Uma brevíssima biografia político-ideológica do maior morto imortal da Guiné e de Cabo Verde - Segunda Parte
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Uma brevíssima biografia político-ideológica do maior morto imortal da Guiné e de Cabo Verde - Segunda Parte

JORNADAS DE HOMENAGEM A AMÍLCAR LOPES CABRAL (TAMBÉM FESTEJADO COMO ABEL DJASSI) E DE CELEBRAÇÃO DA AMIZADE ENTRE OS POVOS DE CABO VERDE E DA GUINÉ-BISSAU POR OCASIÃO DA COMEMORAÇÃO DO 97º ANIVERSÁRIO NATALÍCIO DO MORTO IMORTAL, HERÓI DO POVO, PAI DAS INDEPENDÊNCIAS E FUNDADOR DAS NACIONALIDADES - ENQUANTO COMUNIDADES POLÍTICAS NACIONAIS INDEPENDENTES E SOBERANAS- DA GUINÉ-BISSAU E DE CABO VERDE CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE A VIDA E A OBRA DO REVOLUCIONÁRIO CABOVERDIANO-GUINEENSE AMÍLCAR LOPES CABRAL OU UMA BREVÍSSIMA BIOGRAFIA POLÍTICO-IDEOLÓGICA DO MAIOR MORTO IMORTAL DA GUINÉ E DE CABO VERDE

                   

                    SEGUNDA PARTE 

3. A opção do PAIGC e da generalidade dos movimentos de libertação

nacional africanos das colónias/províncias ultramarinas portuguesas por uma luta armada de longa duração, muito inspirada nas experiências chinesa, vietnamita, argelina e cubana, tinha também por fundamento a convicção de Amílcar Cabral, sedimentada em análises e textos vários da sua lavra, que, a contrario das demais potências coloniais europeias, Portugal  era incapaz  de praticar o neo-colonialismo, enquanto forma mais recente, subtil e economicamente efectiva de dominação imperialista, depois da falência histórica do colonialismo  directo ou clássico, na generalidade dos países afro-asiáticos e americanos, neste último caso ocorrida maioritariamente no século XIX e concluida no século XX quase em simultâneo com os países afro-asiáticos. 

Com efeito, segundo o inovador e perspicaz raciocínio de Amílcar Cabral, por ser um país economicamente atrasado e socialmente subdesenvolvido, ademais uma autêntica semi-colónia da Inglaterra, desde a celebração do Tratado de Methuen, em 1773, e das demais potências imperialistas industrializadas, Portugal era obrigado a necessariamente manter a posse colonial das suas colónias/províncias ultramarinas, já que lhe era impossível competir e concorrer com a potência económica dos países imperialistas desenvolvidos, caso essas suas colónias/províncias ultramarinas acedessem à independência política formal. A esse circunstancialismo político-económico, de grande e indesmentível significado estratégico, acrescia o facto, aliás, muito incrementado no tardo-colonialismo português, de se encontrarem radicados, em especial  nas chamadas colónias de povoamento de Angola e de Moçambique, grandes contingentes de colonos brancos portugueses e os seus descendentes, todos munidos do chamado privilégio colonial do homem branco, bem como relevantes interesses económicos,  não só de empresas portuguesas, relativamente protegidas da concorrência alheia pelas leis do condicionamento colonial-fascistas,  como também de grandes empresas multinacionais dos principais países ocidentais.

Para chegar a essa conclusão, de grandes e significativas repercussões político-estratégicas, foram cruciais os estudos  de Amílcar Cabral, na continuidade, aliás,  de outros autores marxistas, sobre o imperialismo, a questão colonial e a questão nacional.

É assim que,  nessa mesma esteira, Amílcar Cabral distinguiu entre duas formas essenciais de dominação  imperialista em África:

i. O colonialismo clássico, consubstanciado na dominação política directa do povo colonizado, com ocupação directa e total do seu território e correlativa transferência para o mesmo território dos aparelhos políticos, administrativos, económicos, militares, policiais e outros, de dominação e repressão coloniais. Esta forma de dominação imperialista implica, outrossim, a erecção da cultura metropolitana como cultura colonial dominante no país colonizado, independentemente de os seus intermediários serem colonos e agentes metropolitanos, ou de serem coadjuvados, em maior ou menor medida, por membros das classes privilegiadas nativas, de todo o modo sujeitos a corrosivos e desgastantes processos de assimilação e de alienação culturais, com renegação total ou parcial por parte dos mesmos de elementos essenciais das culturas nativas, sejam elas primitivamente/primariamente  originárias dos territórios colonizados ou sejam elas culturas alienígenas transplantadas para os territórios colonizados, inicialmente achados desertos de populações nativas ou habitados por populações nativas dizimadas na sua totalidade ou na sua esmagadora maioria, sendo o remanescente dessas populações  nativas confinado em reservas e em outros espaços impróprios para a condução de uma vida livre e com o mínimo de dignidade humana, ou mantido em situações precárias, avessas a todas as formas de progresso social ou de gozo das aquisições e conquistas civilizacionais da Humanidade. 

Neste último caso, as culturas alienígenas  transplantadas para os territórios colonizados são aí amíude reelaboradas e recriadas como culturas mestiças, maxime como culturas crioulas, disso resultando culturas abrangentes das identidades dos descendentes das pessoas transferidas para esses mesmos territórios, a grande maioria das quais, e por força do tráfico negreiro e do comércio triangular que presidiram, em grande medida, ao povoamento desse Novo Mundo, maioritariamente conquistado e/ou ocupado pela força pelos colonos brancos europeus , no degradante estatuto de pessoas escravizadas nos grandes latifúndios, nos morgadios e nas casas-grandes, ou tornadas  serviçais e mão-de-obra barata nas grandes plantações capitalistas edificadas na sequência do colapso da economia colonial-escravocrata ou ainda, como no caso especialíssimo de Cabo Verde, como também assevera Amílcar Cabral na senda de Gabriel Mariano, de camponeses parceiros e rendeiros dos grandes e médios latifundiários caboverdianos na exploração das terras resultantes do emparcelamento dos grandes latifúndios de outrora em razão da impossibilidade da sua conversão em grandes plantações capitalistas, quer devido à ocorrência de secas periódicas,  quer ainda em razão da resistência dos trabalhadores rurais ao regime de assalariamento barato a que os grandes proprietários fundiários e as autoridades coloniais os queriam submeter e sujeitar.

A análise cabraliana do colonialismo clássico como a primeira e mais visível forma de emergência da dominação imperialista, sequente ao tráfico negreiro triangular, à conquista das Américas e à dizimação e ao confinamento compulsivo das suas populações nativas, ao achamento, à ocupação, à conquista e/ou ao extermínio das populações autóctones das ilhas dos oceanos Atlântico, Índico e Pacífico e à concomitante acumulação primitiva do capital e sequente revolução industrial nos países europeus  e norte-americanos características da anterior fase mercantilista do capitalismo de livre concorrência, perpassa numerosos textos da sua lavra, com especial destaque teórico para a sua histórica e doravante clássica comunicação apresentada,  em 1966, à Conferência Tricontinental de Havana, sendo os casos de Cabo Verde e de outros países onde imperaram a transplantação para os territórios colonizados de indivíduos originários de outros continentes e o surgimento de novas culturas nacionais, bastas vezes mestiças e crioulas,  analisados com particular acuidade e competência no texto-acta da Reunião de Dakar de 1963 sobre a Situação da Luta em Cabo Verde.

ii. O neo-colonialismo é considerado por Amílcar Cabral como uma forma

indirecta e mais subtil de dominação imperialista em África, porque operacionalizada depois do acesso dos países colonizados à independência política formal e processada nesse quadro especificamente pós-colonial.

Efectivando-se primacialmente através do domínio financeiro e económico das sociedades pós-coloniais dos antigos países colonizados, em especial  do seu tecido económico-financeiro e empresarial, pelas grandes multinacionais, com destaque para as oriundas das antigas metrópoles coloniais, numa espécie de divisão de trabalho e de especialização linguístico-territorial no quadro de um neo-colonialismo colectivo, muito projectado e visível, por exemplo, na divisão entre países africanos francófonos, países africanos anglófonos e países africanos lusófonos, a dominação imperialista nas suas vestes neo-coloniais cria e suscita  uma falsa e ilusória sensação de verdadeira independência, na medida em que os antigos países colonizados passam a ser governados por indivíduos oriundos das classes e categorias sociais nativas, primacialmente, das pequenas-burguesias intelectuais, burocrático-administrativas, militares e comerciais e de outras classes e categorias sociais autóctones maioritariamente urbanas e rapidamente constituídas, convertidas e transmutadas em burguesias nativas parasitárias e castas e camadas sociais latifundiárias, muitas vezes de feições semi-feudais e plantadoras e herdeiras das antigas classes e categoriais sociais tributárias das sociedades servis e feudais africanas.

Nesse contexto, distingue  Amílcar Cabral entre a fracção da burguesia nativa que podia ser considerada, pelo menos em parte, como uma verdadeira burguesia nacional, em razão do seu real empreendedorismo, do seu nacionalismo e da sua identificação com os interesses nacionais do país economicamente dominado e subjugado pelo capital financeiro transnacional, e aquelas fracções da burguesia nativa, predominantes nos sistemas neo-coloniais de dominação imperialista e que são habitualmente classificadas e (des)qualificadas como   burguesias compradoras e burocráticas, aliadas e agentes predilectos e privilegiados das grandes burguesias dos países imperialistas e que se caracterizam quase sempre por terem na neo-patrimonialização e na desinibida e despudorada predação dos recursos públicos internos, bem como dos recursos eventualmente disponibilizados pela Comunidade Internacional, a sua principal fonte de sustentação socio-económica e por serem,  ademais, muito exibicionistas na ostentação dos seus privilégios socio-económicos, adquiridos, em regra, como já referido, por via da cleptocracia e da corrupção endémica, tanto mais chocantes quando ocorrem em países que, num passado recente, tinham optado pela via socialista de desenvolvimento, como a Argélia ou o Zimbabué, e, até, tinham proclamado o marxismo-leninismo como ideologia oficial do Partido único e do Estado, por conseguinte elegendo os interesses das camadas  mais desfavorecidas das massas populares como os prioritários, como em Angola, em Moçambique, no Benim, na Etiópia ou  no Congo-Brazzaville.

Não obstante a sua aliança estreita com as oligarquias  económico-financeiras internacionais, muitas vezes ostentada sob a capa de uma cultura euro-ocidentalizada, de fachada cosmopolita e desenraizada das culturas e das identidades das massas populares nativas africanas,  as várias fracções das burguesias nativas neo-coloniais mostram-se por vezes muito ciosas dos símbolos nacionais da soberania política, sempre orgulhosamente desfraldados e exibidos, particularmente nos casos de antigos movimentos de libertação nacional outrora empenhados em guerras heróicas contra forças agressoras neo-coloniais e racistas, bem como de interpretações alegadamente puristas, essencialistas e autênticas de alguns elementos exteriores não essenciais das culturas nativas ou autóctones, como nos casos exemplares do Zaire de Mobutu ou, até, do Haiti dos Duvalier. 

Todavia, e segundo Amílcar Cabral, continuam por demais evidentes e manifestos nos países neo-colonizados os sinais exteriores da sua submissão e da sua sujeição aos poderes dominantes estrangeiros, mormente nos planos económicos, militares, político-simbólicos e linguísticos.

Por tudo isso, pelo que lhe foi dado observar na evolução dos países africanos recém-independentes, considerava Amílcar Cabral, tal como, aliás, Kwame Nkrumah, que a luta contra o neo-colonialismo deve ser erigida como a forma principal da luta dos movimentos de libertação nacional africanos para o resgate dos processos históricos dos países africanos e, assim, da retoma pelos seus povos do livre desenvolvimento das forças produtivas dos respectivos países, aos níveis nacional, regional e continental. 

Dessa postura conclusiva, retirou Amílcar Cabral a inelutável ilação de que a via socialista era a única via possível para o desenvolvimento dos países africanos.

4. Negando tomar partido nas controvérsias e dissensões político-ideológicas que atravessavam e dilaceravam  o mundo progressista e o campo anti-imperialista de então e colocavam em posições opostas e, até, antagónicas, o campo dito pró-soviético (no qual pontificava a União Soviética e sobressaiam os seus países satélites do Leste da Europa e Cuba, bem como um grande número de partidos comunistas pró-soviéticos espalhados pelo mundo),  o campo dito pró-chinês (no qual pontificava a China Popular e o seu fiel país escudeiro, a Albânia de Enver Hoxha,  e uma miríade de partidos comunistas de tendência maoísta dita marxista-leninista),  o campo dito pró-jugoslavo ou titista (mais restrito e mais activo  no Movimento dos Não-Alinhados), e fazendo valer na prática todo o fulgor político e a adequação da oportunidade estratégica do sempre convictamente defendido princípio da independência de pensamento e de acção do partido-movimento de libertação (bi)nacional  por ele liderado e ínsito no axioma político e na palavra-de-ordem geral andar pelos nossos nossos próprios pés e pensar pelas nossas próprias cabeças, Amílcar Cabral soube forjar amizades e consolidar alianças políticas solidárias e, assim, tirar plenamente partido da nova correlação de forças progressistas e anti-colonialistas propiciada pela existência e pelo paulatino alargamento de um campo socialista aliado natural dos movimentos de libertação nacional, a par do movimento operário internacional dos países capitalistas desenvolvidos (encontrando-se mesmo alguns partidos progressistas representativos do movimento operário no poder político de alguns países escandinavos, como, por exemplo, o Partido Social-Democrata Sueco), dos Estados independentes africanos (com destaque para aqueles congregados no chamado Grupo de Casablanca e depois reunidos, com o chamado Grupo de Monróvia, na pan-continental Organização da Unidade Africana (OUA), e dos movimentos de libertação nacional e social africanos e terceiro-mundistas, criando-lhes reais e inéditas  perspectivas de vitória na epopeia das lutas anti-coloniais e de  sucesso  em eventuais, novas e inéditas experiências de construção de modelos de sociedade alternativos aos impostos e descredibilizados modelos coloniais e neo-coloniais de dominação imperialista em África, invariavelmente fautores de atraso económico, de miséria social, de obscurantismo cultural, de alienação identitária, de dependência da periferia terceiro-mundista em relação ao centro imperialista, de corrupção endémica e de outros essenciais atributos dos infernos do subdesenvolvimento, sistematicamente reproduzidos e comprovadamente impeditivos do verdadeiro desenvolvimento dos países afro-asiáticos e latino-americanos,  e, em geral, dos países do chamado Terceiro Mundo.

É exatamente neste domínio da teoria política marxista que foi particularmente brilhante o específico contributo de Amílcar Cabral para o desenvolvimento do pensamento político progressista contemporâneo.

É na densa e surpreendente comunicação que apresenta à acima referida Conferência Tricontinental de Havana, de 1966, aliás, testemunhada presencialmente por Domingos Ramos e Pedro Pires, integrantes da Delegação do PAIGC presente nesse importante conclave mundial dos movimentos de libertação nacional e social, bem como nos seus textos analíticos das problemáticas da cultura e do seu papel nas lutas de libertação nacional, apresentados na Universidade de Siracusa e à UNESCO, todos depois reunidos num volume mais vasto de textos teóricos e intitulado A Arma da Teoria, que Amílcar Cabral reconhece e afirma que é na contradição entre o nível das forças produtivas e as relações sociais de produção dominantes e determinadas pelo regime de propriedade dos meios de produção que reside a força motriz da História, sendo que essa mesma contradição é intrínseca e inerente a todas as sociedades humanas. É precisamente por isso, conclui Amílcar Cabral, que todas as sociedades humanas são necessariamente sujeitas e portadoras de História, independentemente do seu nível de desenvolvimento técnico- tecnológico, da horizontalidade e/ou da verticalidade da sua estratificação social e dos seus meios de registo e de perenização desses mesmos processos históricos.

Na sequência  desse seu inovador raciocínio lógico, fundado e fundamentado no materialismo histórico, Amílcar Cabral constatou com rara inteligência e subtil mas aguda perspicácia que constitui objectivo fundamental dos movimentos de libertação nacional, se também considerados - como o devem necessariamente ser - enquanto movimentos de libertação política dos respectivos povos e de emancipação social e cultural de todos os seus filhos, com especial incidência nos integrantes das suas classes laboriosas subjugadas e oprimidas, a libertação, no sentido próprio e pleno  de obtenção da liberdade de desenvolvimento dos processos históricos das respectivas sociedades, até então dominadas por relações sociais de produção necessariamente retrógradas e obsoletas, porque de matriz colonial e neo-colonial, com tudo isso querendo Amílcar Cabral significar, em suma e em síntese, a retoma da liberdade do desenvolvimento das forças produtivas dessas mesmas sociedades, com especial enfoque na principal força produtiva que é a força produtiva humana, isto é, a criatura inteligente gerada pela História,  o ser humano de todos os tempos e de todas as geografias, mediante a superação pacífica ou violenta das relações sociais de produção tornadas obsoletas e ultrapassadas pelas exigências e necessidades históricas e, por isso, incapazes de proporcionar o avanço e o progresso das sociedades, e como tal absorvidas pela consciência política e moral das criaturas humanas, pelas suas classes e categorias sociais  e pelas suas elites e organizações sociais, culturais e políticas mais progressistas.   

Sendo a cultura, por outro lado, e como definido por Amílcar Cabral, a síntese objectiva e dinâmica, a nível da consciência individual e da consciência colectiva, do nível de desenvolvimento das forças produtivas numa dada sociedade bem como das relações dos seres humanos tanto com os grupos sociais em que se inserem e com os quais se relacionam  como também com a natureza de que se nutrem num dado período histórico, ou, ainda, se se quiser e por outras palavras, e tal como, na metafórica expressão do pensador africano, a flor é resultante da planta, o reflexo dialéctico, a nível subjectivo de um indivíduo e de uma comunidade humana,  dos processos históricos das respectivas sociedades, a libertação desses mesmos processos históricos, ou, dito de outro modo, a retoma da liberdade de desenvolvimento dessas mesmas sociedades,  equivale  necessariamente a um acto de emancipação cultural, sendo simultaneamente um factor de dignificação humana e de desenvolvimento cultural.

5. É neste contexto socio-político que Amílcar Cabral traz a público, em

1966, na grande tribuna da célebre Conferência Tricontinental de Havana uma das suas mais fecundas, actuais, controversas e contestadas teorias, designadamente a teoria do suicídio de classe do sector revolucionário da pequena-burguesia burocrático-administrativa, intelectual e técnica. 

Designada como classe social de serviços, em razão da sua posição intermédia e de intermediária na estrutura social colonial entre a classe colonial estrangeira e a nação-classe nativa colonizada  a pequena-burguesia burocrático-administrativa, intelectual e técnica é tida por Amílcar Cabral como a única categoria social em condições políticas e técnicas não só de dirigir  o movimento de libertação nacional tanto contra o sistema colonial como também contra o sistema neo-colonial, neste caso podendo partilhar essa direcção com segmentos mais instruídos e conscientes das classes operária e camponesa, como igualmente de se apossar dos aparelhos burocrático-adiministrativo, técnico e empresarial do Estado colonial e do Estado neo-colonial.

Em ambos os casos, segundo Amílcar Cabral, depara-se esse sector revolucionário - e, apenas e unicamente esse sector progressista da fracção intelectual, burocrático-administrativa e técnica da pequena-burguesia assalariada e/ou liberal - com um quase insuperável dilema:

i. Ceder à sua natural tendência para o emburguesamento, isto é, para a sua transformação em burguesia burocrática e compradora que, como é sabido, constitui-se como a classe nativa dominante nos sistemas neo-coloniais,  mediante a neo-patrimonialização do Estado, a corrupção endémica e outros (re)conhecidos expedientes no seu relacionamento predatório com a economia nacional e as classes sociais nativas bem assim com as multinacionais e as classes dominantes dos países capitalistas desenvolvidos. ii. O seu suicídio de classe, isto é, a travagem da sua natural propensão para o  emburguesamento dantes referida e a sua manutenção como parte integrante das classes trabalhadoras, ainda que laborando nos seus segmentos técnicos, intelectuais e burocrático-administrativos, maioritariamente assalariados. Essa última opção implica necessariamente a opção por uma via socialista de desenvolvimento e abrange, como já referido, não o conjunto da pequena-burguesia nativa na sua totalidade de pequena-burguesia assalariada, de pequena-burguesia comercial, industrial e fundiária, mas tão-somente a pequena-burguesia intelectual, técnica e  burocrático-administrativa, maioritariamente  assalariada nos diversos sectores da sociedade ou vivendo exclusivamente do seu próprio trabalho. Requerendo os processos de desenvolvimento, em regra, um elevado nível de comprometimento político e económico nacionalista e patriótico de todas as classes e categorias sociais nativas, é de se incentivar, na minha opinião, e com base na teoria do suicídio de classe do sector revolucionário da pequena-burguesia, elaborada e fundamentada por Amílcar Cabral, o surgimento de burguesias nacionais empreendedoras, tecnicamente qualificadas e politicamente nacionalistas e patrióticas. Tanto assim sendo  que, mais do que significando a primeira etapa da construção de uma sociedade socialista, tal como teorizada pelos clássicos do marxismo-leninismo e literalmente mal-entendida em vários países africanos, com destaque para Angola, Moçambique ou a Etiópia, e agora, depois do colapso do modelo burocrático-socialista de matriz soviética, indubitavelmente fora da ordem de dia e de qualquer agenda política realista, a opção pela via socialista de desenvolvimento deve significar primacialmente a opção por um Estado de Direito Democrático e Social, isto é, a sujeição da democracia revolucionária, isto é, do “Estado  do Povo, pelo Povo, para o Povo”, propugnados por Amílcar Cabral, às regras  do jogo democrático-liberal, sem, por isso, deixar de excluir e de se conformar com eventuais retrocessos políticos do ponto de vista do progresso social, desde que legitimados em eleições limpas, livres e transparentes, expressivas da genuinidade e da autenticidade da vontade popular declarada soberanamente nas urnas.

A teoria do suicídio de classe defendida por Amílcar Cabral não pode ademais ser separada do papel que o mesmo estratega e intelectual africano atribui ao papel da moral nas lutas de libertação nacional. Dependendo o curso dos acontecimentos futuros no sentido do impulso da revolução ou da sua traição visando a contra-revolução política e social, ou, por outras palavras, da opção pela via socialista ou pela via capitalista neo-colonial, isto é, da opção político-ideológica inteiramente colocada nas mãos da franja da população que é propulsada para o poder político no período pós-colonial, essa opção é, segundo Amílcar Cabral, por demais de natureza moral. Tanto mais  que a opção neo-colonial é a opção natural com a qual a pequena-burguesia ex-colonizada se confronta como a tendência normal do seu desenvolvimento, mesmo se ela também comporta e implica a opção pela corrupção endémica e pela sujeição aos interesses estrangeiros como preço necessário a pagar para o seu enriquecimento parasitário e a sua erecção em burguesia burocrática e compradora, parceira e intermediária das classes dominantes dos países imperialistas, isto é, dos países capitalistas altamente desenvolvidos.

Sendo a  mais difícil e comportando os maiores riscos, a opção pela via socialista de desenvolvimento seria sinónima, segundo Amílcar Cabral, de um verdadeiro hara-kiri moral do sector revolucionário ou progressista da pequena-burguesia intelectual, técnica e burocrático-administrativa, assalariada e/ou liberal, fundado na sua total identificação com os interesses das classes politicamente subjugadas e socialmente mais  desfavorecidas e das demais classes portadoras dos interesses nacionais mais autênticos e profundos, ademais implicando,  sempre e permanentemente, uma luta tenaz contra os modos tradicionais de as burguesias burocráticas e compradoras ascenderem ao poder político-económico e se apossarem das riquezas nacionais que são a cleptocracia, a corrupção endémica e uma visão predatória, rentista e neo-patrimonialista  dos recursos públicos nacionais e internacionais nominalmente postos à disposição do desenvolvimento do respectivo país.

Hoje, na complexa actualidade dos nossos tempos contemporâneos emergentes do período resultante da rotunda e estrondosa falência na antiga União Soviética e na Europa de Leste dos modelos societais totalitários e autoritários de matriz burocrático-socialista estalinista e neo-estalinista , e, em África, dos seus avatares socializantes, quer nas suas versões autoritárias mitigadas, como foi o caso de Cabo Verde, e, maioritariamente, nas suas versões totalitárias e autoritárias estalinistas tropicais,  como efectivamente se verificou num maior número de países africanos progressistas, tempos esses, aliás, concomitantes com a falência generalizada dos regimes politicos de partido único ou de partido hegemónico e dominante aliado a partidos e organizações de massas e sociais satélites,  incluindo nos países neo-coloniais africanos,  latino-americanos e asiáticos, mas excepcionando i. alguns países africanos, designadamente a Eritreia, a Líbia do malogrado Muamar Khadafi, o Estado falhado da Somália, o Egipto de Hosni Mubarak, a Tunísia de Ben Ali, e um certo número de outros países africanos subsaharianos que, tendo protagonizado processos de multipartidarização política de fachada, viram os seus processos democráticos conspurcados por fraudes maciças, revisões e outros procedimentos constitucionais de conveniência com vista a perpetuar no poder, em modo quase vitalício,  os respectivos Presidentes da República , e de que são assaz exemplares, em África, os casos da Guiné-Equatorial de Teodoro Obiang Mbasogo, do Uganda de  Museveni, da Angola de José Eduardo dos Santos, da Argélia de Bouteflika, dos Camarões de Paul Biya, do Togo dos Eyadema (pai e filho), do Gabão dos Bongo (pai e filho), do Chade de Idris Déby;  países do Médio Oriente, com destaque para as Petromonarquias do Golfo Pérsico, e iii. alguns países latino-americanos, com especial destaque para a Cuba castrista e pós-castrista,  e iv. alguns países do Extremo Oriente Asiático, designadamente para, com interregnos quase-democráticos,  Myammar (a antiga Birmânia) e alguns países himalaios.

Os processos acima referidos de implosão dos regimes autoritários burocrático-socialistas na antiga União Soviética e no Leste da Europa  e as suas sísmicas e fulminantes repercussões em África e em outras partes do mundo foram assim historicamente simultâneas com a tendencial universalização das democracias modernas plenas e dos Estados de Direito Democráticos, ocorrida a partir dos anos noventa do século passado, a par de um novo fulgor do chamado modelo socialista autoritário de economia de mercado, também designado economia de mercado socialista de rosto chinês ou, ainda, via chinesa para o socialismo, com epicentro  na República Popular da China e em expansão em países limítrofes, com destaque para o Vietname, o Laos e o Cambodja.

Neste novíssimo contexto político-estratégico, talvez fosse possível adaptar a consigna cabraliana que elege o socialismo como a única possível via de desenvolvimento para os países africanos  para concluir que a única via sustentada de desenvolvimento dos países africanos é a da construção de Estados de Direito Democráticos e Sociais com paulatina erradicação das mais gritantes desigualdades sociais e a efectiva propiciação de iguais oportunidades de progresso social e de ascensão socio-económica e cultural  a  todos os filhos e  filhas de África.

Atente-se,ademais, que os fenómenos da corrupção endémica, da privatização e da neo-patrimonialização generalizadas do Estado e dos recursos públicos, nacionais e internacionais, que presidiram ao emburguesamento das pequenas-burguesias africanas e aos concomitantes surgimento e consolidação das burguesias compradoras e burocráticas parasitárias dos países neo-coloniais africanos, e, na senda deles, dos antigos países africanos que anteriormente tinham, pelo menos, nominalmente, optado pela via socialista de desenvolvimento, não são estranhos e alheios  aos processos de degenerescência e queda da antiga União Soviética e dos antigos países socialistas do Leste da Europa.

Nesses casos, e oriunda e recrutada prioritária e maioritariamente na intelectualidade progressista e revolucionária e na parte mais politicamente esclarecida das  classes operária, camponesa e de pequenos e médios proprietários urbanos e rurais, é a casta dirigente do partido de vanguarda, erigido em partido único ou em partido hegemónico, numa aliança política constituída por uma miríade mais ou menos alargada de partidos políticos satélites e de organizações sociais e de massas, as mais das vezes vistas como meras correias de transmissão dos partidos hegemónicos e dominantes, que se constitui como a classe dominante e a verdadeira detentora do poder político-ideológico, cultural  e económico no Estado nominalmente denominado de Ditadura do Proletariado, como na antiga União Soviética e na generalidade dos países do Leste europeu,  ou de  Democracia Popular, como na fase incial da implantação do socialismo nos países do Leste europeu, alguns dos quais nominalmente pluripartidários no âmbito de Frentes Nacionais e Blocos Democráticos, que, contudo,  excluiam qualquer forma de alternância democrática no chamado processo de construção do socialismo, vilipendiada como típica e característica das democracias formais burguesas.  

As vicissitudes e as reviravoltas dos processos históricos fazem com que, aliada ao surgimento de uma verdadeira burguesia clandestina ligada aos meandros dos negócios do mercado negro, tornado indispensável para a sobrevivência da economias planificadas, bastas vezes desqualificadas como verdadeiras economias de escassez, as nomenclaturas partidárias se arrogassem cada vez a exclusividade de mais privilégios sociais, culturais e económicos para si, para os seus familiares e para as suas clientelas,  transmutando-se, deste modo e cada vez mais,  numa classe dominante burocrático-administrativa politicamente conservadora e socialmente muito ciosa da preservação, da consolidação e do alargamento dos seus privilégios de classe.

São esses os ingredientes necessários para a transição, pacífica e/ou violenta, para a sociedade capitalista, em regra, desenvolvida, e para a sua muito propalada economia de mercado, a qual assumiu, a mais das vezes, nas transições político-económicas dos países do Leste da Europa que  não redundaram na sua progressiva integração na União Europeia , modalidades nitidamente identificadas com o capitalismo selvagem e as suas expressões ideológicas neo-liberais, com as suas novas oligarquias económicas, por demais vorazes e predadoras, e muito pouco escrupulosas no saque privado dos recursos públicos, em especial, do antigo sector empresarial do Estado, como largamente ilustrado na Rússia pós-soviética de Boris Ieltsin  ou na actual Bielorússia de Lukashenko.

/José Luís Hopffer Almada/

Membro-fundador e membro efectivo (correspondente)

da Academia Cabo-Verdiana de Letras (ACL)

 e da Associação de Escritores Cabo-Verdianos (AEC)              

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