruir-se num falhanço brutal do ministro da tutela. Começou com a demissão do comandante da Esquadra do Sal, Elias Silva, por ter dito apenas umas verdades inconvenientes de que o país está armado. E não está então, senhor ministro?
Pulando questiúnculas internas (e que terão a ver com o que se passa, já que 'emprateleirar' quadros especialistas em detrimento de puxa-sacos partidarizados), a situação atingiu - aqui sim - o ápice com a detenção de um agente da Polícia Nacional por suspeita de ter morto o seu próprio colega em plena missão de serviço. Pior do que isso, foi a tentativa descarada de escamotear esse caso, a ponto de a PN ter apresentado um suspeito pela morte do agente Hamilton Morais que a PJ mandou para casa porque não havia provas do seu envolvimento nesse crime.
Quer dizer, se a corporação dá guarida a um potencial assassino a população confiará em quem para lhe garantir a segurança que necessita para trabalhar, passear, ter paz e ajudar a edificar este país grisalho de 44 anos?
Acresce-se a isso, o falecimento em causas altamente duvidosas do agente José Luis Correia, em Assomada, cujo laudo médico a indicar morte por hemorragia digestiva alta não convenceu nem os familiares, nem boa parte do país que ainda pensa livremente.
Está claro, pois, que o Governo falhou redondamente no capítulo da Segurança, um dos temas que fizeram os cabo-verdianos votar no MpD porque já estava crítico. Piorou. Porque uma coisa é a criminalidade bandida entre thugs, outra bem distinta é quando policiais são mortos por policiais e até o presidente da principal autarquia do país, equiparado aqui à figura de um ministro de Estado, sofre um atentado que até hoje não se conhece o autor ou o móbil.
Grave, meus senhores. Detalhe: o ministro da Administração Interna, Paulo Rocha, liderou o Serviço da Informação da República (SIR) e o actual Conselheiro Nacional de Segurança, Carlos Reis, foi director da PJ, o que, instintivamente, nos leva a acreditar que têm, ou deveriam ter, informações privilegiadas acerca de potenciais ameaças à autoridade do Estado e ao próprio Estado.
Adiante: afinal, de que segurança o Governo fala então? Onde estão as câmaras de vigilância distribuídas pela cidade capital? Que impacto estão a ter na segurança ou falta dela?
Bem, vamos dar uma vista de olhos ao Programa do Governo nesta matéria. "Os compromissos do Governo na área da segurança são: Segurança focada no Homem; Fiscalização e controlo do nosso espaço marítimo; Participação em sistemas internacionais de combate aos tráficos internacionais de droga, de armas e seres humanos; Novo paradigma e nova governança do combate ao crime e da segurança", lê-se no documento que propõe como solução "Tolerância zero para com a criminalidade; Intervenção de proximidade, preventiva; Redefinição do papel do Estado em matéria de segurança; Intervenção supranacional e cooperação crescente no plano internacional; Reação policial e penal mais eficaz e mais célere; Motivação dos agentes de segurança, gestão por objetivos e reforço imediato de meios; Combate à morosidade judicial; Combate ao alcoolismo e ao consumo de drogas; Proteção civil eficaz e eficiente".
Da "Tolerância Zero" à "Protecção civil eficaz e eficiente" o que se viu foram polícias em greve, castigo aos agentes grevistas, e truques de propaganda para camuflar o falhanço do Governo a nível da Segurança, que prometeu resgatar face à criminalidade um tanto ou quanto exagerada também vivida no tempo do anterior Executivo.
Da sua parte, o primeiro-ministro, Ulisses Correia e Silva, apontou um conjunto de “ações prioritárias” que serão implementadas com o intuito de aumentar a eficácia da ação policial, judicial e da autoridade municipal, com reflexos na redução de ocorrências criminais, na redução da impunidade e na redução de oportunidades de prática de crimes.
Por isso, e na sequência de uma reunião alargada sobre a segurança urbana no país, o Governo avançou com "14 acções de prevenção e reação, coordenação e cooperação e alterações legislativas", que vão ser reforçadas, destacando-se "a Priorização das investigações, dos processos e julgamentos, relacionados com a criminalidade urbana; Agilização do tempo de investigação de processos-crime; Revisão do regime de aplicação do TIR e de medidas cautelares em casos de crimes cometidos em flagrante delito e de forma reincidente; Agravamento da pena na reincidência; Revisão da lei de armas; Reforço dos meios do sistema prisional e Reforço da fiscalização aos estabelecimentos irregulares e de venda indiscriminada de bebidas alcoólicas, sobretudo a menores e Reforço do patrulhamento e de pressão policial (PN e PJ) nos locais de maior índice de violência".
A ideia é boa, interessante e necessária. Atrasada sim, mas já ensinava o velho ditado que "depois de casa roubada, trancas à porta". O momento é efectivamente de acção. Menos palavras e mais acções! A revisão da lei de armas, por exemplo, é uma urgência, mas o Governo parece mais preocupado com a propaganda do que com os seus compromissos, temos que dizê-lo, para com cada cabo-verdiano que assumiu defender desde 2016. Tomara que o tempo que falta para terminar esta legislatutra nos traga melhores dias. E devemos acreditar que o Governo não irá fugir aos seus compromissos com os cabo-verdianos em matéria de segurança. Porque se há indignação, é porque alguém não se sente seguro. Afinal, como o Programa do Governo estabelece, "o Estado não pode, pois, demitir-se dessa sua obrigação essencial de garantir segurança física e liberdade aos cidadãos residentes e às demais entidades instaladas no seu território".
Assim sendo, quando faltam menos de 1/3 do tempo para o mandato terminar, a culpa não pode morrer solteira em relação a um dossier que o próprio ministro do Estado, Fernando Elísio Freire, definiu como "Recurso estratégico e económico do Estado".
O director,
Hermínio Silves
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