CCXXXIX CENA
Dário e Diana estão morados juntos, numa casinha confortável há já dois anos. A Diana está grávida em estado avançado. Dário muda de roupa e prepara-se para sair.
DÀRIO – Diana, vou sair para tratar de um assunto mas não demoro.
Diana não lhe responde, ele dirige-se à ela e dá-lhe um beijo antes de sair.
CCXL CENA
Uns escassos metros à retaguarda da casa Dário cruza-se com a Gisela, uma amiga e colega de há algum tempo.
DÁRIO – Olá Gisela, como estás tão crescida!
GISELA – Tu também. Já não estás como te conhecia. Quanto tempo?! Então, o que tens feito?
DÁRIO – Olha… acabei o curso este ano.
GISELA – Então posso fazer publicidade em como já temos um doutor na zona?
DÁRIO – Doutor não. Engenheiro… Agrónomo.
GISELA – Boa. O mesmo curso que o Amílcar Cabral tirou.
DÁRIO – Na mesma faculdade e com a mesma média. E tu, também o que tens feito durante esse tempo todo?
GISELA – Terminei o Liceu... não consegui bolsa, estou a dar aulas no Ciclo. Para o ano tenciono ir fazer o bacharelato.
DÁRIO – Bacharelato… em quê?
GISELA – Línguas e literaturas modernas.
DÁRIO – Muito bem! Boa notícia! E que mais?
GISELA – O resto dizes tu. Afinal, já és casado?
DÁRIO – Ainda não. E tu?
GISELA – Também não. Talvez estejamos a espera um pelo outro.
DÁRIO – Falta-me essa sorte.
GISELA – Eu é que não tenho a sorte de ser mulher do Sr. Engenheiro.
DÁRIU – Se nunca te mentiste… então vai agora confessar-te, por favor.
GISELA – Pareces quieto, mas afinal és brejeiro.
Ela avança-se para o cumprimentar com beijos, surge a Diana por detrás do Dário
DIANA – O que é isto, sua vagabunda, descarada? (Derruba a Gisela com uma bofetada) Erraste com o teu homem? Este é meu, sua porca, nojenta!
DÁRIO – O que é isto, Diana? Enlouqueceste ou quê?
DIANA – Tu é que enlouqueceste, que andas a enganar-me. Pacóvio.
GISELA (levanta-se estonteada) – Afinal tu és casado e vens tentar passar fim-de-semana comigo?! (Para Diana) Apesar que você me agrediu, peço-lhe desculpa. Este palerma é que provocou tudo. (Para Dário) De hoje em diante não te quero ver nem pintado de ouro. Ouviste?
DIANA (para Dário) – Diz que ela está a mentir. Diz. Diz, que eu quero ouvir. E onde é que iam passar fim-de-semana?
DÁRIO – Diana, vai para a casa e vamos conversar calmamente.
Gisela vai embora chateada.
DIANA – Onde é que iam passar fim-de-semana? Onde? Numa pensão? Em casa de Nhu Branquinho ou da Nha Fróza?
DÁRIO – Fim-de-semana é a forma de falar dela… a gíria dela. Queria dizer que estava gozar-me… a caçoar-me dela.
DIANA – Mentiroso, (atira-se a ele com violência e arranha-lhe a cara) Canalha, falso, traidor.
DÁRIO – Controla-te, Diana. Olha pela tua barriga e vês que não estás em estado de te enervares. Pensa no nosso filho que tens na barriga.
DIANA – Nosso filho?! Meu filho! Esse menino, querendo Deus, vai nascer em casa dos meus pais. E não vai levar o teu apelido por nada deste mundo.
Diana volta à casa completamente furibunda e a chorar. Chega à casa, arruma as suas coisas e volta para a casa dos pais.
CCXLI CENA
Alguns meses depois, numa festa de finalistas, Diana e Dário estão sentados à mesma mesa, lado a lado.
DÁRIO (esforçando-se muito) – Diana, os teus pais estão bons? (Diana não responde) A nossa filha… está tudo bem com ele? (Diana continua indiferente) fiz-te uma pergunta, Diana. Segundo manda a ética ou a moral, todas as perguntas merecem uma resposta. Sim, não ou talvez.
DIANA – E se não me apetece responder?
DÁRIO – Não querer responder é um direito que te assiste, mas eticamente é incorreto e é logicamente errado.
DIANA – Quem te ouve falar da ética e da lógica pode pensar que és algum eticologista…, algum perfeito!
DÁRIO – Podem pensar o que quiserem. Sei que não sou perfeito, como sei que ninguém o é. Perfeito é paradoxo! Não há ninguém que o seja. No mínimo, pode haver alguém mais imperfeito do que outro. Agora… mais perfeito?… não existe.
DIANA (olha-o fixamente) – Na tua conceção, que diferença há entre ética e lógica?
DÁRIO – São duas coisas diferentes. Ética é a moral… o “dever” de respeitar os outros e de praticar o “bem”… sem obrigatoriedade. Pois, ninguém vai preso ou é castigado por não dar esmola a um velhinho pu não dizer «Bom Dia» ao outro. Enquanto que lógica é ciência, requer exatidão nos resultados. Na lógica há só duas respostas para cada pergunta: “sim” ou “não” ou então, “verdadeiro” ou “falso”. Não admite o “talvez”. Ou é tudo, ou é nada. Não há meio-termo. Conforme se diz: Ou é 8, ou é 80. Já consigo arrancar-te a resposta à minha pergunta?
DIANA – Acho que não tens nada que saber sobre a vida da minha família.
DÁRIO – Quando é por bem, qualquer pessoa está no dever de se preocupar com outra. Demais a mais, a tua família já me diz respeito. Os teus pais são os avós da minha filha.
DIANA – Avós da tua filha?! Como se chama essa tua filha? E quem é a mãe dela?!
DÁRIO – A mãe da minha filha, que eu saiba, chama-se Diana. És tu. O nome dela, já te ia perguntar.
DIANA – Ah, é?!
DÁRIO – Não me convidaste para ir registá-la! Qual foi o nome que lhe deste? Lembras-te que – como se adivinhasse que seria uma menina – sugeri que se chamasse Kizy, nome da namorada deste meu amigo. (Bate ao de leve no ombro do Dério) Não achas fixe, Derusca?
DÉRIO – E lembrem-se de que fui convidado para padrinho. (Para Diana) Fui ou não, Comadre?
DIANA – Eu não sei.
DÁRIO – Diana, não é minha intenção obrigar-te a continuar comigo contra a tua vontade. Mas acho que deves reconsiderar, por amor à nossa filha. Quero que ela seja criada e educada por nós, os pais dela. Não quero ter outra mulher que ela considere madrasta, menos ainda que arranjes outro homem para ela chamar de padrasto. (Diana emudece-se) Queres que peça o carro emprestado ao Dério e damos uma voltinha? (Diana continua calada, Dário volta para Dério) Empresta-me a chave do teu carro?
Dário toma a chave, levanta-se, pega a Diana na mão e saem sob o olhar curioso dos convivas. Passado um bocado entra a Gisela um pouco descontrolada.
GISELA – Pessoal, muito cuidado ao beber merdon, porque o Dário já atropelou uma senhora que está no hospital entre a vida e morte.
DÉRIO – O quê?! Com o meu carro?
GISELA – Não sei com que carro. Só sei que quando vinha pra aqui, vi um Polícia, chateado, a perguntar por ele. Acho que atropelou a senhora e fugiu.
Numa onda de tristezas e comentários, a cena acaba.
CCXLII CENA
Dário está a ser julgado.
JUÍZA (para o Oficial) – Declaro aberta a audiência.
OFICIAL – Por ordem da meritíssima juíza está aberta a audiência.
JUÍZA (para o Dário) – As perguntas que lhe vão ser feitas, as respostas são obrigatórias. Percebeu?
DÁRIO – Percebi sim, Dra. Juíza.
ESCRIVÃO (para o Dário) – O seu nome?
DÁRIO – Dário Tute Simoa da Cruz.
ESCRIVÃO – Nome dos seus pais?
DÁRIO – João da Cruz de Alexandra e Helena Tute Simoa.
ESCRIVÃO – Estado civil?
DÁRIO – Unido de facto.
ESCRIVÃO – Idade?
DÁRIO – 31 anos.
ESCRIVÃO – Profissão?
DÁRIO – Engenheiro Agrónomo.
ESCRIVÃO – Nacionalidade e morada?
DÁRIO – Nacionalidade cabo-verdiana e morada em Monte Sossego, Rua 3, nº 86 – Mindelo, São Vicente.
ESCRIVÃO – Tem filhos ou não?
DÁRIO – Uma filha bebé.
O Escrivão olha para a Juíza e faz sinal com a cabeça.
JUÍZA – Sr. Dário Tute Simoa da Cruz, as perguntas que acabou de responder eram obrigatórias. A partir de agora só responde se quiser. Mas, se responder poderá ser-lhe útil como também será útil para este tribunal. Por isso, o senhor Dário quer contar perante este tribunal o que aconteceu na noite do dia 1 de Abril do ano passado?
DÁRIO – Quero contar.
JUÍZA – Então… tenha a bondade.
DÁRIO – Ia a conduzir o carro do meu amigo Dério, das imediações do Liceu Velho à Matiota, acompanhado da Diana, mãe da minha filha. Quando circulava na Avenida Marginal, frente à Rádio Voz de S. Vicente, a Srª. Ruth atravessou de repente a Avenida, não pude travar e ela foi embater contra o carro.
JUÍZA – Depois de a ter atropelado o que fez com ela?
DÁRIO – Levei-a às Urgências do Hospital Baptista de Sousa.
JUÍZA – Quando chegou às urgências, o que é que aconteceu?
DÁRIO – Estava lá um Agente da Polícia que me identificou.
JUÍZA – O Agente não lhe deu voz de prisão?
DÁRIO – Não. Apenas me identificou.
JUÍZA (para o Escrivão) – Perguntado, o Arguido respondeu que: «No dia da ocorrência, conduzia o carro do seu amigo Dério, acompanhado da Srª. Diana Teixeira, mãe de sua filha, das imediações do liceu velho para Matiota. Que em plena Avenida Marginal, defronte à Rádio Voz de São Vicente, atropelou a vítima, D. Ruth Lally, que ia a atravessar a via, em direção da Rádio para o litoral». (A Defesa levanta a mão à Juíza) Sim!
DEFESA – Meritíssima, por considerar a transcrição deliberadamente indiciador, protesto e requeiro a retificação da ata.
JUÍZA – O que é que a Defesa considera que merece ser retificado?
DEFESA – «Atropelou a vítima». Não foi isso que aconteceu e nem o que o meu constituinte disse.
JUÍZA – E o que sugere o Doutor?
DEFESA – Que fique na ata que foi a vítima que lhe embateu no carro.
JUÍZA – Protesto deferido. (Para Escrivão) «Defronte à Rádio Voz de São Vicente… a vítima embateu-lhe contra o carro. Que a socorreu às urgências onde foi identificado por um agente da Polícia que ali se encontrava de piquete». (Para a Defesa) Satisfaz a Defesa? (A defesa abana a cabeça positivamente) Acusação não tem perguntas a fazer?
ACUSAÇÃO – Antes do acidente o arguido estava numa festa?!
DÁRIO – Sim, Sr. Doutor. Na festa de finalistas do liceu.
ACUSAÇÃO – Não ingeriu nenhum cálice de aguardente ou uma cerveja?
DÁRIO – Não uso bebidas alcoólicas. Nunca usei.
ACUSAÇÃO – Tem carta de condução?
DÁRIO – Tenho. De ligeiros.
ACUSAÇÃO – Recorde-se a que velocidade é que ia?
DÁRIO – Entre trinta a quarenta quilómetros por hora. Não mais.
ACUSAÇÃO – Não sabe precisar ao certo? Se trinta ou quarenta?
DÁRIO – Isso não. Só sei que ia devagar. Ia até a conversar com a Diana que estava ao meu lado.
JUÍZA (para Escrivão) – Instado pela Acusação, a vítima respondeu que: «Antes do acidente se encontrava numa festa. Que nunca usou bebidas alcoólicas. Que é detentor de uma carta de condução de ligeiros. Que não sabe precisar ao certo a velocidade em que circulava, mas que oscilava entre 30 e 40 km a hora». A Defesa não tem nada a opor-se? (A Defesa diz que não com a cabeça) Sr. Oficial, chame a vítima e mande-a entrar.
OFICIAL (com um dossier na mão) – Srª Ruth Laly Lima Leite.
RUTH – Presente!
OFICIAL – Faça o favor de ir sentar-se naquele banco ali a frente.
JUÍZA (para Escrivão) – Identifique a vítima.
ESCRIVÃO (para a vítima) – Como é o nome da senhora?
RUTH – Ruth Lally Lima Leite.
ESCRIVÃO – Nome do seu pai e da sua mãe?
RUTH – Domingos Silva Gomes Leite e Filomena Lopes Lima.
ESCRIVÃO – Onde é que a Senhora nasceu?
RUTH – A minha mãe pariu-me na Praia, mas ela era da ilha do Maio. Trouxe-me ainda mocinha para S. Vicente e nunca mais tirei daqui os pés.
ESCRIVÃO – Quantos anos tem a senhora?
RUTH – O meu pai disse que nasci no fim da fome. Que quando ele foi para Sul a minha mãe carregava-me ainda nos braços.
ESCRIVÃO – Quer dizer que a senhora nasceu em 1947… 48! Tem filhos?
RUTH – Tenho 13 filhos.
ESCRIVÃO – O que é que a senhora faz?
RUTH – Com os meus 13 filhos? Eh! Deus é que ajuda. Ele é pai, ele é que dá pão.
ESCRIVÃO – Perguntei qual é o trabalho que a senhora faz?
RUTH – Sou criada na Casa Grande. Carrego água, piso milho, cozinho, varro a casa, lavo e passo a roupa, mudo fraldas aos meninos…
ESCRIVÃO – Estado civil da senhora.
RUTH – O quê?
ESCRIVÃO – O seu Estado.
RUTH – Cabo Verde.
ESCRIVÃO – Perguntei se a senhora é solteira ou casada?
RUTH – Sou separada do meu marido. Ele disse que lhe punha os cornos… deixei-o.
ESCRIVÃO – Onde é que a senhora mora?
RUTH – Moro na Rua dos Desprezados, Barraca nº 5, Bairro dos Sem Nada, Campinho – São Vicente.
JUÍZA – Quantos filhos menores é que a senhora tem?
RUTH – Quando tive o meu primeiro filho, não tinha completado 17 anos.
JUÍZA – Perguntei quantos filhos menores é que a senhora tem.
RUTH – O meu codé tem 2 anos. O que nasceu antes dele tem 9, porque o meu marido estava embarcado no estrangeiro. Tenho um com 11, outro com 12, outro com 14, outro que vai fazer 16, um que foi chamado para a tropa este ano...
JUÍZA – Chega. Tem então seis filhos menores?
RUTH – (conta pelos dedos) Marcolino, Maria Josefa, Xipirota, Crispim, Maria Balantina e Santinho.
JUÍZA – Lembra-se daquela noite em que foi atropelada?
RUTH – Lembro, sim, senhora.
JUÍZA – Então conte perante este Tribunal o que se passou.
RUTH – Vinha do Chã de Alecrim, juntamente com o meu amigo Turrino. Quando estava a frente da Rádio Voz de S. Vicente, ouvi o ronco de um carro e pensei que fosse do autocarro que passava por Campinho. Como estava em cima da hora e era o último autocarro da minha zona, corri para o apanhar, Quando verifiquei que o ronco não era do autocarro, já era tarde.
JUÍZA – A senhora reparou se o carro vinha em alta velocidade?
RUTH – Vinha mais ou menos!
JUÍZA – O condutor não podia travar, evitando que a atropelasse?
RUTH – Srª. Drª Juíza, aquilo aconteceu muito rápido. Eu acho que tenho culpa porque atravessei a Avenida a correr e sem olhar bem para os lados.
JUÍZA – O arguido alguma vez foi visitá-la depois do acidente?
RUTH – Ele foi uma vez, mas o pai dele visitou-me várias vezes. Dava-me sempre alguma esmola e disse que me ajudava.
JUÍZA – (para escrivão) A vítima declarou que «na noite do acidente, ela vinha da localidade de Chã de Alecrim, na companhia de um amigo. Que ao ouvir o ronco de um carro, convencida que fosse do autocarro que fazia carreira via Campinho, tentou atravessar a Avenida a correr e foi atropelada pela viatura em que o arguido conduzia. Que o arguido foi uma vez visitá-la e o pai foi várias vezes, deu lhe dinheiro e prometeu ajudá-la». (Para defesa) Não há protestos a fazer?
DEFESA – Há, sim, meritíssima. Requeiro a transcrição exata da resposta da vítima quanto a velocidade em que o meu constituinte circulava. E que a vítima confessou-se culpada do acidente.
JUÍZA – Defiro a primeira parte do requerimento e indefiro a segunda por considerar de pouca relevância para o processo.
DEFESA – Meritíssima, o nosso ordenamento jurídico permite a que um queixoso retire a queixa a qualquer momento, mesmo durante o julgamento. Por isso, não considero irrelevante o meu protesto, porque se a vítima considerar-se culpada, é igual ao querer retratar-se e retirar a queixa.
JUÍZA – Lembre-se de que estamos perante um crime público. Não foi a vítima que apresentou queixa e nem será ela a retirá-la. (para Escrivão) «Disse que o condutor circulava a uma velocidade mais ou menos». (Para acusação) A Acusação tem alguma perguntas a fazer?
ACUSAÇÃO – A Srª conhecia o rapaz que a atropelou?
RUTH – Quando ele nasceu, eu era criada da casa de um tio do pai dele. Ele era um menino muito meu amigo. Só depois da morte da sua mãe, que o seu pai foi morar com outra mulher, com a D. Berta, ela não gostava de mim… porque eu era muito amiga da mãe do menino… da Helena, ela então estorvou o menino de tomar-me bênção.
A Acusação dá por satisfeito e faz sinal com a cabeça à Juíza.
JUÍZA – (para Escrivão) «Inquirida pela Acusação, a vítima diz ser amiga da família do arguido e que em tempos foi empregada da casa de um tio do pai do Arguido». (Para Oficial) Mande retirar a vítima e chame a testemunha Dério Dias Martins.
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